Livros obrigatórios

Como era característico nas instituições de ensino mais importantes, a Universidade de Artes Liberais de Vila Nova possuía duas alas residenciais, sendo a Leste, menor, para o corpo docente e administrativo, e a Oeste, maior, para os alunos e serviçais. Residir na universidade não era contudo uma imposição, e aqueles mais abastados, os casados, ou que já moravam nas cercanias, faziam diariamente o trajeto de ida e volta para assistir ou ministrar aulas. Todos os serviçais, sem exceção, residiam na instituição e eram funcionários dela. Não permitia-se aos alunos manter empregados próprios, embora a direção fizesse vista grossa para quem quisesse pagar algum dos serviçais contratados para cuidar eventualmente de certas tarefas mais tediosas; engraxar sapatos e lavar roupas, por exemplo. Como estes criados já eram pagos pela universidade para a realização de outras atividades, muito cedo criou-se a figura do agenciador, que terceirizava serviços para gente de fora. Agenciadores eram mal vistos pela direção, mas ainda assim tolerados.

Todas essas informações úteis e muitas mais, me foram dadas por Tobias, que iria dividir comigo um quarto na ala Oeste. Tobias era um aluno do segundo ano, filho mais velho de Dona Mercedes, Reverenda Madre do Templo da Divina Graça, em Pedra Partida. Fiquei um tanto intimidado a princípio, já que eu nunca conhecera um filho de Reverenda Madre, mas Tobias rapidamente me deu o tom de como seria nosso relacionamento ao me dar as boas-vindas, indicar a minha cama (junto da parede - ele dormia ao lado da janela) e perguntar-me, com um sorriso moleque:

- Pronto para conhecer o Templo da Divina Graça de Vila Nova?

- Mas já? E eu pensando que íamos conversar sobre a vida acadêmica... - espantei-me.

- Isso também - minimizou ele, sentando-se na sua cama com as pernas cruzadas. - Podemos tomar uma cerveja depois das aulas, na Estalagem do Alce Vermelho. Alguns alunos do terceiro ano moram lá... é um local bastante animado. E costuma ser frequentado por algumas senhoras da vila...

Eu já ouvira vários disparates sobre a vida acadêmica, e estalagens frequentadas por senhoras respeitáveis não era uma delas. Naturalmente, mulheres não costumavam comentar tais assuntos. Não na presença de homens, pelo menos. Mas então, o que seria a tal estalagem? Uma zona neutra?

- Como funciona isso, do Alce Vermelho? - Indaguei, curioso.

O sorriso moleque de Tobias aumentou.

- Agora quer saber, hein? Nós vamos lá e você verá, pessoalmente... as damas chegam em grupos, sentam-se à parte, pedem umas bebidas... e solicitam que alguns dos alunos as divirtam.

- Divertir?

- Eles tem um palco no Alce Vermelho. Os caras fazem apresentações lá... cantam, tocam instrumentos, contam piadas...

Eu já começava a entender a razão de alunos do terceiro ano estarem morando lá. Mas aquilo de se apresentar para um bando de desconhecidos, não me parecia exatamente a minha ideia de diversão.

- Não é menos traumático ir até o Templo da Divina Graça? Sem necessidade de cantar e sapatear... apenas pagando a taxa?

- É diferente - retrucou secamente Tobias. - No Templo há o fator religioso envolvido... embora, claro, a maioria dos homens vá lá apenas pelo sexo... e as mulheres de baixa casta, pela parte em dinheiro que recebem pelos seus serviços. Mas você há de convir que a maioria das servas não são lá muito atraentes.

Pelo fato de ser filho de uma Reverenda Madre, Tobias provavelmente sabia tudo sobre servas, pensei lá com meus botões. E, curiosamente, sua visão sobre elas parecia bem menos devota do que a minha.

- No Alce Vermelho, as damas são de classe alta. Algumas, comparecem anonimamente, sob véus. E elas escolhem... e se gostarem do que for entregue, podem até te dar um presente.

- Imagino que alguns desses terceiranistas devem pagar parte da hospedagem com esses... presentes - menosprezei.

- Não faça essa cara! - Redarguiu ele. - Quando for lá, sentir o clima e puder ver as damas, poderá entender no que elas diferem das roceiras que são maioria nos Templos da Divina Graça!

Senti-me incomodado por aquelas palavras. Chamar as dignas servas do Templo de "roceiras", por menos instruídas que algumas delas fossem, chegava a ser ofensivo. Tobias parecia ter finalmente percebido meu desconforto e tentou corrigir-se.

- Não me entenda mal. As servas do Templo são como os livros obrigatórios do trívio... a "Gramática" de Dionísio, por exemplo. Temos que começar por elas e merecem todo o nosso respeito...

E, inclinando o corpo para a frente, complementou, novamente sorrindo:

- Mas isso não quer dizer que você seja obrigado a comer sempre papa de aveia, se alguém lhe oferece um belo bife de javali, não é?

- [01-12-2017]