A borduna de Tau.
A floresta murmurou queixosamente ante a passagem do vento que prenunciava a tempestade. As chamas da tocha bruxulearam, permitindo que a escuridão ao redor de Mara se aproximasse ainda mais, fazendo com que a cunhantã segurasse a fonte de luz com força suficiente para clarear os nós da mão. Ela temia, pois sabia que Tau enviara seus filhos para persegui-la e recuperar a borduna roubada por mais aquela noite, assim como o fez durante as anteriores. Muitas cheias e secas se passaram desde que sua vida se resumiu a temer o escuro, tanto tempo, que já não rememorava as faces de seu povo. Havia um vazio em sua cabeça, onde a infância e juventude haviam se perdido. Todas as lembranças se concentravam no dia em que encontrou a arma mágica no centro do vale de Tauoca, casa do pai dos Sete.
Mara não entendia porque se agarrava a arma com tanto afinco, mas sabia que fora esse o gatilho de todas as suas desgraças. Enquanto corria pela mata, sendo lanhada pelos cipós de fogo e espinheiros dos tucumãs, deixou sua mente vagar por alguns instantes e reviu os eventos que a levaram a temer as noites. Em sua mente, novamente encontrou o tacape feito de cristal negro, largado à beira do igarapé no vale proibido e ouviu parecia lhe falar: Toma-me, sou teu. Basta querer.
a fuga ignorando os gritos que ecoavam pela floresta exigindo que a arma fosse devolvida, quando escondeu o produto do roubo dentro de um buraco embaixo do jirau para moquear carne, como durante dias ficou ressabiada temendo, o serenar do medo até o ponto dela ter coragem para entrar novamente na mata, a dor de encontrar a tribo esquartejada ao retornar e a vergonha por saber que tudo ocorreu por sua culpa, por ter roubado de Tau, o pai dos Sete.
Percorreu uma longa distância da floresta enquanto vagava por suas memórias, até que tropeçou em uma raiz e rolou sobre as folhas e fungos úmidos que cobriam o chão. Sua tocha voou longe com a queda e seu já diminuto brilho, tornou-se ainda menor, permitindo que a escuridão quase a abraçasse completamente, deixando fácil para os escravos de Tau a encontrarem... E assim o fizeram.
Mara viu surgirem na escuridão pequenos lumes fracos, como vagalumes meio mortos, que se aproximavam lentamente fazendo o chão coalhado de folhas estalarem. Ela sabia que eram agentes de seu inimigo e por isso, lançou-se na direção da tocha em um movimento desesperado, pois também sabia que se a escuridão fosse completa, seria sua ultima noite sobre o mundo. Ela apanhou a tocha com sua mão esquerda e empunhou a borduna com a direta, na pequena clareira de luz esperou que os caçadores se aproximassem. A cada instante os pequenos lumes achegavam-se mais, se assemelhando a brasas vivas, enquanto um miasma de podridão invadia as narinas de Mara, ignorando a força do vento de tempestade.
Não demorou muito até que as chamas iluminassem as formas antinaturais dos Mbá-Aba, os híbridos de caititu e homem, criados por Tau, que percorriam o mundo destruindo tudo ao seu alcance. Mara viu os pequenos monstros deformados arreganharem suas presas e grunhirem ameaçadoramente enquanto se acostumavam com o lume que defendia a cunhantã.
Mara aproveitou a hesitação dos monstros e desferiu um poderoso golpe na cabeça desforme de um deles, fazendo com que um jato de sangue escuro saltasse seguido por um guincho de morte. Os Mbá-Abás ao verem seu irmão tombar pesadamente, urraram de ódio e atacaram Mara em vagas consecutivas. A borduna voou velozmente pela noite, rebrilhando as chamas da tocha enquanto partia arremedos de pernas, braços e crânios. A luta era desigual, para cada homem-porco caído, uma nova ferida surgia em Mara, mas apesar disso, em momento algum a tocha foi abaixada ou a borduna deixou de esmigalhar as bestas.
Indiferente ao que ocorria entre as sombras da selva, o céu lançou suas águas, encharcando o solo e atacando as chamas que eram a esperança da cunhantã. O desespero da índia aumentava com o diminuir do brilho da tocha e por mais que os Mbá-Abás morressem aos montes, mais surgiam das trevas cada vez mais absolutas. A cada gota tombada sobre a tocha, maiores eram as sobras, até que a luz se extinguiu e um Mbá-Abá agarrou a arma da cunhantã.
O toque das mãos da besta na borduna fez com que Mara gritasse de ódio e frustação. Um ódio tão profundo que a índia deixou-se levar por uma sede de sangue que lhe era desconhecida, como se Abaçaí tivesse se apossado de seu corpo. A clava esmagou onda após onda de criaturas, até que a guerreira ficar completamente tingida de carmim.
Quando a manhã lançou seus raios por entre as folhas das árvores, Mara estava deitada sobre os corpos de dezenas de Mbá-Abás. A cunhantã estava exausta e terrivelmente ferida, tinha a certeza que seria sua ultima manhã na terra dos vivos, mas ainda assim, lutava para se erguer e continuar. Após muito esforço, conseguiu se erguer apoiada na clava cristalina e então todas as suas forças lhe faltaram e chorando, Mara caiu de joelhos.
Arrastando-se em sua direção vinha Moñai, a serpente de chifres e couro cor de buriti, sibilava vindo em sua direção. Mara chorava, sabia que a morte era certa e por isso, estancou as lágrimas e sorriu. Já que iria morrer, que fosse uma morte digna de ser contada.
Sorrindo ela enfrentou o dragão... E gloriosamente, perdeu.