A LENDA DAS LAPAS                        
No começo, as Flores e o Corvo viviam juntinhos, lado a lado. Tão juntos que, quando a maré vazava, até se tocavam brevemente. Foi o mar que os separou, empurrando o Corvo lá para longe.                   
E foi assim que aconteceu:
            
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Quando Deus separou os continentes, gostou muito do mar que se formou entre eles  e disse:
-Algum dia, quando houver gente, e estas terras se chamarem Europa e América, as pessoas hão-de querer atravessar duma para a outra. Vou criar no mar umas ilhas, para ajudar na travessia.
            E criou. Primeiro, um grupinho de duas, uma mais pequenina e outra maior. E disse:
            -Pronto. Duas chega.
            Mas depois, notando que o mar para o lado do poente ainda era muito largo, fez outro grupo de ilhas. Cinco* desta vez, e disse:
            -Agora está feito. Sete ilhas, chega bem.
            Mas, vendo que lhe restara um pedaço de barro, disse:
            -Não vou desperdiçar este barro... faço mais uma.
            E fez as Flores. Mas, com as Flores, esmerou-se. Modelou aqui, retocou ali, fez ribeiras profundas, picos altaneiros, rochões espaçosos, fajãs aconchegadinhas... Era a última, quis deixá-la um primor, e deixou mesmo...
            Quando já se ia embora, para se recolher ao céu, viu que ela chorava.
            -Tantas lágrima... porquê?
            -Fico aqui sozinha... As outras todas têm companheiras...
            -Pronto... Não chores. Faço-te um companheiro.
            E fez-lhe o Corvo. Olhou-os, achou-lhes muita graça, enterneceu-se e disse:
            -Um dia, quando vocês crescerem, volto cá e caso-vos... Que é para ficarem assim juntinhos para todo o sempre.
            E foi-se embora, mas antes recomendou ao mar que os embalasse suavemente, com as suas ondas.
-Quero que cresçam juntinhos, que brinquem à vontade nas tuas ondas. Vela por isso. E, à noitinha, canta-lhes canções de nanar, que é para adormecerem sempre à mesma hora.
E foi assim que Flores e Corvo cresceram lado a lado, muito chegados.
A certa altura começaram a notar que eram diferentes. Ela era muito feminina, elegante, cheia de curvas e recessos... ele era mais pequeno, mas entroncado, forte... Amaram-se, mesmo sem dizer nada um ao outro... O mar é que notou certos olhares entre eles, certas intimidades mal disfarçadas, quando a maré descia e eles se tocavam... e começou a ter ciúmes.
Um dia Deus veio visitá-los. Viu-os crescidos, percebeu o que se passava entre eles, e resolveu casá-los. Arranjou um lindo véu para a noiva, com lantejoulas de luz, que eram estrelinhas que Ele próprio andou escolhendo pela Via Láctea. Entregou o véu à noiva que ficou encantada, e marcou a data do casamento.
Foi então que o mar se enraiveceu. Começou a fustigá-los com ventos violentos e ondas alterosas. E, quanto mais se aproximava  o casamento, mais se enraivecia o mar. Numa noite terrível de violenta borrasca, bravejou tanto que foi empurrando o Corvo para longe das Flores, onde ele ainda hoje está, esfrangalhou e véu da noiva que se desfez em espuma que ainda hoje por lá se vê, e apagou as lantejoulas de luz que se tornaram em lapas.
Quando Deus voltou para o casamento e soube o que se tinha passado, castigou o mar e disse:
-Ficas condenado a beijá-los constantemente, mas os teus lábios, em vez de sentirem a doçura do corpo deles, hão-de arranhar-se constantemente nas lapas que tu criaste ao destruir o véu da noiva e ao apagar as lantejoulas de luz que o enfeitavam. 
 
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*Alguns autores antigos dizem que este grupo tem seis ilhas em vez de cinco, mas que uma delas só se vê no dia de S. João e em circunstâncias muito especiais. Chamam-lhe a Ilha das Maias