Peninha

Peninha

A mulher pegou uma revista qualquer que estava sobre a mesinha de espera do consultório médico. Ela notou que faltava a capa, mas conseguiu encontrá-la no meio das páginas. Ao organizar as folhas para colocá-las em ordem, caiu do meio das páginas uma pena de pássaro. Ela buscou-a do chão, segurou-a entre os dedos, recostou a cabeça na parede, foi sentindo um calafrio por todo o corpo e a sensação de uma cortina que se fechava e outra descortinando à frente de um cenário bem seu conhecido: Uma casa, pessoas, vozes, cachorros, brisa suave, um fundo verde e uma cachoeira. Na soleira da porta um senhor, de barbas e cabelos brancos, curvado sob o peso do tempo, apoiava suas mãos e o queixo numa bengala. É o destino entrelaçando sua trama e lhe devolvendo o passado com tanta realidade que dava até para sentir o perfume, os sons, as falas daquele tempo inesquecível de infância.

Meu velho pai! Quanta saudade! A nossa casa com suas crianças brincando, correndo; minha mãe, a natureza e a nossa cachoeira de água tão fria e branquinha que caía lá do alto formando uma nuvem de chuvisco no ar, lugar de grandes recordações! As arapucas armadas no quintal de casa, nós escondidos por detrás da moita e os pobres passarinhos chegando esfomeados, o puxão da corda e, zás, eles lá ficavam presos na armadilha.

A nossa emoção para tirá-lo lá de dentro nos fazia ofegantes e agitados. Acariciar, perceber as suas cores e seus olhos assustados, beijar e soltar o pobre pássaro, de novo, para a liberdade, era um ritual mágico, incentivado pelas carícias e palavras convincentes do nosso pai exaltando sobre os benefícios da vida livre. Resistíamos por um tempo, passando de mão em mão o pássaro cativo. O pai vencia-nos, sempre, com o seu discurso e nós ficávamos olhando o pássaro feliz procurando o primeiro galho de árvore para um descanso antes de ganhar o mundo.

- Lembra, pai, aquele dia que o Pedrinho, o Juca, a Cássia, você e eu pegamos um passarinho diferente, todo colorido e com uma única pena carijó, toda franzidinha, bem no alto da cabeça? Nós tanto insistimos, que o senhor acabou por nos permitir arrancar aquela pena do pássaro, antes de soltá-lo.

Quanto sangue! Que sofrimento do coitadinho! E o seu olhar parecia nos pedir para não soltá-lo. Sua voz, pai, nos alertava para fazer-lhe um curativo e lhe dar muitos beijos e carinho para não morrer. Que dor! Ficamos dias cuidando do nosso doente.

E a briga para ser o primeiro, todos os dias, a vê-lo, tocar na sua ferida, dar-lhe de comer e de beber, enquanto o senhor nos pedia para deixá-lo em paz.

O tempo ia passando e o nosso amor pelo bichinho crescia. Ele já era um dos nossos. Fizemos um concurso para a escolha do nome e ganhou “Peninha”, isso mesmo, Peninha por causa da desgraça daquela pena que roubamos dele.

E nossa mãe o tempo todo nos lembrando que era hora da Escola, que precisávamos lavar as mãos, deixar o pássaro em paz... Sempre arranjando um pretexto para nos tirar de perto do Peninha. O senhor, com aquela piscada de olho nos convencia a obedecê-la, garantindo-nos com o olhar que tomaria conta direitinho do nosso Peninha.

-Aquele dia, lembra-se? Ao voltar da escola, abrimos correndo a porteira e voamos para dentro de casa. Na soleira de casa, neste mesmo lugar onde o senhor está hoje, deparamos com a sua tristeza, o seu olhar perdido no horizonte. Todos juntos, ao mesmo tempo, jogamos nossas mochilas no chão e gritamos:

- O Peninha!? Cadê ele pai?

O senhor nos abraçou com tamanha ternura, beijou nossa cabeça, nos prendeu junto a seu peito e nos falou bem perto do ouvido.:

-O Peninha está bem. Ele está no mesmo lugar esperando por vocês. Quem não mais lhes espera para abraçá-los, cuidar de vocês, meus filhos...

E as lágrimas não o deixaram continuar, pai. Descobrimos por nós mesmos. Fomos entrando de mansinho casa à dentro, os olhos arregalados e o senhor nos fazendo gestos para que voltássemos. Não o obedecemos e fomos indo passo a passo. De repente, deparamos com a nossa mãe esticadinha sobre a mesa, com um sorriso nos lábios, toda coberta de flores, parecia dormir. Alguns vizinhos sentados ao redor da parede e a tia Joana colocando a última flor na sua cabeça.

E o Peninha, na sua gaiola, ao lado da mesa, todo encolhidinho e com os olhos semifechados parecia compreender nossa dor. Beijamos os olhos, as mãos da nossa mãe e cheiramos as flores espalhadas em cima dela. Peguei o nosso amiguinho, Peninha, e lhe pedi que cantasse uma canção para fazer nossa mãe dormir bem tranqüila. Ela ia gostar.

Ele abriu o bico, tombou a cabecinha e cantou tão bonito, bonito e triste. Seu canto cortava o silêncio quebrado por um gemido aqui, outro ali. Num piscar de olhos todos estávamos cantando uma canção para ninar a nossa mãe.

O senhor veio se ajuntar a nós, nos abraçou bem apertado e assistiu junto conosco o cair de uma pena solta do bico do Peninha, que veio se alojar nos cabelos da mãe, enfeitando o seu rosto já tão bonito e tranqüilo.

Hoje, o que nos sobrou daquele tempo, foi esta peninha toda carijó que o senhor guardou dentro daquela Bíblia, lembra-se?

-O meu pai, onde ele está?

-Calma, mana, nós estamos aqui. Não foi nada. Tudo já passou.

-O Pedrinho, a Cássia, o Juca! Onde estou?

-Você está bem. Tranqüilize-se. Foi só um desmaio.

Eles se entreolharam me abraçando e, de dentro da revista, o Pedrinho tirou uma pena e colocou-a nos meus cabelos.