Sally e o Lugar Nenhum

Sally Montague apagou todas as luzes da casa e foi correndo para o seu quarto, o qual deixou aceso para ter um ponto de luz no fim do corredor mergulhado em longas trevas. Ela, obviamente, não queria passar muito tempo na escuridão.

"Odeio esses espelhos" pensou Sally, olhando ao redor, para as paredes, de onde pendiam diversos espelhos espalhados por toda a casa. "Esse excesso de reflexos... Faz parecer que, de algum modo, a casa está olhando para mim."

Chegando no quarto Sally fechou rapidamente a porta atrás de si e pulou na cama, já para baixo do cobertor-como ela fez isso, não me pergunte.

Ali, no seu canto, parecia à menina que a escuridão era acolhedora. Com todos os seus livros na estante sob um véu de penumbra, ela se sentia protegida, pois acreditava que os livros a olhavam com suas capas e sussurravam histórias na noite entre suas páginas de um modo praticamente inaudível. Isso a ajudava a cair no sono mais tranquila.

Desse jeito, meio sonolenta, meio acordada, ela se deitou nos braços sorridentes e acolhedores do sono e entrou no mundo dos sonhos montando numa capivara gigante que usava pantufas cor de rosa.

- Olá.- disse a capivara.

- Olá- respondeu Sally, sem estranhar, pois nos sonhos nos adaptamos a pensar de uma maneira que na realidade mundana seria considerada estranha.

- Você já ouviu falar no ditado " água mole e pedra dura, tanto bate até que fura"?

- Mas é claro que já. -respondeu Sally.

A capivara, que agora nadava num lago de rostos perdidos, continuou:

- Muito bem. Alguma vez na vida você já teve dificuldade de distinguir sonho de realidade?

- Acho que sim... Mas não sei o que isso tem em comum com o ditado "água mole...

- Todos dizem isso.-interrompeu a capivara gigante- Chegaremos lá, não se preocupe. Gostaria de saber qual foi o momento da sua vida que ficou entre sonho e realidade.

- Acredito que tenha sido o momento em que ouvi pela primeira vez um concerto de música clássica. Pelo menos eu acho que era clássica.

- Todos dizem isso.

- E foi de Tchaikovsky!-continuou Sally.

- Todos dizem isso também. De qualquer forma, o que sentiu ao ouvir o concerto?

-Me senti encantadoramente, surpreendentemente, sonhadoramente ausente do teatro em que estava. Acho que aprendi a voar naquele momento, mas quando o concerto acabou eu esqueci de como fazê-lo.

- Todos dizem isso. -falou a capivara- Pois bem. Você vivenciou uma epifania, um momento em que se perde o contato com a realidade, ou acredita que perdeu, e por um instante não se sabe onde está ou o que é. Ou onde é e o que está. Certo?

- Certo... Eu acho- respondeu Sally.

- Pois bem. Esses pequenos momentos de grande revelação são tão intensos que o mundo dos sonhos perturba a realidade.

"A realidade é a pedra, pois é dura, fria, limitada, imutável e assustadoramente chata; o sonho, a imaginação é a água, pois é fluida, leve, sem forma, e pode ser tempestuosa ou calma. E é aí onde reside o sentido do ditado 'água mole e pedra dura, tanto bate até que fura'. A imaginação luta tanto para sair que acaba vazando para a realidade, e nesse momento estamos em lugar nenhum, ou seja, entre sonho e realidade."

- Uau... Isso faz muito sentido! Eu acho...- disse Sally, que percebia agora que a capivara andava em pé numa floresta de livros.

- Todos dizem isso- disse a capivara gigante, e começou a dançar, derrubando Sally na sessão de poesia búlgara.

Sally se levantou, sacudiu as páginas do vestido, meio emburrada com a dança repentina que a jogara no chão.

- Mas sinto informar- prosseguiu a capivara- que as pessoas que passam por essa experiência jamais voltam a ser as mesmas.

- Por que? - quis saber Sally.

- Porque jamais irão conseguir separar a imaginação da realidade novamente. Jamais. O lugar nenhum não é brincadeira.

- Mas por que? O que tem de tão especial no tal "lugar nenhum"?

- Ora- disse a capivara, agora tocando uma cítara com os pés- Me diga, Sally Montague: como é que se volta de lugar nenhum?

E a capivara começou a lamber o rosto da menina.

Sally acordou com sua gata lambendo-lhe a face.

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 09/12/2017
Código do texto: T6194567
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