A Morte da Megera

Sentia o calor das lágrimas descendo pelo seu rosto, quentes como se queimassem sua pele. Não poderia retornar ainda, mesmo que parasse agora os seus olhos vermelhos entregariam-no para o pai, que o castigaria por essa feminilidade, testando-o para ver se durante o castigo fraquejava. Seria pior se fraqueja-se.

Caminhar pelo campo deveria acalmá-lo, seus olhos secariam e nunca mais choveria deles, prometeu para si mesmo. Qual o nome daquele campo? A mãe não saberia, o pai talvez soubesse, mas era perigoso e deveria fazer com cuidado.

- É corajoso ou está perdido pequenino?

Virando-se viu a mulher pálida. Era mais alta que o pai, mais esbelta que a mãe, branca como osso ou nuvens, mechas negras como a noite corriam juntas com mechas de prata de seus longos cabelos ondulados mas que não formavam cachos. Teve vontade de pegar neles.

- Não estou perdido, apenas passeando, minha senhora.

- Sabe onde está?

- Não minha senhora, mas sei como voltar para minha casa, não estou perdido.

- Esta cesta está muito pesada para mim, carregue ela até minha casa.

Ela estava vestida de forma rica e elegante, as cores de sua roupa eram o vermelho sangue, o dourado sem brilho, tintas caras. Contrariar os ricos era muito perigoso, sabia tanto pelo pai quanto pela mãe e obedeceu.

Caminhavam juntos, e o medo que sentia o fez murmurar, baixinho para não ser ouvido uma canção para acalmar-se. Ela começou a cantarolar junto com ele e isso deixou nervoso, mas conforme caminhavam, cantar juntos o relaxou mais e mais.

A cesta estava cheia de plantas, bem como animaizinhos mortos e algumas pedras. Conforme caminhavam, mais coisas a mulher pálida acrescentava na cesta. Sentia seus dedos doerem enquanto ficavam roxos, mas não devia reclamar, sabia.

A casa dela devia ser a casa mais alta do mundo! Possuía três andares, suas paredes eram negras e no teto cresciam várias plantas. Entraram e ela indicou os lugares onde devia pôr cada coisa. Ela possuía muitos livros e ele quis saber o que havia neles. Ela deu-lhe a vassoura para que limpasse a casa.

- Garoto burro, não sabe nem varrer?

- Minha mãe é quem limpa nossa casa, meu pai não me permite fazer tarefas de mulher, é a ele a quem ajudo no trabalho.

- Seu pai é idiota. Ensinarei uma única vez e é melhor que aprenda.

Ele varreu suficientemente bem para que ela apenas reclamasse e no fim dissesse “não está tão ruim para uma primeira vez, afinal”.

Deu-lhe um doce como agradecimento e o enxotou de volta para sua própria casa.

- Minha senhora, gostaria de lhe perguntar algo.

- Rápido, rápido.

- Qual o nome da senhora?

- Almenara.

Ele esperou que ela perguntasse o nome dele, mas apenas ficou em silêncio.

- O meu nome é Zeo, tenho sete anos.

- Que bom. Não quer ir para casa não Zeo, quer morar aqui é?

- Agradeço minha senhora, mas já vou.

Ela não devolveu sua despedida, apenas deu de costas, entrou na casa e bateu a porta.

A noite começava quando chegou em sua casa e sua mãe ajudou a escondê-lo, pois o pai o castigaria se soubesse de sua longa ausência. Tomou banho e antes de dormir, pela fraca luz da lua que entrava por um furo no teto, observou o presente da mulher pálida, o doce de Almenara, e na escuridão provou-o lentamente.

Não entendia o motivo exato de não dizer nada aos pais sobre a mulher pálida, mas continuou com seu segredo e com suas visitas até ela sempre que escapava dos trabalhos que seu pai lhe dava, o que não podia ser todos os dias para sua tristeza.

Ela falava com ele, e gostava disso. O pai apenas lhe dava ordens e gritava quando fazia algo errado, enquanto a mãe pertencia a seu próprio silêncio, sempre que levada a falar alguma coisa parecia perdida com as palavras, como alguém que entrava em uma oficina se perdia com aquelas ferramentas, sem saber qual coisa era para que. Havia momentos em que ouvia sua mãe falar espontaneamente, era quando chorava baixinho, para que ninguém a visse. Esses momentos poderiam ser o começo da conversa, mas aprendeu que não, quando ia até ela o choro se encerrava no momento que soubesse que não estava sozinha, e voltava a ser inacessível ao filho.

Nenhum dos pais gostava de ser perturbado por Zeo, o pai deixava isso bem claro, e a mãe não suportava ser retirada de sua solidão, como se isso fosse mais doloroso que uma surra. Verdade que tentava ser agradável e fingir que não, mas era má atriz.

Almenara fingia se aborrecer com Zeo, mas ia emendando um assunto no outro, e conversavam e conversavam. Em algum momento, passou a permitir a presença dele mesmo quando não havia nada em particular para fazer, e depois, com um pouco mais de ousadia, perguntou sobre os livros.

- Pode ler, só não os danifique.

- Não sei ler senhora Almenara.

Com alguma ousadia que vinha sem saber de onde, as palavras saíram sozinhas, sem sua permissão.

- Eu gostaria bastante que fosse a senhora quem me ensinasse.

Ela não deu a sua risada de deboche e desdém, não deu a de educação, que ela nunca havia dado para ele, só outros. Ela deu a sua risada verdadeira, e isso o deixou tão feliz que foi como se fosse a primeira vez que aquilo acontecesse.

Os livros falavam do passado antigo, de terras muito distantes e Zeo assustou-se com a idade do mundo e o seu tamanho. Talvez fosse ainda maior e mais antigo, pois estava escrito que havia muito por saber. Falava também dos segredos sobre a física material e a etérea, do fogo que dorme no coração da matéria e o frio que arde na essência do vazio, da constituição do corpo e espírito das diversas raças de gente espalhadas no mundo, como os dragões e vampiros, nagas e fadas, humanos, sereias…

- Eu gostaria de conhecer as outras gentes.

- Por quê?

- Todas as pessoas que conheço são humanas, seria muito legal conhecer uma pessoa que não fosse. Elas poderiam ter personalidades e modos de pensar incrivelmente diferentes não? Seria algo desafiador e enriquecedor.

- Você já me conhece Zeo, não pense que me sentiria constrangida de você dizer isso.

Ele realmente não havia percebido aquilo.

- De que gentes minha senhora é?

- Da Necrópole.

Os revenantes, Zeo sabia. Os sábios e maravilhosos governantes da terra. Quando a primeira vida dos melhores entre o povo se encerrava, os revenantes os escolhiam para que renascessem em sua segunda vida como um deles, e da capital, a fortaleza Necrópole, governavam. Em sua primeira vida ela havia sido humana, sem dúvida, mas o que fazia longe de seus semelhantes nesta vida?

Nos dias seguintes, leu sobre as origens do povo da senhora Almenara. Não se sabia com certeza, mas havia detratores que a Necrópole havia sido um refúgio para os soldados abandonados de Vizir, por sua esterilidade deveriam tomar entre os vivos pessoas para repor seus números, e assim fundaram o culto aos heróis, ancestrais, mortos e espíritos, em desfavor a religião mais antiga que antes existia naquela terra, cultuadora das forças naturais, da terra e no céu. Na nova fé, os revenants eram as deidades mais próximas dos mortais.

- Ó santa, alertasse-me antes para que eu usasse a palavra correta, perdão mil vezes pelo tratamento desrespeitoso.

Ela riu o riso verdadeiro, mas desta vez ele foi expansivo. A alegria dela era calma e quieta, como comer torta e tomar chá durante uma tarde chuvosa, mas aquele riso foi barulhento e extravagante, como os que o pai dava quando voltava embriagado para casa, normalmente a embriaguez o deixava selvagem, mas por vezes acontecia essa outra coisa.

- Eu gosto que você me chame apenas por senhora.

E o seu sorriso disse sim por ele.

Um certo dia sentiu-se movido até uma certa parte do quintal da casa de seus pais. Talvez seus sentidos espirituais houvessem se refinado após todo o aprendizado com santa Almenara (entre si ele a chamava apenas por senhora, mas consigo mesmo era santa, pois era o que ela era).

O mato que estava lá não tinha raízes firmes na terra, e a terra era mais macia do que deveria. Por dias a mãe não estava em lugar algum e o pai o ordenava que fizesse as tarefas domésticas no lugar dela. Zeo soube que deveria ir e ficar com a santa, dizer tudo, e que era perigoso estar próximo do pai. Aproveitou-se de um de seus momentos de embriaguez e partiu por dentro da noite sem lua, com nuvens cobrindo as estrelas, sem levar fogo algum consigo para que não fosse visto.

Sua caminhada fora estranha, pois tudo ouvia e discernia, o som abafado de seus passos, sua respiração lenta e os batimentos do próprio coração, acelerado e irregular. Esforçou-se para que cada longa inspiração possuísse o mesmo número de batimentos que a expiração, e que ambas começassem e terminassem em uma das pausas do seu coração, e isso funcionou para os batimentos tornarem-se ritmados, mas continuavam mais rápido do que deveriam.

Também ouvia outras respirações, as de animais do dia tendo seus sonhos, e os da noite. Sentia seus olhos sobre si, sabia a distância e a direção em que estavam, embora não soubesse qual o nome dos sentidos que lhe diziam isso, apenas não era um dos cinco que sabia o nome. Na segurança da casa da mulher pálida haveria um livro com o nome.

Um deles aproximou-se com cautela, e Zeo olhou na direção dele, olhando-o onde sabia que os olhos do animal estavam. Por um breve momento, seus olhos sentiram a forma do animal, como se o visse, mas era muito diferente de ver, descreveria que era como se o mundo se preenchesse de uma intensa luz de cor negra.

O animal parou, afastou-se e se foi. Talvez pensasse que os olhos do menino o viam, mas de toda forma, saber que era percebido o afastou. Zeo continuou e alcançou a casa da santa.Pisando onde sabia que os degraus estavam até estar de pé diante de onde sabia que a porta estava, levantou a mão e bateu.

- Você chegou aqui! Impressionante, como o fez?

No longínquo leste, nas terras dos vampiros de Ur, as raças todas comungavam sua fé. Para eles a escuridão era a deusa mais antiga que o tempo, suas outras faces eram o silêncio, a paz, e em uma de suas canções diziam que cobrirem-se com seu manto para protegerem-se dos olhos de seus inimigos, que segurassem na sua mão quando caminhassem em seus domínios e não se perdessem, mas manteve esses pensamentos heréticos para si.

- A minha sensitividade melhorou por sua graça, minha senhora.

Contou-lhe tudo o que havia de ser contado, e lágrimas queimaram o seu rosto, mas a santa sentou-se ao seu lado, o frio do toque das mãos dela aliviaram aquele ardor, e seu ouviu seu coração tocar a calma melodia que lhe era apropriada. Os braços dela o envolveram, e ele pode ouvir aquele coração também. Batia sem pressa, calmo e lentamente, a longa inspiração e expiração da santa cabiam calmamente em um único batimento. Essa canção parecia-lhe a mais bonita que já ouviu. Aprenderia algum instrumento para poder dá-la ao resto do mundo, que tinha os ouvidos destreinados.

Sua amiga a escuridão se foi cedo demais, e com ela veio o dia, com o dia veio a luz, e com a luz vinha a visão de coisas desagradáveis. Juntos fizeram o caminho inverso, até a casa do pai. Ele não queria, mas a senhora disse que o fizessem então fariam. Não se deve desobedecer uma santa.

Ela e pai conversariam sozinhos, ele deveria ir para longe, sentar na beira do caminho para não ouvir. Sentou-se onde e conforme foi lhe dito, mas decidiu desobedecer e ouvir.

Seria mais difícil que na noite anterior, mas estaria parado, sem ter que prestar atenção em andar. Fechou os olhos pois ainda dependia da escuridão, harmonizou o coração e a respiração, e foi procurando. Seria fácil pois sabia a direção e distância, além de conhecer bem a voz dos dois. Encontrou-os.

- A santa não pode castigar-me, não fiz nada, juro.

- Jurar mentiras diante de mim é mais grave que derramar sangue, sabes?

- Sim, sei, mas não matei ela. A encontrei enforcada no mato, pensei que ela mesma fez isso. Por favor, não conte a ninguém, a terra onde se enterra um suicida é maculada, bem como sua casa. Se se souber como ela morreu não haverá se escreverá seu nome no livro de preces, não se acenderá vela para ela nos dias santos. Ela era uma boa mulher, merece ser lembrada.

- Não atestarei sua história, mas esquecerei todo esse caso. O menino, fará que com ele?

- A senhora quer ele? Eu o vendo.

- Quanto?

- Quarenta moedas?

- Não para você. Três porcos.

- Podem ser cinco?

- Ele é um bom rapaz, pode ser.

Abriu os olhos, já sabia o que precisava saber. Despediu-se do pai com educação, e depois estavam caminhando juntos para a casa da santa.

- Eu comprei você de seu pai Zeo, agora vai viver comigo. Precisa me chamar de mestra apenas na frente dos outros, entre nós continuo sendo senhora tudo bem?

- Obrigado minha senhora, me deixa feliz. Ele disse algo sobre a minha mãe?

- Ele disse que ela se matou. Pode até ser que seja verdade, ela era uma mulher jovem e ele um velho reumático, ela podia aceitar uma surra ou outra, afinal era esposa, mas se brigassem pra valer acho que ela mataria ele.

- Entendo minha senhora.

Ficava nervoso no começo, mas depois acostumou-se em dormir junto com a mestra, a fria pele era agradável, possuía a textura das páginas dos livros antigos.

- Quero aproveitar ao máximo esse momento que temos juntos Zeo, você já tem onze anos, não demorará para ter pelos em suas partes, e aí não mais quererá fazer amor com uma velha morta como eu.

- Minha senhora, perdoe que eu discorde, dormirei sempre na sua cama e na de nenhuma outra, amo olhar e admirar sua nobre beleza.

Ela respondeu com um silêncio e sorrindo seu sorriso de educação para ele pela primeira vez, e mais essa mágoa somou-se em seu coração, mas não pode protestar pois o apertou contra seus seios com força.

Os anos trouxeram a guerra. Notícias murmuradas no começo, e mais e mais próximas, até que certa vez retornava sozinho para a casa, encontrando-a já em cinzas frias. Aproximou-se de alguns soldados que haviam ocupado a região e soube da história de terem matado um demônio que morava na floresta, uma morta vinda da necrópole, ouviu também que colocaram fogo purificador em sua casa, mas essa parte já sabia.

Os soldados vinham do noroeste, um pouco mais do norte do que do oeste, era verdade, carregavam sob a bandeira do reino de Rimiz, mantinham uma fé tola, rezando para os senhores dos céus, das terras, mares e rios. Soubessem que para tais senhores o lobo e o carneiro são como iguais, sem fazer nenhuma distinção particular. Zeo mantinha a fé mais sóbria, era para os mestres antigos que se deveria rezar, e agora ele tinha duas para guiá-lo, sua mãe de parto, que em verdade fora mais como uma irmã mais velha, e Almenara, que fora sua mãe, professora mulher e dona, e com quinze anos fora tomada dele. Um pé e depois o outro, um passo de cada vez, como fora uma vez em uma noite sem lua com as estrelas encobertas por nuvens foi para o leste. Precisava recuar antes de avançar.