Navegar é preciso

Era uma vez uma feiticeira que se deixou enfeitiçar pelos olhos mais penetrantes que já havia visto. Mas esse é o final da história...

Naquela noite a feiticeira navegava distraída... seu passatempo favorito naqueles tempos em que andar pelas ruas e calçadas, circular entre os humanos, era algo muito perigoso. Ela conectava seu barco LG e adentrava o mar, sentindo a brisa ou o vento forte que às vezes soprava, atenta aos ruídos noturnos, feliz com a aventura que se aproximava.

Desde criança o mar despertava nela aquela emoção, misto de alegria com curiosidade – especialmente após o pôr-do-sol, quando as luzes da cidade se refletiam nas águas, e o som das ondas se sobrepunha a todos os outros barulhos. “O que se esconde por trás daquelas sombras? O que estão dizendo essas águas? Quem estará lá, agitando esse mar e fazendo essa música misteriosa?” A pequena feiticeira então ficava a imaginar respostas a todas as suas perguntas.

O tempo passou e a feiticeira se tornou mulher. O mar continuava lá, com sua música e seu mistério. Quem mudou foi ela... percebeu sua coragem, construiu seu barco e adentrou o mar. Enfim, iria conhecer de perto aquele que sempre a encantara.

Preciso explicar uma coisa importante: até esse ponto de sua vida, a feiticeira ainda não conhecia seus poderes mágicos. Havia vivido como uma mortal como todos nós.

Retomando aquela noite, em que ela navegava distraída ... o mar estava muito calmo e o céu forrado por estrelas luminosas... Uma paz imensa a inundava e, quanto mais ela ia para o mar alto, maior a claridade refletida nas águas e mais o som das ondas se confundia com o ritmo de sua pulsação. Foi então que ela ouviu aquela voz. Era firme, masculina, pausada... também ao ritmo das ondas e em harmonia com seu coração... as palavras eram claras como as estrelas lá em cima... e refletiam a sua alma... ela respondia e era perfeitamente compreendida... era como se ambos se conhecessem há muito tempo. Conversaram durante horas, que parecerem poucos minutos, mas os primeiros raios da aurora indicavam que era tempo de voltar à praia.

Despediram-se sem marcar retorno, como que sabendo que estariam para sempre juntos. Mas que mania é essa de contar o final da história, estando ainda no meio dela? Talvez porque um final feliz é o que todos esperamos e é como se quiséssemos que acontecesse logo, pra gente já ficar feliz... mesmo agora, no meio da história.

Pois então, em todas as próximas noites em que a feiticeira chegou ao alto-mar, lá estava ele, ou melhor, a voz dele... e os dois conversavam, conversavam, conversavam... Eles nunca haviam se visto. As ideias que trocavam, as emoções que se tocavam quando falavam, eram suficientes. Até que uma noite, combinaram de se descobrirem... A alegria e a curiosidade se misturaram à ansiedade: “E se nos decepcionarmos?” Resolveram correr o risco, afinal já estavam muito envolvidos um com o outro.

E naquele dia, a chegada da aurora anunciou que era tempo de se aproximarem ainda mais... permitiram que a luz do dia revelasse detalhes dos seus contornos, viram-se refletidos no olhar do outro, aproximaram seus corpos e se tocaram, confirmando em suas peles a sintonia já conhecida por suas vozes... Foi então que a mulher descobriu seus poderes mágicos, foi aí que percebeu que seus feitiços estavam em cada célula do seu corpo e que queria usar cada um deles para ser feliz juntamente com aquele homem que sempre estivera lá, no alto-mar, à sua espera.

Era uma vez uma feiticeira que se deixou enfeitiçar pelos olhos mais penetrantes que já havia visto.