Um agiota na minha cama

UM AGIOTA NA MINHA CAMA

Eu já tinha ido dormir muito cedo como sempre. Mal acabara o jornal da TV, me recolhi ao quarto, que, com o friozinho e a chuva insistente, tornava-se mais agradável.

Mas aquela noite não seria assim tão agradável. Algo muito estranho estava por acontecer.

Logo que peguei no sono, escutei um barulho que não era habitual naquele lugar silencioso e afastado das grandes movimentações onde eu morava

Ouvi o barulho do portão que se abria e em seguida passos. Pelo ruído eram duas pessoas e logo a seguir vi as duas pessoas encapuzadas, vestidas com sobretudo marron e uns coturnos iguais aqueles com os quais o Aleijadinho calçava suas estátuas.

Então era um sonho. Como eu poderia estar na minha cama e ver os acontecimentos no quintal e com personagens de outros tempos?

No plano seguinte um deles some e aparece ao meu lado, na cama, deitado e me parecia ameaçador. Então era sonho mesmo, pois as cenas começavam a ter uma continuidade confusa que só em sonho ou filme podem ocorrer.

Mas e se não fosse? Os ruídos do portão se abrindo e dos passos eram muito reais. O meu companheiro de cama desapareceu o que reforçou a possibilidade de sonho.

Eu me levantei e fui procurar um velho Smith &Wesson 38 recebido de um parente próximo que falecera.Na verdade eu não ganhei, roubei, pois deveria tê-lo dividido com os demais herdeiros. Cano, gatilho e empunhadura não se separam, então fiquei com tudo.

Nunca usei o velho Smith. Agora queria encontrá-lo rapidamente, pois se tudo for real, somente uns tiros poderiam me salvar. Escutava barulhos e ouvia um deles falar alguma coisa sobre dinheiro emprestado. Será que eu devia alguma coisa para alguém e agora vinham prestar contas? Não, não é uma possibilidade.

Peguei o Smith, ou melhor, uma das quatro caixas nas quais eu havia embrulhado e escondido o justiceiro. Aquilo era um sarcófago, depois de abrir, o que encontrei mais parecia algo mumificado.

Eu tinha que desmumificar Smith rapidamente para combater os personagens barrocos de Aleijadinho.

Smith estava cuidadosamente enrolado em um pano, de tal maneira que não se via as suas partes, apenas a sua narina podia ser vista. Aquilo me desesperava pois a dupla de possíveis cobradores aparecia em tudo quanto é lugar da casa. Com certeza estavam me procurando para cobrar alguma coisa.

Consegui aos poucos desenrolar Smith, e num pulo para a parte de cima do armário, peguei a caixa de munição. Alimentei o corpo de Smith com apenas duas balas. Pronto, tudo estava arrumado para a grande batalha; A múmia enfrentaria o exército barroco, algo somente possível com a subversão do tempo, do espaço e da economia. Ouvi as vozes dos dois que falavam como se fossem um só, com um som abafado e grave, como se saíssem de StarWar:

-Estamos a serviço da agiotagem e queremos receber com juros tudo aquilo que você deve eles.

Smith ergueu meu braço, apontou para os dois e...

-Não adianta, ninguém escapa dos agiotas, eles têm o poder.

Dois tiros, não sei se foi meu dedo ou o da múmia.Mas as figuras de Aleijadinho não estavam mais lá. No meu sonho vi apenas papéis que pareciam um boleto bancário voando pelo espaço.

Percebi uma sensação de tranqüilidade, mas ainda no mesmo sonho o tempo passou e dias depois eu me via na caixa de correio da minha casa, pegando uma correspondência bancária, e no meu sonho eu suava, lá estavam de volta os agiotas me cobrando mais de 400 por cento em cima de uma prestação não paga. E eu ouvia aquelas vozes de StarWar “Ninguém escapa dos agiotas”.