A Tristeza das Luas
Depois de soltarem as mãos, trocaram olhares. As luas acordaram bem cedinho. Sabiam que não conseguiriam dormir. Dopadas pela tristeza, resolveram ir para a praça tentar se divertir. Sabiam que seria quase impossível, mas precisavam esforçar para minimizar, mesmo que temporariamente aquela história angustiante narrada pela Cheia.
Cabisbaixas, as quatro luas caminharam silenciosamente para a praça. Os moradores da cidade não sabiam que aquelas meninas, consideradas misteriosas, eram as mesmas que aleatoriamente faziam plantão no céu. A cor branca que permeavam suas peles não eram tão definidas durante a tarde. Despertavam desconfiança entre a população, mas nada que pudesse comprometer a identidade secreta. Eram observadas com afinco e atenção. Alguns cochichavam. Lançavam piadas de mau gosto para tentar provocar uma autodefesa, porém não obtinham êxito. As luas eram bem preparadas psicologicamente para suportar qualquer tipo de pressão e manter a qualquer custo a identidade. Sabiam que se a informação viesse a público, poderiam sofrer manifestações e exigências.
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Ao chegarem a bela e movimentada praça pública, as luas ouviram os transeuntes comentarem o fato ocorrido durante a madrugada. A notícia se espalhou rápido. A tristeza de um e outro logo se juntaram. Fingiram não saber de nada. Disfarçavam. Se interessaram pelas informações para tomar nota de quem eram as vítimas. Lamentaram e torciam, assim como o restante dos moradores que se encontravam no local, que as famílias das vítimas fossem confortadas e tivessem forças para enfrentar o momento delicado.
Mesmo com todo o ambiente de tristeza e comoção, a lua Minguante e a Nova procuravam disfarçar aquela sensação ruim. Corriam de um lado a outro. A Cheia e a Crescente, mais experientes, apenas refletiam.
Com o intuito de minimizar a dor, a Minguante chamou carinhosamente a atenção das amigas:
- Brancas, sei que é difícil, mas vamos brincar um pouco. Tentar esquecer este pesadelo. Olhem! Olhem! Vejam, lá está ele. Muito bonito. Com o seu traje conhecido e envolvente. O caminho dele está todo livre hoje. È o grande dia.
Aos dizeres da Minguante que apontava para o céu, as outras luas não resistiram. Olharam e conferiram a informação. De fato, o Sol naquele dia estava atraente e elegante.
As luas começaram a brincar e tentar chamar a sua atenção como faziam todos os dias em que ele aparecia. E era com frequência. O danado não deixava de desfilar. Sabia que tinha admiradoras. Morriam de amores. O consideravam másculo e vigoroso.
Para decepção das luas, como sempre, o Sol não dava a mínima. Esnobava-as. Já tinha seus compromissos e preocupações, principalmente com as Nuvens, sua maior inimiga. Gostava de atormentá-lo. Traiçoeira, toda vez que surgia, trazia águas escondidas em seu ventre, com o intuito de pegá-lo de surpresa e sufocar os seus dotes ardentes.
E as luas continuavam com suas artimanhas. Insinuavam-se em movimentos acrobáticos. Simulavam, através dos passos sincronizados, como se estivessem piscando. E aquele corpo celeste em chamas, continuava a caminhar lentamente. Os frequentadores da praça não sabiam o motivo dos passos e nem tão pouco as intenções. Porém aplaudiam o show gratuito das luas. Admiravam e pediam bis. Elas sorriam contentes. Se empolgavam com a agitação e felicidade do público. O desagradável para elas era que o Sol continuava indiferente.
Quando a brincadeira com o Sol perdia a graça, partiam para o outro passatempo preferido: contar histórias. Sorriam e choravam dos casos e acasos que assistiam durante a penumbra noturna. O chato para elas, era que em algumas cenas, apesar dos movimentos das imagens e nitidez, o áudio não era bom. Ouviam apenas ruídos e murmurinhos.
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As luas, ainda com os pensamentos atrelados ao acontecimento compartilhado pela Cheia, partiram cabisbaixas para o morrinho depois do rio, onde sempre se encontravam para contar histórias. Ficavam ali por horas, enquanto aguardavam informações para saber quem entraria em campo ao entardecer. Apesar do planejamento anual, preferiam as instruções de última hora. Consideravam a notícia de surpresa mais emocionante.
As quatro amigas torciam para que o momento de trocarem confidências chegasse logo. Combinaram amigavelmente que após o plantão da noite, a escolhida chegaria, descansaria o necessário, brincariam um pouco com o Sol e em seguida subiriam o morrinho.
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Mas naquele dia foi tudo diferente. A rotina foi alterada pela Cheia que chegou em casa assustada. Sem pensar duas vezes, prontamente acordou as outras luas que estranharam a atitude da amiga. Afinal de contas era bem cedo. Ainda dava para sentir o cheiro do sereno.
A pobre lua Cheia, de tão abismada abandonou o expediente alguns instantes antes da hora, mas nada que pudesse comprometer o ciclo natural. Não teve vontade de repousar, tamanha barbárie que presenciou. A cena que assistiu deixou-a perplexa. Aquela imagem em movimento de zigue-zague e depois a pausa forçada do automóvel, latejava com crueldade em sua mente branca. Entristeceu com as lágrimas e dores de dois jovens.
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Era comum, tanto a Cheia quanto as outras luas presenciarem reuniões entre amigos e familiares. Encontros amorosos, secretos e injúrias. Ora elas espiavam pelos vãos das janelas e viam de tudo um pouco. Confidências, sono profundo e o merecido descanso.
Aproveitavam para assistirem um pouco de TV. Bisbilhotavam sem ressalvas e censuras. Quanto mais fatos e detalhes, melhor eram os encontros para compartilhar histórias.
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As luas consideravam o trabalho fenomenal e imprescindível. Tinham uma vista privilegiada de toda a cidade. E numa destas paisagens vivas, o pesadelo se fez presente. Foi uma das poucas vezes em que a Cheia conseguiu ouvir o barulho vindo lá de baixo, tamanha velocidade do veículo no momento da batida. A lua julgou aquilo como um filme de terror. A prisão dentro de um sonho maligno que ninguém gostaria ter ou viver. E ela pegou todo o filme desde o começo. Não sabia, mas de forma intuitiva, teve breve noção que pelo conjunto da obra, poderia acontecer uma das tragédias que abalariam a cidade.
Enquanto a Noite parecia querer chorar, chovia uma tempestade de álcool no copo de alguns amigos na mesa de bar. Inundavam os seus pensamentos e tiravam deles, sem nenhum pudor ou pena, pouco a pouco, a sã consciência que a vida os presenteou. A força daquelas águas etílicas e brutas alteravam e diminuíam minuciosamente o dom grandioso da percepção. E de forma singela. Aparentemente imperceptível e inofensiva. Sem que percebessem, ou fingiam não perceber, suas atenções eram substituídas pela alienação. E este sentimento impuro, trazia junto a irresponsabilidade, a imprudência e o perigo.
Até então um fato quase normal, acompanhado com zelo pela brilhante lua Cheia. Estava um dia convidativo a uma boa cerveja. O inadmissível eram os veículos que aguardavam os proprietários. E os frequentadores do bar, exageravam no álcool sem nenhuma moderação. Pareciam não se importar com suas preciosas existências e nem com a de outros seres.
Alguns amigos só resolviam ir embora quando já haviam perdido quase toda a consciência. O resto que sobrara permitiam que falassem apenas palavras sem sentidos, frases desconexas e caminhassem cambaleando.
A lua Cheia considerou triste a grande e esmagadora vitória do álcool sobre a consciência. Era como se os amigos saíssem dali abraçados a irresponsabilidade. Queriam, por suas atitudes insanas, encontrar a imprudência e se espelhar em seus conceitos. E não podia ser diferente. Conseguiram.
Um dos motoristas, cheio de coragem, resolveu desafiar tudo que via pela frente. E foi incentivado pelo carona, que delirava. O condutor do veículo dilacerou o vento e sorriu, sob as palmas do amigo ao lado. Sentiam-se valentes. Seres invencíveis. Num breve descuido, se depararam com uma parede e não tiveram a mesma sorte. Violaram as leis e quase perderam suas vidas na batida.
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Após o relato da Cheia naquela manhã, as outras luas entristeceram. Não queriam acreditar. Queriam que fosse um blefe. Um pesadelo. Mas sabiam que a amiga não era de inventar história.
A preferência das luas eram pelas histórias de amor. A comemoração dos sonhos realizados, os beijos ardentes, os sorrisos que moldavam as noites de paz, principalmente quando pareciam fazer hora extra. Sentiam um imenso prazer e orgulho ao narrar fatos alegres. E a Cheia, quase sempre registrava as melhores cenas. Talvez por sua elegância ao desfilar nas passarelas da noite, exibindo sua boa forma e o brilho de seu corpo. Sua beleza se destacava, em função do contraste entre a cor negra de seu abrigo temporário e as estrelas que as circulavam.
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E naquele dia, ainda bem cedinho, após o relato da Cheia, as luas deram as mãos e pediram em oração que cenas como aquela jamais repita na cidade. Seja quando uma delas estiverem no expediente ou mesmo no período em que o metido do Sol estivesse caminhando lentamente pelo céu.
No fim das preces foram para a praça, desoladas, para tentar amenizar a dor que invadiram seus sentimentos.