A Pintura
Diana sabia que mais cedo ou mais tarde eles viriam.
E mesmo quando ouviu as conversas exaltadas, botas triturando o cascalho e galhos sendo quebrados, ela terminou de tomar o café amargo e alimentou o fogo da lareira com algumas toras de madeira.
A cabeleira grisalha foi ajeitada num coque firme enquanto os latidos dos cães de caça dos homens ficavam mais próximos.
— E agora, Percival? – a mulher sentou-se num banquinho e colocou o gato preto em seu colo. Acariciando suas costas, suspirou – Eles não gostam mesmo da gente, né?
O animal varreu o cômodo com os olhões amarelos e encarou uma tela limpa de pintura encostada na parede.
— Oh, tem certeza? – As rugas ficaram ainda mais fundas quando sorriu.
Lá fora alguém berrava que o caminho estava correto e outros diziam que tinham tomado a direção errada.
Diana posicionou a tela num cavalete, ao lado da janela, e cuspiu numa cuia de madeira onde estava a tinta marrom. Com o pincel, misturou a saliva e traçou algumas linhas verticais no quadro, alternando a atenção entre o trabalho artístico e a paisagem externa. Ao final, tinha uma reprodução bastante fiel do cenário. Mais algumas pinceladas, e lá estava a pequena construção de madeira com telhado de sapê e chaminé torta.
- Sabe, meu amor, – ela lamentou, enquanto acrescentava uns últimos detalhes na textura da grama. – Caso a Senhora Gertrudes continuasse com aquele bebê na barriga, iria morrer, coitada. Eu não poderia deixar isso acontecer. Não mesmo.
Percival esticou o corpo e pousou as patas no parapeito da janela, balançando o rabo feito uma cobra.
- Mas eles não entendem, - Diana se inclinou para trás, procurando ter uma visão melhor da obra de arte, e resmungou – Não entendem mesmo. Nunca vão entender.
O gato soltou um miado.
- É verdade! – a mulher exclamou. – Vá, mas só desfaça quando eu mandar, sim?
Percival pulou para cima da mesinha bamba da cozinha e sentou-se ao lado de um pote de vidro cheio de terra com um graveto despontando para fora. Diana jogou o pincel no chão e, com a unha comprida e suja, perfurou a tela e fez um rasgo em frente a miniatura do chalé, criando a impressão de que existia uma grande e escura vala no terreno.
- Pronto. – ela cruzou os braços.
O gato mordeu o graveto e o arrancou, depois voltou para o colo da dona.
Não demorou para que vários sujeitos barbudos, munidos de tochas, foices e enxadas, aparecessem . Ninguém mais falava. Todos estavam concentrados e cautelosos, aproximando-se devagar. Até os cães mudaram a postura; as orelhas abaixaram e eles relutaram tanto em seguir adiante que acabaram escapando.
Diana enrolou um cigarro de palha, apertou a ponta e o levou já aceso até a boca. Quando deu uma longa e revigorante tragada, o grupo, a menos de cinquenta metros de sua porta, desapareceu.
Na pintura surgiram várias silhuetas escuras.
A mulher arrancou a tela do cavalete e a atirou nas chamas da lareira, que crepitaram com pequenos e distantes gritos.