Senhores e Escravos

Senhores e Escravos

“É bem mais seguro ser temido do que amado.”

-Nicolau Maquiavel

“Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.”

Isaías 45:7

Primeiro era o nada, depois surgiu um pântano, e em meio a lama surgiu Deus. Deus vivia revirando-se na lama em meio ao nada. O pântano é sujo e o nada é vazio, e Deus, não sendo sujeito de espírito muito elevado, em pouco tempo encontrou insuportável sua própria companhia e solitário, era consumido pelo tédio. Deus decidiu pegar um pouco de terra encharcada e criar dois amiguinhos. Como Deus havia passado toda sua vida no nada e na lama, e portanto não conhecia nada além de lama, Deus decidiu fazer os bonequinhos conforme a imagem e semelhança da única coisa que achava conhecer – ele mesmo. E estavam criados o homem e a mulher. Os dois seres de barro amavam a Deus e os três eram ótimos amigos. Deus ficava maravilhado quando os dois bonequinhos dançavam e cantavam em sua homenagem. Nas primeiras horas o canto era agudo e os movimentos rápidos e acrobáticos, depois de passado algum tempo, suas vozes tornavam-se graves e os movimentos lentos e pesados, e Deus gostava muito desses momentos, pois estava convencido de que era amado. Porém, com o tempo, o homem e a mulher perceberam que Deus era infinitamente bom, e por não ter maldade alguma, era inofensivo, e se questionaram: “afinal, para que agradar alguém que não nos oferece perigo? As criaturas mais doces e gentis não merecem mais do que o nosso desprezo!”. As danças e a cantoria acabaram. Deus ficou horrorizado, e por ser somente bom, nada podia fazer para recuperar o afeto de seus amigos. Depois de muito pensar, Deus criou um outro bonequinho, este bonequinho era o contrário de sua semelhança, pois era somente maldade. Alguns podem dizer que se Deus era somente bom, seria incapaz de criar algo mau. Seu texto fere o princípio básico da não contradição – vociferam os adoradores da lógica aristotélica! Mas nem tudo é como nos romances que vocês leem, nem tudo é lógico, nem tudo é causa e consequência, a vida é na maioria das vezes um entrelaçado disforme de contradições. Porém, para acalmar-lhes o espírito, tratarei de explicar-lhes. Neste momento Deus, com seu espírito tomado pela raiva e frustração, sentindo-se traído por seus outrora amigos, agia desprovido de qualquer discernimento, e já não poderia ser julgado por suas ações. Não era mais nem bom, nem mau. Ilustro este meu ponto com a citação de um famoso padre espanhol que agora me foge o nome :“Devemos enxergá-lo com a mesma complacência que temos diante de qualquer louco.”

O Diabo estava criado, e não demorou muito para começar a infernizar a vida dos dois bonequinhos que haviam sido amigos de Deus. O Diabo, sabido como era, explicou aos bonequinhos que tudo que vive algum dia irá morrer, e saber-se mortal era o pior que lhes podia ocorrer. O medo da morte, raiz de todos os outros medos, trouxe-lhes a total infelicidade, e frágeis pela repentina verdade que os atacava, o Diabo deu então o golpe final: ensinou-lhes que em outro pântano, um homem havia matado o outro por puro ciúme. O homem e a mulher, aterrorizados, passaram a temer um ao outro, e solitários, fizeram exatamente como Deus previra – tornara-se louco, porém continuava onisciente – voltaram-se para o antigo e poderoso Deus, o único em quem realmente poderiam confiar para livrá-los da terrível ameça que viam em si mesmos.

Sozinho e dominado pelo medo, acabou por transformar-se não mais em amigo ou indiferente a Deus, mas sim em seu infeliz escravo, que débil, implora proteção ao seu Senhor.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 22/03/2020
Reeditado em 05/04/2020
Código do texto: T6894345
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