Disputa de Fé

Garun estava tomando o seu desjejum quando bateram em sua porta; batidas de autoridade, não de pedinte, avaliou. Ergueu-se da mesa, a contragosto; ao abrir, deparou-se com um oficial de justiça, uma pluma de faisão presa ao chapéu de feltro cinza com um distintivo de bronze.

- É Garun, o monge? - Indagou o serventuário, consultando uma correspondência selada que trazia em mãos.

- Eu mesmo - identificou-se o interpelado.

- Trago uma intimação da parte de Rolin, o mago. Queira assinar o recibo, comprovando o recebimento.

Rolin? Muito atrevimento do patife recorrer à justiça real, pensou Garun. Mas, tudo o que fez foi apanhar a caneta-tinteiro do oficial de justiça e assinar a intimação.

Novamente só, abriu o envelope para ler o documento. Rolin o desafiava a comparecer diante de um juiz na próxima segunda-feira, para resolver de uma vez por todas a quem caberia cumprir o disposto na Profecia de Alondro.

- Mas é óbvio que este papel cabe à Igreja! - Exclamou, dando um murro na palma da mão.

Diante do juiz, contudo, Garun sabia que não podia apenas jogar com a emoção.

- A Profecia de Alondro é muito clara, meritíssimo - declarou o monge ao se ver diante da autoridade. - Somente alguém versado nas artes mágicas poderia impedir o avanço dos Rodantes, caso estes voltassem a ameaçar o reino.

- Neste caso, reconhece a procedência da demanda de Rolin, o mago? Ele, certamente, é versado em artes mágicas - replicou o juiz.

- Por outro lado, a Profecia mais adiante informa que a Igreja, como entidade organizada, organizaria as defesas - prosseguiu Garun sem se perturbar. - Eu sou um membro da Igreja, e antes de nela ingressar, devo confessar-lhe que estudei alta magia durante muitos anos.

- Então, abdicou de ser um mago para dedicar-se apenas à Fé? - Questionou o juiz, mão no queixo.

- Justamente me preparando para este dia que, mais cedo ou mais tarde, chegaria - afirmou Garun sem falsa modéstia.

O juiz deu ganho de causa ao monge.

No dia seguinte, bateram novamente à porta de Garun. Batidas firmes, mas não impositivas. Atendeu; era Rolin.

- Vim lhe parabenizar - declarou o mago, e aparentemente estava sendo sincero. - Nossa mãe ficaria orgulhosa...

Garun nunca admitira publicamente seu vínculo com Rolin, posto que isto constituía-se em motivo de embaraço para ele; na verdade o mago era seu meio-irmão caçula, já que sua mãe casara-se novamente com Rianor, o Castanho, mago das terras altas, após a morte de Niron, pai de Garun.

- E já que venceu, podemos então fazer as pazes? - Indagou o mago, estendendo-lhe a mão.

Perdoar, afinal de contas, era papel da Igreja, pensou Garun. Apertou a mão que lhe era estendida, sem pestanejar.

- Agora que deu-me seu perdão, - prosseguiu Rolin, imperturbável - agradeço que tenha me aceito como seu braço-direito, na montagem do plano de defesa.

- Como é? - Garun encarou o meio-irmão, surpreso.

- A parte final da Profecia - lembrou-lhe placidamente Rolin. - Não basta apenas que a Igreja organize as defesas com auxílio da alta magia, é preciso que os magos somem forças com ela para que o plano surta efeito. Como filho de Rianor, o Castanho, fui indicado por meus pares para ocupar esta posição.

Garun titubeou. Braço-direito? Nunca pensara em oferecer a posição justo ao seu meio-irmão. Mas o que ele dizia, fazia todo o sentido.

- Está bem - aquiesceu. - Mas lembre-se de que me deve obediência... irmão caçula.

E desta forma, no sétimo ano do reinado de Tagano-III, Rolin, o mago, tornou-se a segunda pessoa mais poderosa nas forças de defesa contra os Rodantes.

- Muito em breve, o comando será apenas nosso - prometeu então Rolin aos seus pares. - A Igreja terá que nos seguir, e não nós à ela.

Enganava-se, contudo, se imaginava que Garun não estava esperando justamente por esse movimento.

- [24-12-2020]