Minha Humilhação de Cada Dia

Domingo de ramos. Dia de missa de ação de graças; também de ação de cão. Não suportava mais as noites e os dias modorrentos; mas como o sol que debruça seus raios sobre certa colina a perder de vista na parte da manhã e falece em outra, no lado oposto, ia seguindo como Deus quer. Desiludido pela concorrência do amor de uma amiga, que fez-me de idiota ao andar léguas e mais léguas disputando o amor dela às rosnadas, unhas e dentadas. Tendo uma companheira qualquer para farejar, sou como um andarilho vagabundo perdido na vida. Entendo que amigas são seletivas e não levantam o rabo para qualquer andante. A maioria delas brincam com os sentimentos do desnaturado e aninham-se com outro. Lei da seleção natural, garantia e sustentabilidade da prole.

Com as pernas doces feito mel, notei certo movimento. Era o transa-transa em frente a um supermercado que mais parecia um formigueiro de tantas sacolas e carrinhos para lá e para cá. Fiquei por ali brincando com o rabo e dando bandeira para quem passasse por perto. Farejava, abanava o rabo feito leque de madame, fazia um gracejo, mas o resultado era pífio.

- Sai para lá seu sarnento...; está cheirando carniça. Um banho não faz mal. - de vez em sempre tomo um pontapé no traseiro. Hashtag # humilhação que segue.

Um senhor limpava e temperava os frangos. Bonitos frangos, admito. Apetitosos; é o que imagino. Correria contra o tempo para encher a máquina de assar galetos. Estiro as patas da frente, arrio as detrás e sento em cima do rabo. Espio com olhos ávidos o ranger do conjunto. Se pudesse estudar, seria engenheiro químico, especialista em mecânica. Gostaria de poder criar mecanismos para alimentar não só minha raça, mas o mundo. Não acredito quem em outros continentes não exista essa palavra horrenda, chamada fome. Tolice querer enganar o leitor, declaradamente estava numa fome dos diabos. Comia até estanho derretido. No bom sentido, o cheiro importuna minhas narinas.

As pessoas fazem o pedido com hora marcada. Sinceramente não lembro a última vez que vi tamanha disciplina. Como não trabalho, não roubo, não trafico, não sou político, não sou profeta, não sou poeta e nem parasita, joguei uma direta: "O senhor tem alguma coisa para me oferecer. É passado de meio-dia e não salivei nada até agora. Dinheiro?...; não arrumei um tostão furado, sequer. Queira por gentileza arrumar alguma coisa, mas de graça para um andante solitário das estradas".

O velho subiu em cima dos tamancos e flechou-me com um impropério de sermões: "aqui não tem nada para dar. Trabalho para alimentar minha família e não vagabundos. Está me achando com cara de palhaço, é? Tiririca é outro. Ponha o nariz e peça para ele, quem sabe consegue um trabalho de secretário. Aliás, o momento é oportuno e estão contratando para Presidente da República, jogador de futebol para os clubes e seleção brasileira; tem um monte de concurso público aberto, para ladrão, traficante, professores, trans, genéricos, etc. Impossível que não tenhas talento para alguma coisa. Tem que ser muito inútil para não servir para nada!

- Sim. Calma, deixe-me explicar melhor!

- Esse monte de oportunistas do país daria para alimentar um mar de peixes em alto mar por muito tempo. Ô lugar, sô!"

- Tentei, mas o trabalho que me arranjaram era para ser gari e faxineiro. Não tenho dom nem talento para recolher merda de uma sociedade desaforada e suja por crença e fé. Merda por merda, basta eu e outros estúpidos que vagam ao leu, representando a classe. Nunca enfiou uma bicuda no traseiro de uma depositada nas beiras de estradas?

- Pois então, não será aqui que irá arrumar alguma coisa pior. Siga seu caminho, pode ser que na outra esquina a sorte lhe sorri; porque aqui tudo é tristeza, melancolia e depressão; porém, honestas. Resumindo: não tenho nada para emprestar, quanto mais para dar. Pega o beco e vá andando!!

- Nem as peles adiposas, vísceras, bicos, pés, unhas? Aqueles restos que até os urubus rejeitam já estaria de bom tamanho. Faria um sopa aguada e por hoje seria o suficiente, amanhã é outro dia. - cabisbaixo, virei e fui saindo.

- As peles pode levar. Serão jogadas fora, mesmo. Pegue, venha. Chegue mais...; é de graça. Não faça desfeita mocinho!

Como falava e para quem ouvia, dava entender que o senhor era bonzinho. Um bom samaritano fora da casa de caridade. Conhecendo a índole, o caráter e o coração dos seres de duas patas, afiei o latido e contra-ataquei à altura da humilhação com unhas e dentes:

- Não. Agora também não quero mais. Muita humilhação. Dê para o outro que chegar pedindo. Não quero, está dando as pelancas com dó e por pena de mim. Engula-as com penas e tudo. Ao morrer, vão enterrar você abaixo de sete palmos da superfície do solo; e as peles e os restos você enterra no seu toba. Pela sua miserabilidade explícita, deve ser fundo. Assim não perderá nada...; corno manso. Às vezes é mais interessante, menos desgastante e dá mais resultado negociar com um asno, do que com um bípede dotado de razão.

Tive que controlar meus impulsos para não rasgar-lhe o calcanhar, com umas boas mordidas. Tenho dentes afiados. Sou cachorro, mas não faço cachorrada, muito menos, humilho as pessoas. Lógico que se perco a razão e inicio pelo calcanhar, subo até os culhões. Com a raiva que estava, rasgava-lhe os culhões facilmente. Velho rabugento. "Homens são homens e diante da notoriedade e benevolências apresentadas rotineiramente por essa espécie, não são confiáveis. Sente-se aqui e refrigere seu cansaço na ponta da pena, escrevendo. Escrever é proseado da sua fala, consigo."

Foi o que ouvi de minha razão. Mas não deve falado tal coisa comigo, escrever é impossível aos animais de quatro patas. Bom, pelo menos aliviou-me da ira. Ufa; essa vida de cão humilhado!...

Passado a adrenalina, juntamente com ela, o dessassosego das vísceras e lombrigas, fui abrigar minhas mágoas na praça que tem ao lado de onde estava. Estou aqui olhando os pombos esmigalharem as sobras de pão velho. Levanta-a na ponta do bico, sacode o pescoço freneticamente, de modo que a migalha vai longe. Correm todos disparada. Quem chegar primeiro tem direito a nesga. Ensaio repetido por "n" vezes. Pronto, a que estava em jogo foi consumida. Voaram daqui e pousaram do outro lado. Tudo leva crer que tem mais comida por lá.

Também há bancos, árvores, escadaria, muita comida podre e restos. Quanta sorte desses bichos que desfrutam de um banquete diariamente. Antes de adormecer em um dos bancos, vou botar meu fone de ouvido para ouvir músicas natalinas. E adeus sonhos de vida bela! Numa cidade grande, tudo tende ao tédio e caoticidade. Humilhação também tem sua vez; ou melhor, é quem mais comanda as paradas de sucesso. Estou aprendendo a conviver com ela. Aliás, é lei máxima.

As pálpebras estão pregando pela ramela mal lavada e aos poucos os meus olhos fecham-se. Mais tarde ao despertar, planejo o modo de vencer a minha crueldade diária. Amanhã é outro dia e o sol há de brilhar no meu quintal. Nuvens se formação no céu e chuva há de cair, fazendo o meu jardim florescer. Assim espero e boa tarde pombos! Boa tarde ingratidão! Vou espichar o corpo e se possível, gostaria de descansar um pouquinho em paz humilhação! Que horas vocês irão se recolher? Por que pergunto? Não deveria revelar, mas sou autêntico, verdadeiro e ao mesmo tempo ingênuo, como são minhas amigas indizíveis e invisíveis aos olhos de todos, quero retomar a caminhada sem ser visto.

Contrário do que pregam, antes mal acompanhado pela solidão, que bem acompanhado pela multidão. Tive que criar vincos na cara e pratear os cabelos para aprender essa lição. Para uma vida dura malhada com pá, enxada e picareta, um versinho de rima pobre danado de porreta!

Chega de lamento e ironia. Cônscio que ninguém vai resolver os meus problemas, boa tarde mundo velho sem porteiras!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 13/12/2017
Reeditado em 14/12/2017
Código do texto: T6197616
Classificação de conteúdo: seguro