A passagem nas montanhas
A charneca onde Symara vivia era tão inóspita e desolada, que a principal fonte de renda dos seus habitantes vinha da criação de cabras. Some-se a isto uma altitude elevada, montanhas pelos quatro lados, e total ausência de agrupamentos humanos maiores de que meia dúzia de casas, para fazer com que o lugar não tivesse qualquer interesse para o reino, fosse estratégico, fosse econômico. O que, pensando bem, era uma boa coisa; mesmo cobradores de impostos, raramente apareciam por lá. Portanto, foi com certa apreensão que Symara acordou certa manhã bem cedo e, ao abrir a janela do quarto, pensou ter visto um vulto deslocando-se pelo campo próximo, em meio ao nevoeiro matinal. A casa mais próxima ficava a mais de 200 m de distância, e aquele campo não era um caminho de passagem habitual dos locais.
- Acho que vi alguém no campo mais cedo - alertou, ao se reunir com os pais e irmãos na cozinha, para servir o desjejum.
- Ninguém conhecido? - Inquiriu o pai, testa franzida, enquanto ela lhe enchia a caneca de leite de cabra.
- Não reconheci, havia muito nevoeiro esta manhã - admitiu Symara. - Mas o mais estranho é que os cães não latiram.
- Talvez não fosse nada - minimizou a mãe.
- Melhor você ir dar uma olhada - determinou o pai para Uziel, o filho do meio. - E leve um dos cães.
Uziel desencumbiu-se da missão e voltou pouco depois.
- Vi pegadas... alguém usando botas, talvez um soldado.
- Sozinho? - Questionou o pai. - E que rumo tomou?
- Havia apenas essas pegadas... seguiam na direção das Montanhas Enevoadas, mas perdi o rasto por conta das pedras. O sabujo tampouco conseguiu ir muito além.
- O que estaria um soldado fazendo nesse fim de mundo? - Questionou a mãe, pensativa.
- Se estava só, pode ser um desertor - ponderou o pai. - Talvez o reino esteja em guerra, as notícias demoram para chegar aqui em cima.
E virando-se para as duas mulheres da família:
- Até que que descubramos o que está acontecendo, melhor não se afastarem de casa. Pode ser perigoso.
Symara e a mãe aquiesceram.
* * *
Na manhã seguinte, cumprindo as ordens do pai, Symara estava no campo próximo de casa, pastoreando as cabras, quando viu uma sombra escura emergir do nevoeiro. Antes que pudesse gritar, o homem, numa armadura negra cheia de mossas, já estava sobre ela.
- Preciso de ajuda - ele declarou, pressionando a mão enluvada sobre a boca dela. - Não grite.
Mesmo que quisesse, Symara não poderia gritar; o soldado era bem mais forte do que ela.
- Tenho que atravessar estas montanhas para chegar ao reino de Gorr - prosseguiu ele em voz baixa, sentando-se ao lado dela sobre uma rocha. - Mas antes, vou precisar de provisões; não como há dois dias. Se eu tirar a mão da sua boca, promete não gritar?
Symara, por gestos, indicou que não iria denunciar a presença dele.
- Vou confiar em você - decidiu-se ele. - Ademais, estou armado e não quero ter que machucar ninguém...
Symara respirou fundo ao ser liberada, o coração batendo forte na caixa do peito. O homem devia ter cerca de 30 e poucos anos, barba negra, uma cicatriz percorrendo-lhe a face esquerda.
- Por favor... não faça nada contra a minha família. Somos pastores, não temos posses - murmurou.
- Não quero tirar nada de vocês - replicou o soldado. - Mas preciso de comida e de dormir um pouco; se tiverem um celeiro, estaria perfeito para mim.
- Você precisa falar com meu pai - aventurou-se a moça.
O homem balançou a cabeça, em concordância.
- Acho que vou arriscar - deliberou, erguendo-se.
Mas manteve a mão no punho da espada.
* * *
Para surpresa de Symara, seu pai recebeu Arlun, o cavaleiro - pois este era o posto dele - à mesa de refeições. Arlun comeu e bebeu como quem não o fazia a dias, e agradeceu a hospitalidade.
- Preciso descansar um pouco, antes de seguir meu caminho - explicou, após pagar pela refeição com um dobrão de prata que certamente valia mais do que a casa de Symara com tudo o que tinha dentro.
- Há palha no celeiro, pode tirar seu sono lá que ninguém o irá incomodar - prometeu solícito o pai.
Arlun o fez, e o pai deu ordens aos familiares que não o perturbassem.
- Temos que prestar solidariedade a este homem - explicou, quando voltou para junto da mulher e dos filhos. - Ele está perdido.
- Mas havia nos advertido contra desertores, pai - relembrou Maziel, o filho caçula.
- Esse cavaleiro a pé não é um deles - afirmou o pai. - A armadura que está usando é antiga, dos tempos de Ralion-II; naquela época, as forças do reino enfrentaram o Arquimago, e ele ganhou várias batalhas com um feitiço que fazia nossas tropas desaparecerem, ou assim pensávamos. Somente décadas depois, foi descoberto que ele os havia enviado para o futuro, e volta e meia aparecem alguns desses soldados perdidos, vagando por aí.
Fez-se silêncio ao redor da mesa, até que Symara indagasse:
- Mas pai... por que então não o orienta a retornar às Terras Baixas, em vez de atravessar as montanhas para Gorr?
- Voltar para quê? - Questionou o pai. - Centenas de anos se passaram, e todos os que ele um dia conheceu, estão mortos. Ademais, devem lembrar-se das lendas que falam em passagens para outras épocas, nas Montanhas Enevoadas... que é um bom motivo para o nosso povo não se aproximar delas. Esse cavaleiro pode ter algum conhecimento disso, e o certo é que se tomar aquela direção, jamais o veremos novamente.
Aquelas palavras ficaram gravadas na mente de Symara.
Na manhã seguinte, bem cedo, antes que todos despertassem, ela esgueirou-se até o celeiro, levando o desjejum do cavaleiro. Ele acordou, estremunhado.
- Muito gentil de sua parte - agradeceu. - Devo partir em breve.
Symara inclinou-se sobre ele e perguntou:
- Importaria-se de me levar consigo?
O cavaleiro franziu a testa.
- Eu estou indo para a guerra... não é um lugar para moças.
- Talvez o caminho que irá tomar nas montanhas o conduza para outro lugar que não Gorr, ou a guerra - insistiu a jovem. - Me leve consigo.
E quando o sol se levantou sobre as montanhas, Arlun, o cavaleiro, havia partido. E com ele, Symara, a pastora de cabras.
- [28-12-2020]