PLATAFORMA ZERO
Estava farta da pasmaceira em que vivia, não sabia que fazer para me dar ânimo e alegria.
Queria uma coisa invulgar, louca, estapafúrdia mesmo!
Pensei num bilhete de avião, de barco, mas não! Rapidamente desquitei a ideia. Tinha que ter um destino programado e isso, era continuar a viver como sempre vivi, dentro do convencional, do tudo certinho, do parece bem, do que deve ser!
Estava farta! Precisava de ser eu. Precisava de dar sentir, voz, movimento, á excêntrica que no fundo eu era, mas vivia aprisionada por um jugo de porcarias, criado por uma sociedade decrépita, velha, gasta, retorcida, hipócrita. Uma sociedade que era uma merda.
Sentia-me a sufocar e eu não podia deixar-me ir abaixo. Precisava imperiosamente de libertar a vida que se debatia dentro de mim, muito para além do meu casco.
Não, não, eu não ia seguir a procissão. Precisava desatar os cabrestos, as amarras, os barbantes, o diabo a sete. Precisava de me desamarrar de ideias pré concebidas, de imposições que nada tinham a ver comigo. Não queria mais estar condicionada e presa a estúpidas convenções. Eu queria e precisava gritar. Gritar o grito do Ipiranga. Independência ou morte. E eu queria a independência. Libertar-me do jugo do eu de fora, que escravizava porcamente o eu de dentro. Chega chega chega!
Resolutamente, dirijo-me á estação ferroviária. Quatro comboios nas linhas. Pouco me importava em qual deles iria viajar. Dirijo-me á bilheteira.
-Por favor, um bilhete de ida para o último destino.
O empregado olhou-me aparvalhado, como se estivesse perante a descoberta para a Sida e para o Cancro, como se alguém lhe tivesse dito que eu transportava a fórmula do elixir da juventude, que eu trazia a notícia da vida eterna!
-Por favor, um bilhete de ida para o último destino.
Eu senti o clique dentro da cabeça do homem, como se o interruptor tivesse ligado o sistema elétrico, que sofrera um curto circuito aquando do meu primeiro pedido.
Ainda meio atarantado o homem lá me deu o almejado bilhete.
-Quanto lhe devo? Pois vi que no bilhete nada constava. Era apenas um simples quadrado branco.
-Não me deve nada minha senhora. Os bilhetes para esse destino são grátis.
-Teresa, chame-me Teresa por favor. Nossa Senhora está no céu.
Voltando atrás, como assim?
-Esse destino não tem procura e como tal estamos a fazer uma campanha de sensibilização. Mas não temos tido resultado, nem de graça as pessoas querem ir para aí.
-Mas porquê? Posso saber?!
-Contam-se histórias mirabolantes, coisas completamente fora do contexto habitual. Homens sem cabeça, mulheres sem mamas e sem genitais, crianças alegres e felizes, animais locomovendo-se como gente, árvores dando peixes e os mares produzindo frutos, pastos e outras coisas mais!
-Então esse é sem dúvida o meu destino. Qual é a plataforma por favor?
Ah! Antes disso, diga-me por obséquio, como essa gente foi para lá?
Deixei o homem de novo atarantado.
-Deixe, não se preocupe, eu descobrirei. Plataforma?!
-Plataforma zero. Faça boa viagem Teresa.
Girei sobre os calcanhares e dei meia volta, não sem antes ter agradecido. A boa educação acho que é a única coisa que liga os meus dois eus.
Dirijo-me á plataforma em questão. Noto que o espaço ente a plataforma e o comboio é muito maior que o normal, o que me obriga a alguma ginástica. O primeiro cuidado, foi medir visualmente a distância que me separava do comboio e instintivamente arregacei a saia até ás virilhas. Precisava da máxima amplitude nas pernas. Reparei nalguns olhares não sei se de espanto, recriminação ou de aflição, mas acho que estavam mais interessados em saber se eu usava cuecas, do que se caísse no buraco.
Já dentro do comboio respirei de alívio. Ufa! Nem acredito que vou deixar para trás, leis, convenções, tratados, referendos, mesquinhez, arrogância, hipocrisia, maledicência, desfaçatez, maleficência, faz de conta. Ao despir toda essa roupagem pesada e démodé, senti frio. Não estava acostumada a viver nua. Coloquei um casaco leve, de tecido casquinha de ovo, sobre os ombros. Á medida que o comboio progredia, o meu corpo ia-se adaptando á temperatura. A viagem foi longa (o suficiente para limar arestas e acertar agulhas), embora não houvesse nem apeadeiros nem estações.
Eu era a única passageira para o último destino.
Encetei a viagem numa manhã de outono e cheguei numa tarde de verão.
Passei as quatro estações viajando no trem e foi uma experiência absolutamente magnífica, enriquecedora, ímpar!
Uma opção de vida. O exorcizar do corpo e do espírito. O ambiente perfeito para um exame de introspecção. A busca da sintonia entre ambos os polos e o final da viagem, culmina com a felicidade absoluta que se foi construindo ao longo do caminho. Essa foi a viagem que eu quis fazer na minha mais perfeita consciência e discernimento mental. Quando a dita terminou, estava no mesmo patamar das estrelas.
Um dia, em que todos tenhamos tempo e boa vontade, relatarei ao pormenor todas as peripécias. Agora vou desfrutar de mim. Os meus dois eus sintonizaram-se e está mais do que na hora de ser feliz!
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©Maria Dulce Leitao Reis