Uma estória de princesa

A princesa

Aconteceu na segunda metade do século quinze na Europa.

No castelo mais imponente que nossa imaginação pode conceber vivia uma princesa linda. Ela sonhava em encontrar um príncipe igualmente lindo, mas também forte e corajoso afinal isso é tudo o que uma princesa de contos de ficção pode querer. Já dava para contar nos dedos os dias que faltavam para o seu baile de 15 anos onde certamente conheceria o seu príncipe assim como aconteceu com sua mãe.

Enquanto aguardava esse dia feliz, a princesa escolheu se instalar no quarto da torre mais alta do castelo por causa da ampla vista que tinha de todo o reino e passava horas contemplando as ruas, casas e pessoas. De lá ela saia para o seu passeio diário e era feliz assim.

Ela adorava caminhar com a rainha pelas ruas do comércio sempre cheias de pessoas, cheiros e coisas e ser o centro das atenções. Ouvia o povo dizer baixinho entre eles como ela era linda e como seriam felizes quando ela se tornasse rainha.

Mas em poucos dias sua sorte mudou, sem mais nem menos seu pai decretou que ela não deveria mais sair do seu quarto na torre e guardas e criados em todo o palácio deviam vigiar dia e noite para que essa ordem fosse cumprida ou pagariam com a própria vida. A doce princesinha não sabia o que ela poderia ter feito para merecer tal castigo, pediu para falar com o pai, mas foi em vão. O rei negou-se a vê-la ou dar qualquer explicação.

Quase um mês depois de enclausurada na torre a princesa já com quinze anos de idade, mas ainda sem festa soube da morte e sepultamento da mãe.

Doía-lhe a morte da mãe e doía não ter ido ao funeral prestar suas últimas homenagens. Para ela era absurdo saber da perda da mãe pela boca dos serviçais, o rei nem se dera ao trabalho de lhe falar pessoalmente.

Consumida pela tristeza lembrava que a rainha sempre dizia que antes de ser esposo e pai o rei era rei e elas antes de ser esposa e filha eram súditas.

A rainha

A princesa pensava se o pai não tinha nada a ver com a morte da mãe. Ouvira tanto falar do uso de venenos entre os nobres da corte de antigamente para resolver questões políticas ou passionais e pensava se esse não era mais um desses casos.

Odiou o pai por submetê-la aquela prisão de luxo e jurou para si que se ele tivesse algo a ver com a morte da mãe ela descobriria e o faria pagar.

A jovem rainha era amada por seus súditos. Ela mesma ia ás compras nas ruas do comércio para abastecer a despensa do castelo, sempre acompanhada de uma ou mais damas de companhia mais por formalidade do que por necessidade de segurança. Toda a família real era amada e estimada por seus súditos que viam neles pessoas justas e generosas.

A princesa lembrou que cochichavam na corte sobre o hábito da rainha de se misturar ao povo, falavam que ela parecia mais uma serviçal bem vestida do castelo do que a primeira dama do reino.

Isso deixava o rei profundamente aborrecido, várias vezes ele chegou a exigir que ela enviasse um serviçal ás compras e não fosse pessoalmente, mas a rainha implorava aos pés dele dizendo que amava seus súditos e era feliz entre eles.

Por amá-la, o rei permitia á contragosto que a rainha continuasse a frequentar as ruas do comércio e a língua ferina das damas da corte.

A investigação

Confinada na torre, a princesa começou a investigar, perguntava a um ou a outro dos que iam até a torre como foram os últimos dias da rainha e assim já deduzira tudo.

Soube que a mãe estivera na rua do comércio pela manhã acompanhada de uma criada e na tarde desse mesmo dia tanto ela como a criada foram acometidas de forte febre seguida de vômitos. Ao passar dos dias o estado de ambas foi se agravando e quando morreram tinham várias manchas escuras pelo corpo e gânglios intumescidos na virilha e nas axilas.

— Vômito e febre são sintomas de envenenamento – pensava.

A mãe quando saía levava uma garrafa com água e partilhava dessa garrafa com seus acompanhantes.

Aterrorizada a princesa lembrou que naquela manhã ela quisera acompanhar a mãe, mas o pai impediu e insistiu para que a princesa ficasse dizendo que tinha uma tarefa inadiável para ela. O fato do rei não ter fornecido detalhes do que queria, não preocupou a princesa, esse era um hábito do pai que ela conhecia e já estava acostumada, mas agora pensava que devia ter obtido maiores informações. Passou despercebido na hora o fato de o rei sempre ceder aos caprichos das duas, mas dessa vez carinhas e soluços não o convenceram.

— Será que ele sabia de alguma coisa?–perguntava a si mesmo– Ou será que ele mesmo pusera algo na água?

Da janela da torre a princesa viu a mãe voltar enquanto esperava o pai e a tarefa inadiável. Quis ir ao encontro dela e descobriu pelos guardas que estava proibida de sair da torre. Soube da morte e do sepultamento da mãe, três semanas depois quando por acaso flagrou a conversa das criadas que foram levar-lhe comida e água e distraídas conversavam entre si pensando que a princesa dormia.

O tempo foi passando, e confinada na torre a infeliz princesinha para espantar a solidão passou a conversar consigo mesma.

O espelho

No luxuoso quarto da torre um enorme espelho de moldura dourada estivera desde sempre pendurado na parede oposta á janela ao lado da sólida porta que a princesa trancava á chave. Ela andava aborrecida com as serviçais que vinham lhe trazer comida e água e evitavam se aproximar dela ou tocá-la. Ás vezes elas fingiam não ouvir suas perguntas que ficavam sem resposta. Por causa disso e de mais uma ou outra coisa a princesa magoada se trancava no quarto e deixava os talheres e pratos da refeição anterior do lado de fora para recolherem sem ter que vê-la ou falar com ela.

— Não preciso da esmola da atenção delas– pensava – afinal quem é a princesa aqui?

A primeira vez que ela falou sozinha foi como uma brincadeira, ela olhou para o espelho e repetiu uma fala de uma estória que tinha ouvido: — Espelho, ó espelho meu existe alguém mais bonita do que eu?– E ela mesma respondeu imitando uma voz masculina: – Não linda princesinha, és a mais bela de todos os reinos do mundo.

Então ela continuou perguntando: — Mas se desde sempre meu honesto espelho você vive pendurado aqui nessa parede quando foi que você conheceu outras princesas ou outros reinos?

— Saiba minha doce majestade – respondia ela com voz de espelho – Quem já contemplou beleza igual a sua não encontraria outra igual nem que percorresse todo o universo. Se eu não fosse um pobre espelho condenado a permanecer por toda a minha existência pendurado nessa parede e sim um lindo príncipe, certamente pediria ao meu rei seu pai a sua mão.

Inventada a brincadeira, a princesa passava o tempo assim, sempre perguntando se era bonita e respondendo a si mesma se fingindo de espelho.

Até que em uma manhã ela fez uma pergunta diferente. Sentindo-se infeliz e desprezada lembrando que semanas atrás completara seus quinze anos órfã de mãe, sem festa, sem príncipe e sem o abraço do rei que antes não desgrudava dela, ela olhou para o espelho e perguntou:

—Espelho ó espelho meu, será que um dia eu vou saber o que será do meu futuro?

Já ensaiava uma resposta lamuriosa quando ouviu uma voz masculina, dizendo:

— Minha linda princesa, eu posso conceder a você uma visão do futuro!

A princesa em pânico olhou em volta não viu ninguém, olhou para o espelho e não viu mais a sua imagem refletida. Dominada pelo pânico ela precipitou-se para a porta. A pesada porta estava trancada a chave e com a força incomum que o medo lhe concedeu forçou demais a chave tentando girar a fechadura e acabou por quebrá-la sem conseguir abrir a porta. Achou-se perdida.

Então com o resto de forças que ainda lhe restava correu para a janela disposta a se atirar para a morte antes de permitir que uma assombração atentasse contra a sua virtude, como ouvira que acontecia com as criadas bonitas visitadas por fantasmas de antigos reis durante á noite e que depois de sete ou oito meses traziam ao mundo filhos de pele e olhos claros como os fantasmagóricos pais.

Para as criadas não era mau, porque na maioria das vezes reis e nobres reconheciam na criança os traços dos seus antepassados e secretamente proviam a criada e seu rebento dos meios necessários para uma boa vida, mas para ela, princesa e não mucama, a vida já era a melhor que alguém poderia querer. Só faltava o príncipe para quem ela deveria guardar a sua virtude, sem a qual qualquer príncipe perderia o interesse.

Ela pensou nisso tudo em uma fração de segundos e decidiu se atirar da janela para a morte antes de submeter sua virtude aos caprichos do malfazejo, mas quando passou entre o espelho e a janela, um breve clarão a imobilizou e suas pernas cederam.

—Peço que me perdoe linda princesa – começou o espelho: – Não foi minha intenção assustá-la, nem pretendo fazer-lhe mal algum.

—Eu sou o gênio do espelho e posso conceder-lhe o desejo de conhecer o futuro, mas antes eu preciso fazer você entender a atitude do rei.

—Sua mãe foi vítima de uma doença que já tirou milhares de vidas, cientistas, médicos e estudiosos do reino trabalham dia e noite combatendo a doença, porém com quase nada de progresso até agora. Nas ruas de todo o reino todos os dias a doença faz mais vítimas, seu pai acha que na torre ela não te alcança e ele não vem te visitar porque ele esteve na cabeceira da sua mãe sofrendo junto com ela a dor dela até que ela finalmente deixasse esse mundo e teme ser um portador da doença e não quer transmitir para você.

—Ele mandou cancelar todas as festas, fechou as fronteiras do reino para os visitantes e deu ordens severas a todos os escravos e guardas para evitarem circular pela torre ou manter contato físico com você. Sua comida tem sido preparada antes da dos outros por uma única criada que permanece isolada na outra torre de onde sai apenas para preparar a sua comida e depois volta para lá.

Enquanto o espelho falava, falava, falava e falava a princesa aos poucos adormeceu.

O futuro

A princesa despertou quando já anoitecia, seu corpo doía inteiro pelas horas deitada no piso de pedra.

Ainda estava tentando decidir se sonhara ou se tinha mesmo ouvido o espelho falar quando ouviu de novo:

—Então linda princesa, está pronta para conhecer o futuro?

Dessa vez ela não se assustou: — Sim, eu quero conhecer o futuro, esse é o meu desejo!

De novo o clarão, a princesa fechou brevemente os olhos para evitar a luz e quando abriu o quarto estava diferente. Do quarto da torre só tinha o espelho pendurado na parede perto da porta e embora fosse noite tudo parecia estranhamente iluminado por uma luz branca e fantasmagórica que parecia escorrer pelas paredes igualmente brancas. Tudo era muito limpo e perfumado e uma enorme cama coberta por tecidos macios e delicados ocupava quase todo o quarto.

— Minha querida– disse a voz – nós estamos no ano de 2016, em um quarto de hotel, esta claridade que temos no quarto vem da lâmpada elétrica, uma invenção humana que já existe desde o século 19, naquela porta menor está o banheiro. Tome um bom banho e quando sair encontrará roupas sobre a cama, vista-as e ficará igual ás pessoas dessa época.

A princesa não teve dificuldade para se adaptar ao banheiro e seus confortos, princesas estão acostumadas a usufruir de mordomias com naturalidade.

Após o banho o cheiro do sabonete que ficou em seu corpo, dava-lhe a impressão de estar num campo de flores. Ela vestiu as roupas de sobre a cama e achou tudo muito macio leve e confortável, o gênio saiu do espelho e agora em forma humana deu a ela um cartão de crédito, ensinou para ela como usar, deu um cartão do hotel e ensinou a ela como pegar um táxi, mostrar para o motorista o cartão do hotel e pedir para ser levada para lá se ela por acaso viesse a se perder.

Á partir do amanhecer, ela teria doze horas para conhecer o futuro. Findo o prazo deveria estar de volta diante do espelho senão não poderia mais voltar para sua época.

Conforme fora orientada pelo gênio do espelho, ela saiu do hotel pela manhã, comeu cachorro quente, com refrigerante gelado num ambulante, andou por praças públicas muitíssimo melhores do que os jardins do palácio e quando viu que era hora de retornar ao quarto do hotel para diante do espelho voltar para sua torre, ela simplesmente amassou e jogou fora o cartão do hotel e saiu caminhando pela calçada Sentiria saudades de casa, mas não da torre onde certamente ficaria confinada até sabe-se quando.

— Melhor é ficar no futuro – pensou – procurar um emprego, casar-se com um operário bonitão, esquecer esse negócio de princesa medieval e viver feliz para sempre até quando der.

zedebri
Enviado por zedebri em 13/10/2019
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