Contos de Valanka - Amor Prometido
Almey e Jira cresceram juntos e, naturalmente, desenvolveram afeição um pelo outro. Ele era filho de Lord Gormor Taley, nobre renomado e referência em Kzar nas artes militares, sendo conselheiro direto do general do exército e frequentador cativo da Cúpula dos Anciãos. Jira, por outro lado, era filha do jardineiro de Lord Taley. Como muitos krogs em Kzar, Jira e seu pai ocupavam cargos insignificantes e, frequentemente, trabalhavam em mais de uma função para poderem sobreviver. E, como não podia deixar de ser, viviam no que os kzaristas chamava de Cidade Baixa.
Apesar dos comentários quanto a aparência da amiga, Almey não conseguia se separar de Jira. Uma menina divertida e esperta que sempre se metia em confusão, mas que sempre dava um jeito de tirá-los delas também.
Como todo filho de um nobre kzarista, Almey, frequentava a academia militar de Kzar e tendo o sobrenome do pai, era constantemente assediado pelos professores e figuras importantes, para que esses através do ingênuo rapaz pudessem cair nas graças de Lord Taley. Apesar de ter facilidades e benefícios que seus colegas apenas invejavam, o jovem nobre pouco se importava com a arte da guerra e das batalhas. Seu interesse era pelo conhecimento de culturas e literatura antiga. Interesse este que frequentemente usava para convencer a si mesmo e, ocasionalmente, a alguns colegas mais zombadores, que seu sentimento por Jira era puramente curiosidade pela raça e cultura da amiga de infância.
Mesmo bem-apessoada e de traços femininos, Jira ainda era consideravelmente diferente, com seus quatro braços e pele acinzentada, característicos dos krogs. Eram os olhos dela que mais chamavam a atenção. Roxos azulados, que mesmo nessa raça eram raros, sendo ela assediada por seus semelhantes com mais frequência que Almey gostasse de admitir. Não que tivesse ciúmes, mas os krogs tinham costumes assaz agressivos no que se referia ao trato com o sexo feminino.
Como em muitas das tardes em sua mansão, o rapaz estava sentado já há algumas horas na biblioteca, ouvindo seu pai lhe explicar as formações de batalha que um comandante de batalhão deveria entender para que pudesse liderar os homens de Kzar, uma vez que tivesse se graduado na academia. O discurso tedioso e monotônico de seu pai fez a mente divagar. Olhou para a grande janela da biblioteca que dava para o jardim e para sua alegria cruzou olhares com Jira, que ajudava o pai aparando uma planta ornamental que contornava um caminho até o bosque, como se fosse uma pequena mureta verde. O rapaz imediatamente abriu um sorriso quando viu a amiga imitando as feições de Lord Taley ao dar aulas.
A moça ainda se movia de forma zombadora e, como hábil dançarina que era, dava piruetas e girava as foices que manejava para manter o serviço em dia. O ato ridículo visto de longe despertou o riso de Almey que imediatamente se postou em posição de sentido na cadeira.
— Eu disse algo engraçado?
— Não, pai! Eu apenas me recordei de algo que o senhor Rufio nos contou a respeito deste assunto e que foi de natureza cômica.
— E que comentário sobre formação de flanco foi esse que lhe despertou o riso?
— Não foi nada, pai. Nem me lembro muito bem.
— Mesmo sem se lembrar o tal comentário o fez rir, pois bem, faça-me rir com você.
— Não é nada, meu pai. Na verdade, agora me foi totalmente. Por favor, continue.
Lord Taley com sua costumeira cara de emburrado, apenas grunhiu e se virou para o quadro para desenhar o esquema que estava explicando. Almey rapidamente virou-se para Jira e fuzilou-a com o olhar, indicando que tinha levado uma bronca de seu pai. A moça apenas piscou para ele e este enrubesceu.
Por vários minutos sua mente ficou longe das explicações do pai. A piscadela era o centro da sua atenção. A imagem de Jira lhe lançando um olhar maroto com seus olhos claros arroxeados ficou sendo repassada infinitamente. Virou-se para fitá-la novamente, mas a moça havia saído de seu campo de visão. Sentiu uma necessidade enorme de vê-la, de conversar, de simplesmente estar com ela. Olhou para o relógio no alto da parede da biblioteca, acima dos livros empilhados de forma irregular e constatou que em pouco mais de dez minutos estaria livre de seu pai.
Lord Taley tinha uma rotina todos os finais de tarde. Depois de repassar os temas que Almey vira na academia naquele dia, o nobre dirigia-se ao seu escritório para fumar seu charuto e abrir as cartas que os criados deixavam organizadas sobre sua mesa, junto com seu conhaque favorito. Depois disso, juntava-se a família para o jantar e normalmente recebia alguma visita que ficava até tarde da noite em seu escritório, para daí enfim se retirar para seus aposentos. Sendo ele um homem de hábitos, não tardaria a dispensar o filho e seguir para seu escritório, para ale-gria do jovem rapaz.
— Por hoje é só, Almey. Memorize bem isso e talvez seja condecorado algum dia por tal manobra — disse Lord Taley por fim.
— Pode deixar, pai. Estou dispensado?
— Está, mas aonde vai com tanta pressa?
— Tenho um presente para Jira. Veja, achei esta ponta de medalhão no nosso jardim que acredito ser uma relíquia do povo dela — mostrou, animado, o pequeno objeto enegrecido pelo tempo.
— Tolice! Não quero que seja visto por aí com essa garota. Quando eram crianças, sua mãe, que Valka a tenha, permitia que brincassem por caridade, mas já não é mais uma criança e tem um nome a zelar. Já imaginou o que as outras famílias diriam se te vissem conversando com tal aberração? Não, jogue essa pedra de volta no mato e aja como membro da família Taley.
— Mas pai… — a bofetada que levou interrompeu a frase.
— Escute aqui, seu moleque. Se eu o vir com essa garota mando açoitá-la e faço você assistir para que se lembre do que acontece quando me desafia. Fui claro?
Almey engoliu seco e apenas olhou com ódio mortal para o velho a sua frente.
— Fui claro? — repetiu seu pai, aguardando alguma confirmação que foi dada a contragosto. — Ótimo! E que essa seja a última conversa que teremos a esse respeito.
Seu pai saiu em direção ao seu escritório a passos firmes, deixando a capa cruzar esvoaçante o batente e sumindo de vista. O jovem se sentou pesadamente na cadeira, pensando na ameaça de seu pai, que sabia ser bem capaz de executá-la literalmente caso fosse contrariado. Ver Jira ser açoitada por sua causa lhe pareceu algo impraticável e imperdoável, ainda que a vontade de vê-la fazia com que quisesse arriscar. Não faria isso, não seria ele o responsável por tal castigo.
Punir os criados não era uma prática bem-vista na nobreza, ainda que comum entre os mais poderosos nomes de Kzar. Seu pai era conhecido por sua severidade e implacável sede de sangue no que se tratava de corrigir desvios dos subalternos. Almey já vivenciara vez ou outra tal natureza do pai, mas absolutamente mais branda que comparado aos criados. Enquanto viva, a mãe do rapaz impedia que seu pai lhe tirasse sangue, sendo-lhe permitida apenas bofetadas e agressões de menor severidade. Sua mãe era a única pessoa capaz de impedir a devastadora tempestade de violência que Lord Taley era capaz de imprimir. Na corte havia boatos que a morte da esposa havia sido obra do nobre em um ataque de fúria descontrolada, mas não passavam de conjecturas criadas devido à natureza acidental na qual a esposa de Taley fora apagada do livro da deusa. Fato é que o temperamento da família dos Taley era famoso na corte.
Ponderando suas ações, Almey se dirigiu para seus aposentos que ficavam no primeiro andar. Cruzou o largo corredor, passando pelas armaduras kzaristas e tapeçarias penduradas de maneira organizadas e intercaladas na parede. Abriu a porta de seu quarto e entrou. Jogou sobre a cama seus livros e túnica da academia, vestiu outra mais confortável e sentou-se no pequeno sofá no canto oposto, pensativo.
Um barulho vindo da janela chamou sua atenção. Abriu a cortina e procurou o que poderia ser. A varanda estava vazia e apenas as árvores e arbustos do jardim balançavam com o vento. Virou as costas e novamente o barulho se fez presente. Rapidamente fitou a janela a procura da fonte, mas não obteve sucesso. Resolveu investigar e saiu na varanda semicircular com atenção apurada.
— Ei! — protestou ao ser atingido na testa por alguma coisa.
— Desculpe — respondeu uma voz conhecida, vinda de trás do parapeito da varanda.
Jira se levantou e ficou visível.
— Não vi você aí — disse ela, pulando o parapeito e saltando para dentro da varanda. — Pensei que fosse me encontrar na escada da ala leste. Quando você não apareceu fui atrás de saber onde é que você tinha se metido. O que estava fazendo no seu quarto, todo cabisbaixo?
O rapaz esboçou um sorriso e apenas virou as costas para voltar para dentro.
— Ei! Aonde você está indo? — questionou ela, seguindo o nobre que rapidamente se virou e esbarrou por acidente em seu seio. A pele do jovem avermelhou-se imediatamente, junto com um pedido de desculpas. — Não se preocupe, mas você quer me explicar o que está acontecendo? Você está estranho.
Ele olhou de um lado para o outro como se procurasse por alguém e ao constatar que estavam sozinhos puxou a amiga para dentro do cômodo. Receoso, fechou as cortinas e apagou o lampião que iluminava precariamente o quarto.
— Nossa, quanto suspense — divertiu-se ela. — Vamos planejar um assassinato ou algo assim agora?
— Não! Claro que não!
Almey estava inquieto e hesitante. Esfregava uma mão na outra freneticamente.
— Quer me dizer o que é que está acontecendo? Você está começando a me assustar.
O silêncio no amplo quarto do jovem nobre perdurou por pouco tempo. Almey, a contragosto de sua mente, contou a ameaça de seu pai e do medo que sentia por ser o responsável se algo assim viesse a acontecer com Jira.
— E é por isso que você tem que ir embora, se alguém a vir aqui e contar para meu pai, só Valka é capaz de prever sua reação.
— Se acalme! Em primeiro lugar, não tenho medo de Lord Taley — disse ela com firmeza convincente. — E em segundo lugar, você me prometeu que me levaria até o lugar onde encontrou as relíquias do meu povo.
— Você não ouviu nada do que eu disse? Se pegarem a gente conversando meu pai vai açoitar você!
— Eu sou uma krog de Kzar, acha que eu tenho medo de meia dúzia de chicotadas? Minha raça apanha mais que isso só porque fez mais sol que ontem — ironizou ela rindo da própria desgraça e fazendo Almey ficar com a cara que fazia quando as diferenças sociais entre eles se faziam evidente.
— Não quero que nada aconteça com você.
Ela simplesmente sorriu e olhou-o fixamente nos olhos. Seus poucos centímetros a mais de altura pouco afetavam o movimento seguinte que foi instintivo. A moça tocou-lhe a face e encostou os lábios nos seus. Durou poucos segundos, mas o rapaz sentiu o corpo estremecer e as pernas fraquejarem. Em transe e totalmente envolto no momento, envolveu-a em seus braços e puxou o corpo dela contra o seu. A princípio os quatro braços que lhe abraçavam pareceram estranhos, mas logo a estranheza tomou lugar para o prazer de estar junto de Jira. Tão rápido quando começou, a moça deu um passo para trás e abriu um sorriso enquanto empurrava o rapaz para longe.
— Vamos logo, você ia me mostrar um lugar — disse ela pegando-o pela mão e puxando-o até a porta que dava para a varanda.
— Espere — protestou ele. — Não podemos ser vistos juntos — imediatamente a frase lhe pareceu áspera e temeu ter perdido o momento íntimo trocado, que gostou mais que todos os momentos que já vivera até ali.
— Fique tranquilo, a essa hora estão todos fazendo o jantar de vocês e, além do mais, seu pai ainda deve ficar mais uma hora pelo menos no escritório. O lugar é longe?
— Não, mas…
— Conseguimos ir e voltar em menos de uma hora? — interrompeu ela, sem lhe largar a mão.
— Acho que sim, mas….
— Então temos um plano, vamos logo — disse ela, dando-lhe outro beijo e fazendo com que ele relaxasse completamente.
Os jovens amantes pularam o parapeito da varanda e cruzaram o jardim o mais rápido que puderam e, para tranquilidade de Almey, se ocultaram sob a sombra das árvores do bosque. Estava feliz e com medo ao mesmo tempo. Olhava para trás paranoicamente, como se seu pai fosse aparecer a qualquer minuto, mas quando olhava para a frente via a moça de pele acinzentada e cabe-los esvoaçantes que mexia com seu coração mais do que jamais tivera consciência.
— E agora? Para que lado? — perguntou ela, chegando ao ponto final do caminho que lhes era comum.
Almey, antes de seguir caminho, tomado pela coragem e pela libido que fluía em seu corpo puxou a krog em sua direção e deu-lhe outro beijo. O tempo congelou e o medo sumiu. Era incrível como um simples ato mudava totalmente sua percepção do mundo e as preocupações eram ofuscadas pela mera presença de Jira em seus braços.
— Acho bom você parar com isso se não, não vamos chegar a lugar algum — disse ela afastando-o e imediatamente puxando-o de volta para um novo e caloroso beijo. — Tá, agora chega, se não realmente vamos ter problemas.
— Venha!
Tomado pela coragem recém-adquirida, correu com Jira de mãos dadas até a árvore enorme no meio do bosque que ele havia marcado para mostrar para ela. A planta crescia de tal forma que suas fortes raízes emergiam do solo, formando um labirinto de curvas e protuberâncias. Dos galhos fortes e densos brotavam folhas verdes escuras de forma abaulada, tamanho peso. O chão estava coberto por musgo e folhas em diversos estados de decomposição. Almey conduziu sua amada para o lado oposto do que vieram e mostrou um buraco cavado anteriormente embaixo de uma espessa raiz que emergia da terra. O rapaz agachou e removeu a terra com as mãos, formando uma concha, relevando um pequeno baú de madeira com ornamentos metálicos, em bronze e ferro.
— Como sabe que isso é krog? — perguntou Jira, fascinada, ajoelhando-se ao lado de Almey na terra.
Virando o baú, uma inscrição se fazia visível. As palavras estavam no dialeto antigo dos krog que o rapaz conhecia de seus estudos às escondidas. Apesar de gasto pelo tempo e pela condição em que foi preservado era possível ler os dizeres:
“Que nosso amor se faça eterno. L & F”
— O que tem dentro? — questionou Jira, aconchegando-se mais perto de Almey. Ela era curiosa tanto quanto ele e amava indagar sobre a origem das coisas e da história de cada objeto. Tema que os mantinha entretidos por horas a fio. O caixote a ser aberto era talvez o melhor presente que Almey poderia lhe dar.
— Veja por si mesma — disse ele, dando-lhe o baú com um sorriso satisfeito.
Jira analisou a tampa e viu que bastava virar o trinco danificado para que o baú mostrasse seus segredos. Dentro e cercando toda a lateral, havia um belo forro vermelho e acolchoado que, apesar de alguns pequenos rasgos e da sujeira, estava em ótimo estado. No centro, um medalhão danificado com o símbolo da deusa Valka, um grande “V” com duas linhas paralelas embaixo, se fazia visível. O objeto de metal estava enegrecido e algumas partes enferrujadas estavam quebradiças, não condizendo com a mesma condição do baú, o que indicava que era ainda mais antigo. Além do medalhão, oito anéis se espalhavam pelo fundo, alguns em melhor estado que outros.
— Você achou um ástarhringur.
— Um o que?
— Ástarhringur, é parte de um ritual antigo dos krog que minha mãe me ensinou — explicou ela pegando os anéis. — Cada anel deve ficar em uma mão do homem e da mulher. Se os anéis mostrarem a inscrição ao tocarem as mãos, os dois estão prometidos para a eternidade e o laço de sangue entre os dois é feito.
— Achei que só irmãos krog tinham o laço de sangue — disse ele, mostrando seu conhecimento da cultura da raça dos seres de quatros braços, onde irmãos nascem com um laço de sangue em que sempre se protegerão e nunca deixarão de se amar. Segundo as histórias antigas, Valka criou o laço após a briga entre dois irmãos krogs e, portanto, tendo sido criado pela deusa não podia ser quebrado.
— O laço entre irmãos vem de Valka, mas o laço do Ástarhringur, vem do amor verdadeiro e genuíno entre dois krogs. São objetos extremamente raros e poderosos, se o laço é feito, os dois estão presos um ao outro para todo o sempre.
Os dois ficaram admirando os anéis de bronze que a princípio pareciam simples relíquias, mas que continham um poder incrível.
— Será que funciona com humanos? — indagou, hesitante, Almey.
Jira ficou pensativa. Os dois estavam pensando a mesma coisa. Ela, tomando a iniciativa, colocou os anéis em seus dedos, um em cada mão. Pegou das mãos de Almey os restantes e colocou dois anéis em cada mão dele.
O estalo de um galho ao longe os assustou. Vendo que não era nada e mais tranquilos, apenas trocaram sorrisos bem-aventurados.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou ela. — E se funcionar?
O rapaz apenas olhou em seus olhos profundamente e segurou duas das mãos dela com as suas. Nada aconteceu. Jira engoliu seco e tomando fôlego, pousou as mãos livres sobre as demais. A princípio pareceu que havia falhado, mas quando estavam prestes a se separarem os anéis de bronze começaram a exibir uma coloração diferente. A luz vermelha brotava e expunha inscrições ao longo de toda a superfície dos anéis. Assustados, os dois tentaram soltar suas mãos, mas algo os impedia. Era como se a mente não mais controlasse o corpo, somente o coração era capaz de soltar suas mãos e ambos não queriam tomar tal ação. As inscrições nos anéis brilhavam cada vez mais fortes até o ponto de parecerem sair e flutuar no ar. As letras em krog antigo voavam e circulavam seus corpos, formando uma corrente que girava cada vez mais rápida. Admirados os dois amantes fizeram contato visual, neste instante as palavras flutuantes pararam de girar, brilharam ainda mais fortes e retornaram para os anéis.
Suas mãos se soltaram, mas havia algo diferente. Estavam conectados de uma maneira além do físico. Sentia uma alegria plena e uma paz que inundava cada centímetro de seus corpos. Estavam prometidos um ao outro para sempre.
Extasiados, se abraçaram e se beijaram com tamanha felicidade que as trocas de carícia anteriores pareceram meras gotas em um oceano infinito.
— Por Valka! Temos que voltar! — alarmou-se Almey ao se dar conta da falta de luz solar.
Caminharam a passos largos. Os anéis não brilhavam mais, voltando a cor de bronze e aparência relativamente simples. A volta, com um pingo de preocupação, foi alegre. Não conseguia separar sua mão da de Jira, que o fitava sempre com seus olhos claros e hipnotizantes. Teve uma vontade enorme de largar tudo, seu pai, a academia, a mansão, Kzar, tudo. Só queria viver a vida ao lado da amada cujo destino estava ligado ao seu para sempre. Não tinha interesses pelas batalhas vis que seu povo travava com o reino de Valanka a décadas. Queria uma vida tranquila, cercado pelos livros e pelas pessoas que realmente importavam, cujo intelecto movia o mundo.
A alegria do jovem casal durou pouco, pois tão logo cruzaram o bosque e chegaram ao jardim, se depararam com um dos criados da mansão que pela expressão deixou claro que estava lhes procurando. Em questão de segundos mais dois criados se juntaram a eles e não demorou muito para Lord Taley em pessoa estar fitando o casal com o horror estampado no rosto.
O nobre esbravejou, xingou e rogou mil pragas ao filho, que apenas se punha entre o pai e a amada. Os criados estavam todos em silêncio, apenas observando a cena, não ousavam interferir na intensa demonstração de fúria de seu senhorio, sabendo que qualquer ação não calculada resultaria em punição para si mesmos. A gritaria chamou a atenção das visitas de Lord Taley, que haviam chegado mais cedo que de costume, e olhavam pela sacada do segundo andar da mansão. Lord Scarbrow e sua esposa tinham expressões assustadas diante do escândalo de seu anfitrião, mas foi o olhar de nojo e desprezo que Almey identificou ao observar os nobres na sacada.
— Maldito menino! Eu devia espancá-lo como faço com os criados por manchar o honrado nome dos Taley dessa maneira! — vociferava seu pai, cedo de ódio. — Afaste-se dessa aberração imediatamente!
Tomado de coragem, Almey se recusou. Declarou seu amor por Jira e desafiou seu pai ao mencionar casamento.
— Nunca! Morrerei antes de ver alguém com o nome de meus antepassados ao lado de tal criatura. Tragam meu açoite! Darei uma lição nesses imbecis para que saibam seu lugar.
— Não encostará em um fio de cabelo sequer de Jira! — protestou Almey estufando o peito e se posicionando como homem feito.
A cena despertou uma gargalhada em seu pai, que apenas esticou a mão para pegar o flagelo que um criado lhe entregara.
Almey, em todo seu medo, mas inundado por um instinto protetor pegou um galho caído do chão e fechou a cara para a figura ameaçadora de seu pai. A cena tenebrosa e chocante provocava suspiros e burburinhos aos espectadores. Tal espetáculo nunca seria aceito na corte e seu pai em sã consciência jamais daria oportunidade ao azar de seu bom nome cair em desgraça, mas a imagem de Almey e Jira juntos despertou tamanho ódio que parecia que apenas Valka em pessoa poderia tranquilizá-lo.
— Milorde, os convidados — sussurrou um dos criados para seu senhorio ao perceber que os visitantes assistiam a tudo do parapeito as suas costas.
— Por Valka, menino! Veja o que fez! Aionus levará sua alma quando eu terminar com você! — esbravejou ele quando percebeu que a situação era ainda pior que imaginava. Além do filho ter lhe desgraçado ainda teria de convencer Lord Scarbrow e a esposa a não espalhar tal situação.
O nobre pisoteou tudo em seu caminho e girando o açoite sobre a cabeça desferiu golpe sobre golpe no filho e em Jira que apenas se encolheram para se proteger. Almey abraçou sua amada e deu as costas para o pai, recebendo a maior parte das chicotadas. Jira tentou se desvencilhar, mas a força do rapaz a impedia de se mexer.
Ofegante e cansado o velho Taley logo parou, deixando as costas do degenerado filho em frangalhos. O sangue vertia de onde a pele aberta enunciava a fúria do castigo.
Jira tomada pela raiva de ver seu amado em sem forças de mover um músculo pegou o galho do chão e tentou defender Almey com toda chama da vingança dentro de si. O laço de sangue a deixara ainda mais impulsiva do que já era. Mas antes que pudesse concluir o ciclo de violência, os criados de Lord Taley se aproximaram e a agarraram, defendendo seu senhorio, pois sabiam que não fazer nada significada compartilhar o destino do filho do velho nobre.
— Amarrem esta daí para que eu repita a lição que acabo de dar em meu filho.
— Lord Taley? — chamou-lhe uma voz conhecida a suas costas.
O nobre se virou e deu de cara com Lord Scarbrow, com suas túnicas azuis escuras e detalhes brancos, que havia descido de seu lugar cativo para se juntar a todos no jardim. Rapidamente, Lord Taley assumiu uma postura polida e cordial, como se seu frenesi de ódio não tivesse passado de um pequeno deslize.
— Peço-lhe perdão por tamanha cena, milorde — disse em uma reverência. — Meu filho não me deu escolha a não ser dar-lhe a merecida lição, como pôde, infelizmente, testemunhar. Entendo perfeitamente o quão deselegante possa ser para o ilustre nobre ter de acompanhar um pai corrigindo as falhas de caráter de um filho, mas sei também que entende que não posso deixar que tal desgraça recaia sobre mim sem que eu faça algo para impedir seu curso.
— Claro, milorde. Entendo perfeitamente — respondeu o recém-chegado com um sorriso malicioso. — Entendo também que tal situação deva ficar entre nobres, para que seu bom nome não seja vítima de infâmias e injúrias infundadas.
— Claramente — proferiu Lord Taley com os dentes serrados, entendendo onde seu companheiro queria chegar e seguindo a contragosto. — E imagino que seria de bom tom de minha parte oferecer-lhe algo para minimizar-lhe o infortúnio.
— Tenho certeza de que se vossa excelência proferisse meu nome como um bom candidato a general de campanha para a Cúpula dos Anciãos, tal infortúnio seria de certo esquecido diante de tal benevolência de vossa parte.
A expressão de Lord Taley era inflexível. Diante de uma inevitável desgraça de seu nome não lhe restava escolha a não ser acatar ao suborno de seu nobre convidado, que acabara de ganhar uma nomeação ao cargo militar mais importante de Kzar vindo direto de seus lábios para os ouvidos dos Anciãos.
— Agradeço sua boa vontade, milorde — as palavras passaram como serragem pela voz de Lord Taley. — Agora, se me permite, darei fim a lição dos jovens infelizes.
— Posso sugerir visão alternativa a vossa excelência quanto a situação em mãos?
— E que visão seria essa?
— Obviamente, eu e minha esposa manteremos discrição quanto ao que viemos a testemunhar hoje, entretanto, acredito que não possa seguir seu atual curso de ação.
— E por que diz isso? — questionou o nobre Taley, contendo com todas suas forças o ódio que sentia, mas que não ousaria demonstrar contra um colega da corte.
— Veja, a continuidade do castigo com tamanha agressividade poderia vir a matar seu filho e, como bem sabe vossa excelência, seu nome carrega boatos quanto a morte de sua esposa. Calúnias, claramente, mas ainda assim boatos um tanto desagraveis. Eu mediante tal situação não poderia deixar de oferecer-lhe uma solução alternativa em que seu filho seria castigado e seu nome preservado.
— E o que me pede diante de tamanha generosidade?
— Apenas que a retribua com a sua própria. Tenho certeza de que vossa excelência me teria como um grande e querido amigo, tendo-lhe ajudado de tal forma, estou correto em minha inferência?
Lord Taley respirou fundo. Pensava na proposta à mesa. Dar a Scarbrow mais visibilidade do que ele possuía era perigoso, mas seu nome estava ainda mais em risco. Sabia dos boatos, sabia dos cochichos e o nauseava a ideia de Scarbrow levar a melhor sobre ele.
— Qual solução me sugere, milorde? — proferiu finalmente o nobre Taley sem ver alternativa.
— Levarei seu filho para o campo de batalha, onde seu bom nome será preservado. Como bem sabe, meus oficiais são experientes em minimizar a presença de herdeiros e jovens de bom berço que porventura necessitem de uma correção de curso.
De fato, tal fama dos batalhões de Lord Scarbrow lhe eram familiares. Filhos de colegas nobres e homens de fortuna eram constantemente enviados aos campos de batalha sob nomes falsos nos papéis e colocados sob o comando rigoroso de oficiais que tiravam proveito dos altos salários pagos pelos patriarcas para que os mantivessem vivos, mas sem o risco de causarem maiores danos à família.
— E o que faço com a criatura?
— Se ela ficar aqui ou se vossa excelência lhe tirar a vida, acredito que o efeito do boato se dará o mesmo. Diante de nossa amizade recém fortalecida eu posso escondê-la em uma de minhas fazendas, tenho uma boa porção desses krogs por lá e tenho certeza de que meu capataz é mais que competente na correção de caráter deste tipo.
Não tardou até que o plano de separar os jovens amantes se colocasse em andamento. Almey foi colocado em uma carruagem para ser levado até o acampamento das forças de Lord Scarbrow e Jira foi aprisionada em outra com destino as fazendas do nobre.
Ambos ainda usavam o Ástarhringur, que brilhou em suas mãos ao sentir a separação dos dois prometidos. Não lhes foi dada a oportunidade de despedida, tampouco era necessário expressar em palavras o juramento que faziam em seus inconscientes e que fora reforçado pelo laço de sangue entre eles. Os anéis marcavam e prendiam seus destinos e isso era algo que nenhuma distância poderia separar.
Almey tinha apenas uma certeza. Ele iria encontrar Jira novamente.