O olho do Sol.
O homem vislumbrava atentamente o campo que se descortinava à sua frente, estudando o relevo dos charcos transbordando com a fina chuva que caia no fim da tarde de outono. Seus olhos corriam entre a massa de homens que eram parcialmente encobertos por uma neblina fraca, a promessa de uma noite fria e longa.
Apesar de o inverno ainda não ter lançado seu manto branco sobre o mundo, fazia frio, talvez tão profundo como o da sepultura. Mesmo abrigado sob um pavilhão de campanha, o hálito do vento enrregelava a figura sentada que aguardava notícias dos batedores. Uma espera que fazia as rugas em sua fronte ficarem ainda mais marcadas.
Cinquenta ciclos haviam se passado desde que a luz o viu pela primeira vez e desse tanto, apenas quinze se passaram desde sua coroação, quando passou a ser Maxximillyan XX.
Apesar da idade, sua face ainda sustentava o frescor da juvetude e aquele que mirasse em seus olhos, veria a chama de um espírito arguto e forte. As únicas máculas visíveis do tempo eram os vincos em seu semblante e fios prateados juntos aos negros de suas temporas. Era alto para os padrões do seu povo e sua figura emanava força e dignidade.
No entanto, naquela manhã, sua face estava carregada e os traços do tempo eram estranhamente profundos na pele do imperador graças à preocupação. Já haviam se passado três dias desde que seus homens correram em busca do inimigo. Cada vez mais a demora trazia inquietação ao espírito do homem que era senhor da maior parte da Face Imaculada do Mundo e do maior exército: As legiões Maxximillianas.
Preocupado, ele percorria com as vistas, as fileiras de soldados, as medindo, pesando.
Na vanguarda ele via as tropas de lanceiros tamahzights das províncias próximas aos desertos radioativos no oeste. Homens esguios, de pele escura e corriácea, recoberta com intrincados desenhos vermelhos que representam seu deus, o Fogo Vivo. Tinham o olhar duro, sendo suas maneiras austéras e poucas eram as palavras que dirigiam para os que fossem de outros povos que os seus. Envergavam mantos marrons e cinzas, cujos padrões e texturas serviam para mesclar os homens ao ambiente inóspito e cheio de bestas onde nasceram. Traziam consigo, como armas, um conjunto de seis lanças curtas, cujos cabos menores que as lãminas esguias, podiam ser usadas a curtas e médias distâncias. Além dessas lancetas, carregavam uma faca longa, achatada e sem ponta que servia tanto para abrir as carapaças dos besouros carnivoros que tangiam como gado, em sua terra natal, como as armaduras de seus inimigos. Finalizando o conjunto, estavam suas armas mais poderosas, as Lanças de Fogo. Hastes longas, atadas em feixes e presas atrás das bolsas de combate feitas com carapaça de besouro, que ostentavam uma esfera de barro cozido em uma das estremidades e ao serem lançadas explodiam em uma nuvem de chamas, calcinando o alvo por várias horas. Poucas bestas ou armaduras eram capazes de suportar sua fúria por mais que alguns poucos micro-ciclos. Atadas em suas cabeças, traziam o shema’ig, a única peça de roupa cujas cores diferiam do morrom e cinza do deserto. Cada cor representava uma tribo e cada uma das trinta que habitavam Shaitan, nome que davam a sua terra, havia enviado homens para servir o imperador.
Seguindo os homens do deserto, marchavam os guerreiros do norte, a terra onde o Inverno de Mil Ciclos ainda não havia acabado. Gigantes de pele doentiamente pálida, com bocas largas e sem lábios, orelhas, narizes ou pêlos. Ostentavam em seus corpos, cicatrizes ritualísticas e adornos de ossos cravados na carne que serviam como simbolos hierárquicos e religiosos. Se nomeavam de jothu’runs, que em seu idioma significava “gelo sem luz”, uma forma póetica de falar sobre sua resistência a temperaturas extremamente baixas e a sua maior vergonha: a cegueira congenita. Os nortistas possuiam como traço racial mais marcante, a ausência de globos e fossas oculares.
Segundo a Litania de São Lebowittz, após a Queda do Sol Falso, alguns dos homens que sobreviveram decidiram se espalhar para escapar da Maldição do Fogo Morto. Alguns fugiram para as estrelas em navios voadores, outros para as profundezas da terra e do mar, mas os jothu’runs continuaram a vagar por sobre Wüsteland mesmo quando a Escuridão do Sol Falso trouxe os espíritos dos mortos. Por essa coragem sem cabimento, seus olhos foram tomados por Bheli’Ahal, o rei do Fosso dos Fogos Frios, como punição. Já o Capítulo da Grande Universidade, afirma que a cegueira se deve aos efeitos nocivos das radiações dos Fogos Frios do Norte e da escuridão que dominou o norte durante mais de 100 ciclos, fazendo com que os orgãos visuais dos jothu’runs se atrofiassem. No entanto, para os nortistas, sua cegueira era uma punição por terem testemunhado os atos do Antigos e nada terem feito para impedir a “Morte da luz”, quando as estrelas foram derrubadas sobre o mundo.
Apesar da cegueira, sua audição e olfato eram quase sobre humanos, fazendo com que os nortistas se movessem como qualquer outro homem durante o dia e infinitamente mais desenvoltos durante a noite. Por séculos foram temidos por sua selvageria e espírito belicoso, até que Maxximillyan XII invadiu o norte e venceu os guerreiros cegos se valendo de sua fraqueza ante armas de longo alcance, tornando-os cidadãos do Império. Desde esse evento, as legiões imperias possuiam pelotões de jothu’runs envergando suas pesadas armaduras de placas sobrepostas de ferro negro que cobriam quase todo o corpo, deixando a mostra apenas as pernas e partes da cabeça. Como arma, portavam espadas de ferro com empunhadura longa e lâmina em forma de foice que chamavam de trollocs. Apesar da aparencia tão incomum, eram simpáticos com todos aqueles que os tratavam com respeito e cantavam quase durante todas as horas do dia com suas vozes graves.
Sob as sombras dos nortistas cegos, estavam as legiões da província além-mar, os canhoneiros de Partha.
Homens de baixa estatura, de pele avermelhada, cabelos raspados, de modos contidos e disciplinados. Suas vestes eram extravagantes, tecidas com sedas brilhantes e metais preciosos, pareciam querer afrontar os olhos, os afogando em cores gritantes. Não envergavam armaduras ou outra proteção além de uma máscara com enormes olhos de vidro escuro. Suas armas eram um sabre longo preso às costas, uma pequena adaga curva que traziam na cintura, uma mochila de combate feita de madeira laqueada e seus canhões de ombro, os Mheludah Apih, que no idioma daqueles homens significava “cospe fogo”. Uma arma cuja origem remontava de antes da Queda do Sol Falso, que foi resgatada dos escombros de uma torre dos Antigos e após vários ciclos de estudos, foi reproduzida e difundida nas terras além-mar, onde serpentes monstruosas e gohulls infestam os campos. Os Mheludah Apih consistiam em um longo cano de aço, com um apoio de madeira para o ombros, forrado com couro macio, que disparavam chamas explosivas a mais de trezentos passos de distância.
Na retaguarda da Legião, aguardava a infantaria pesada, o orgulho da máquina de guerra do Império, seu trunfo e maior poder. Os Kristall Männer se perfilavam envergando suas armaduras de aço cristalino, de placas tão finas e leves como pergaminho de Partha, mas tão resistentes quanto um paredão feito com as rochas das ruínas dos Antigos. A liga metálica de suas armaduras era um segredo passado de geração em geração entre os membros da Nuklear Schmiede, a casta de forjadores de Valley des Lichtes, a capital do Império. Apenas o Grão Mestre da Forja e o Imperador conheciam o segredo e mesmo perguntar sobre ele era punível de morte tanto para o questionador quanto para sua família, vizinhos e animais domésticos.
Não era possível distinguir qualquer traço dos homens que faziam parte dos Kristall Männer, pois as armaduras de placas de aço azulado, com cravos em toda sua extensão e que reluziam tenuemente sob o céu carregado, cobriam seus corpos completamente, não existindo nem ao menos aberturas nos elmos para os olhos. Um dos segredos da liga metálica era esse: o de como os legionários conseguiam enxergar sob o aço. Eram figuras assustadoras, pois a falta de algo que remetesse aos traços humanos de qualquer raça conhecida, logo traziam a mente as lendas sobre os Homens Falsos que habitavam as sombras da Face Morta do Mundo.
Além de suas formidáveis armaduras, os Kristall Männer, tinham as Hammer der Götter, seus rifles elétricos, munidos com uma serra automática e alabarda de neo-cerâmica, cozida nas fossas radioativas do oásis Hannáz, em Shaitan, o grande deserto no oeste. Eles as traziam recostadas em seus ombros, quase como se estivessem a levar um tesouro nas mãos. Os rifles eram capazes de disparar descargas de eletricidade que empalideceriam a maioria dos raios que já riscaram os céus. Além disso, as serras que ficavam abaixo da haste de disparo, eram capazes de cortar quase todo tipo de metal, rocha e madeira. Quando usadas contra seres vivos, lançavam no ar, nuvens de sangue quente, deixando tudo com o cheiro rançoso de sangue vivo. Como último recurso, os infantes tinham uma longa baioneta feita de neo-cerâmica, um material tão resistente como o melhor aço, mas que ao ferir, envenenava o alvo com radiação, minando suas forças, o levando à morte rapidamente.
Por um longo tempo o Imperador ficou revistando as tropas, até que subitamente um pensamento escapou de seu peito:
-Não é o suficiente... Pelo Fogo Vivo, não é o bastante!
Exasperado, o homem ergueu-se, lançado sua cadeira longe, enquanto praguejava:
-Que eu seja roído por Bheli’Ahal e todos os Doze Homens Falsos se isso for o bastante! Maldição! Sangue e Fogo! Eles não bastam!
Dominado pela raiva e frustração, o Imperador caminhou até uma mesa ricamente adornada com metais, cujo tampo circular refletia perfeitamente a caixa de ferro, recoberta de estranhas figuras e runas de milhares de ciclos atrás, que repousava esquecida. Ele olhou fixamente para o quadrado metálico e por um tempo ficou em silêncio, ponderando sobre algo. Seus olhos eram uma verdadeira ressaca de sentimentos conflitantes, pois pareciam não serem capazes de se fixar por muito tempo sobre um só ponto do objeto em estudo.
Somente quando um dos Altos Legados da Legião entrou no pavilhão que o Imperador se evadiu de seu reino particular de inquietudes. O Legado Murnau, envergava uma armadura dos Kristall Männer, era um homem por volta de trinta ciclos, de olhos profundos e cinzentos, com o rosto queimado pelo Sol e o frio, de onde uma longa barba trançada pendia. Assim como todos os demais militares da capital, tinha a cabeça raspada dos lados, deixando apenas o topo com cabelos, que eram cortados rente. Presa nas costas da armadura, vinha o estandarte do Império com os Dois Sóis do Conflito e dois raios dourados, simbolo de sua patente. Ele trazia notícias dos batedores enviados. Após a saudação protocolar, o oficial relatou:
Vossa majestade imperial, as centurias de batedores retornaram... Parte delas. As notícias são alarmantes, meu Imperador! Os homens que retornaram das fronteiras da Face Morta do Mundo, estão apavorados, mal conseguem construir uma frase com coerência. Eles choram e arranham as faces em desespero, pois segundo o pouco que pudemos entender, Ba’Halmuth, o verme de Bheli’Ahal se arrasta em direção à nossa posição.
O temor era evidente no semblante de Murnau, um soldado calejado que já participara de várias incursões nas Terra do Fogo Frio. Isso era preocupante, pois como haveria alguma chance, se as legiões fossem tomadas pelo medo superticioso incutido por ciclos de ensinamentos da Litania de São Lebowittz?
Maxximillyan estava furioso, rangia os dentes e seus dedos embranqueceram ante a força empregada ao os fechar em punho, no entanto, sua voz saiu calma ao dar a ordem:
-Diga aos demais Legados, que devem preparar as tropas para batalha, imediatamente. Ergam no campo, a Auriflama das Duas Faces.
O Alto Legado empalideceu ante a ordem, por instantes suas pernas tremeram e o maxilar abriu-se estupidamente em uma espressão de incredulidade:
-Meu Imperador, tal medida já não é usada desde as Guerras dos Constructos de Met Bin Betzael. Imploro que reconsidere, vossa majestade imperial. Pela Luz, eu imploro em nome das Legiões!
O imperador encarou o soldado, seus olhos eram fúria e dor. Com um movimento veloz, ele segurou a face de Murnau, suas unhas se cravaram na pele do legado, enquanto um ricto quase doentio se apresentava na face transtornada:
-E não achas que sei disso? Que desconheço o preço por exigir que todas as Legiões do Império se sacrifiquem? Sei o preço! Sei bem como quase perdemos tudo! Como o Império Maxximilliano esteve prestes a se estilhaçar! Mas não há outra medida! Se Ba’Halmuth fere a terra dos vivos com seus fogos frios e seu sopro radioativo, devemos o deter! Percisamos! Pela Luz, é tudo o que devemos fazer!
Maxximillyan libertou a face do Legado em com um gesto, exigiu que suas ordens fossem ditadas entre as fileiras, enquanto davas as costas para o homem. Dominado por um misto de medo, vergonha e dever, Murnau deixou o pavilhão em direção às Legiões.
Novamente só, o Imperador por mais uma vez fixou seu olhar na caixa metálica sobre a mesa polida. Parecia exausto, como se já houvesse perdido tudo. Em um sussuro, deixou um pedido escapar de seu peito:
-Luz, que eu não use Teus olhos.
Um vento frio cruzou o campo, enrregelando mais a anima do que o corpo de Maxximillyan.
***
Os sistemas operacionais estavam em estado crítico, todas as juntas de movimentação precisavam de reparos imediatos e a maioria dos fluídos estava com a viscosidade acima dos níveis recomendados. O GPS indicava que uma grande massa humana estava situada na direção oeste da base de vigilancia das Tropas de Infantaria do Oeste do Colorado, mas os dados visuais não estavam em concordância com os que constavam nos arquivos de movimentação e reconhecimento de terreno.
Seguindo a Diretriz 01, Ed-Guy 23 correu em direção à massa indicada nos sensores, desde sua ativação, algums dias atrás, que civis munidos de armas brancas, o atacavam. Nas três primeiras tentativas de contato, não foi possível demover os atacantes de suas intenções belicosas, forçando assim a inicialização da Diretriz 01.
Isso lhe custara dez por cento da energia reservada para o canhão de feixe térmico, mas o ato servira bem ao intuito de eliminar a forças hostis, mesmo que as mesmas fossem de periculosidade baixissima.
Mesmo usando todas as nano frotas de reparos na fuselagem e em aparatos internos, Ed-Guy não conseguia erguer os escudos magnéticos ou passar dos cinquenta quilometros por hora em sua movimenação. Segundo as estimativas, seu encontro com a massa de homens se daria em 257 minutos e 39 segundos e pelos dados coletados acerca dos combatentes previamente eliminados, havia uma chance de 0,0023 por cento de que sua integridade fisíca pudesse ser seriamente comprometida. Uma porcentagem evidentemente não preocupante. A única coisa que ia contra as diretrizes de Ed-Guy, era o absoluto silêncio em todos os canais de comunicação, apenas o GPS e os bancos de dados em órbita, davam sinais de que as forças da União Ocidental ainda operavam. No entanto, eram sumamente preocupante para a missão: o silêncio total nas comunicações.
***
Tão logo a Auriflama foi erguida no campo, um clamor irrompeu entre as Legiões, todos os legionários exigiam saber o motivo para a Derradeira Convocação. Exigiam conhecer o motivo pelo qual suas vidas seriam ofertadas ao Aspecto Sombrio da Luz. Assim que o clamor alcançou os ouvidos do Imperador, ele montou seu corcel e dirrigiu-se ao campo e ao chegar perante seu exército, ergue-se na sela e disse:
-Não mentirei para vocês, hoje a Luz partirá de nossos olhos e nós dormiremos eternamente entre os Imolados Sacros!
Ante tais palavras, os homens se calaram e somente o vento e o chicotear dos tecidos das bandeiras, faziam frente a voz de Maxximillyan. Impassível, ele continuou:
-O Mal Gerado pelo Falso Sol se ergueu e ruma contra nós! Caso ele não seja detido, tudo e todos que ameis, serão engolidos pelo Fogo Frio. Nada restará além de pó, de cinzas luminescentes e alaranjadas! Por isso vos peço... Não! Vos imploro, que luteis até o último sopro! Não por mim ou pela Glória, pois ambos somos apenas pueira ante a Moenda da Existência, mas por os que ainda não viram a Luz e todas as Suas glórias!
E ao terminar, o Imperador apeou e ante suas tropas, curvou-se, como se fosse um homem qualquer ante a um grande sábio. Assombrados, os soldados lentamente ergueram sua vozes. Lentamente os pífaros, tambores e trombetas lançaram no ar a melodia da Canção da Queda, o hino dos legionários que haviam tombado em combate. Um réquiem que nas vozes roucas, com tantos tons de uma alegria fanática, parecia um convite para que o Fogo Frio roesse todas as suas animas.
Exultantes, os Altos Legados cercaramo Imperador e o ajudaram a montar novamente em seu corcel. Sob o canto fúnebre, ele retornou para seu pavilhão, ciente de que havia cometido um crime contra os homens e a Luz. Ciente de que lançara gerações de pais, irmãos e filhos em direção do vazio e do esquecimento. Apesar de uma pequena voz em seus pensamentos lhe dizer que com a morte de todos os seus cento e oitenta mil guerreiros, ele havia semeado a chance, mesmo que mínima, de permitir que outros infinitos milhares vivessem desfrutando as graças da Luz, seu coração pesava em desespero e vergonha. Tão logo chegou ao pavilhão, correu até a pequena caixa metálica e ficou a contempla-lá. Após alguns micro-ciclos, que para sua anima, mais se pareciam com eons sem fim, soluçou em desespero completo. Com a voz embargada, implorou:
-Por favor, que seja possível vencer! Que minha anima queime de frio até que a Pedra da Moenda se parta, mas deixai o Sol de olhos cerrados, eu voz imploro Luz!
Em total desespero, Maxximillyan não ouviu as trombetas de guerra anunciarem a chegada de Ba’Halmuth, o verme de Ferro.
***
Após uma colina, Ed-Guy encontrou a massa de humanos em um charco raso, que segundo o GPS, seria a Rodovia M-6. Parecia que todos os dados transmitidos pelo sistema de localização estavam dessincronizados, apontando marcos de localidades completamente distintas do captado pelos sistemas visuais.
Ignorando uma série de protocolos, Ed-Guy desligou a conexão com o satélite, pois as informações transmitidas eram danosas à missão proposta pela Diretriz 01. Tão logo rompeu a conexão, foram lançados dois drones de análise para coletar dados acerca do grande grupo de humanos que rapidamente avançavam em sua direção.
As sondas singraram o céu chuvoso como dois rouxinóis de aço e assim que pairaram sobre o grupo que avançava, dados foram enviados para Ed-Guy.
Pelo que os sensores demostravam, a massa se tratava de um exército invasor, que possuía bombas, bazucas, rifles de feixe de plasma, de um modelo muito semelhante ao usado pelos SEALS, e armaduras de aço reflexivo. Além disso, uma espécie de organismo criado em laboratório, fazia parte dos soldados. Uma clara desobediência ao Tratado de São Paulo, redigido pela ONU que bania o uso de armamento biológico em conflitos armados.
Munido dos novos dados, Ed-Guy recalculou as porcentagens de vitória. As estimativas de derrota cresceram para cinquenta e dois porcento, ciente do risco de desistruturação de sua integridade física, ele iniciou a segunda fase da Diretriz 01, liberando seus armamentos ao passo que começou a cantar Highway to Hell, inundando o entardecer com uma melodia esquecida por milhares de anos.
***
O imperador só percebeu que Ba’Halmuth havia pisado o campo de batalha, quando sua voz demoniaca lançou maldições na língua dos Falsos Homens. Sua voz era como a de uma mulher sendo violada, uma série de gritos que se misturavam ao som do que parecia ser uma serie de tambores que marcavam os urros desesperados de porcos sendo abatidos. Uma verdade iniquidade, possível apenas para seres tão afastados da luz como o verme maldito.
Ba’Halmuth era gigantesco, maior que uma casa de banhos, se arrastava sobre quatro pares de patas, onde três dedos em garra, maculavam o solo. Possuía uma grande corcova, na qual, seus pequenos olhos vermelhos eram encravados. Verdadeiros horrores, brilhantes e ao mesmo tempo tão sem vida como os dos mortos. Ao lado de sua corcova, ficava o seu grotesco falo, que descaradamente vinha ereto, debochando das Legiões do Império e da própria Luz. Seu corpo era todo recoberto por uma grossa armadura de aço, onde runas místicas malditas circundavam a insignía do Falso Sol, um retangulo onde vermelho, branco e azul eram coroados por constelações do Abismo do Céu Morto. A criatura era uma abominação, uma afronta à Luz.
O verme avançava rapidamente em direção das Legiões, que já se lançavam em carga total contra a besta. Em poucos micro-ciclos, as primeiras fileiras de lanceiros já se encontravam próximas o suficiente para lançar sua lanças de fogo contra o demônio de metal, nuvens de fogo explodiram contra o inimigo, mas de pouco pareciam adiantar, pois Ba’Halmuth continuava avançando enquanto esmagava os guerreiros do deserto.
A chacina era horrivel, por mais que as lanças voassem sobre a criatura, ea jamais parava de pisotear os homens. Já cientes que seus esforços eram mínimos, os lanceiros abriram caminho para que os gigantescos guerreiros nortistas se lançassem contra a criatura. Como um enorme enxame, os gigantes se avolumaram acima das formas de Ba’Halmuth, o encobrindo tal qual um exército de formigas o faz ao se deparar com uma carcaça. Ao longe se ouvia os golpes das Trollocs contra a armadura do verme, por alguns micro-ciclos, parecia que a vitória estava em mãos, mas de súbito, do falo do mostro, uma língua de fogo foi cuspida. As chamas se agarraram nos corpos dos nortistas e não se apagavam mesmo quando eles rolavam na lama cheia de sangue e entranhas. Como formigas sob uma lente de cristal, os guerreiros cegos foram calcinados de forma hedionda.
Enquanto ainda lançava seu semêm de fogo sobre as legiões do norte, Ba’Halmuth recebeu a primeira saraiva de disparos dos canhoneiros. Após os impactos iniciais, o verme passou a se esquivar das salvas de bombas. Ele corria pelo campo, esmagando os moribundos e se utilizando do relevo para fugir dos canhoneiros de Partha. Esse arremedo de caça ao rato se manteve por vários micro-ciclos, até que o ser fugido das Terras Mortas, esticou dois braços de sua corcova e começou a lançar pedras em chamas contra os legionários de além-mar. As pedras gritavam ao serem arremessadas e ao passarem pelo ar, um rastro de fogo as seguia.
O parthianos foram retalhados pelas pedras de fogo, seus corpos eram rasgados como papel, seu sangue, ossos e vísceras voavam para todos os lados enquanto a munição de suas armas explodia ao ser tocada pelo fogo maldito das pedras jogadas por Ba’Halmuth. Os gritos de dor e horros dos legionários era abafado pelos emitidos pelas pedras incandescentes, mas ambos se calaram quanto uma tempestade de raios transformou a tarde, já um anoitecer, em manhã clara. Os Kristall Männer disparavam seus rifles, micro-ciclo após outros era invadido pelo clarão de mil trovões que eram direcionados contra o verme maldito. Nem mesmo em um aeon inteiro, tamanha quantidade de raios havia cruzado o céu e tal prodígio parecia estar criando outro. Pedaços da armadura de Ba’Halmuth se desprendiam de seu corpo, deixando feridas brancas no metal derretido. Quando parecia que a fera estava sem forças, de seu maior olho inrrompeu um brilho escarlate que correu contra os Kristall Männer. Era uma luz fria, mas que ao tocar a vegetação rasteira, a incendiava e deixava um sulco calcinado no solo. Ao tocar os legionários, a luz refletiu em inumeros feixes menores que voaram para todas as direções, se perdendo no firmamento ou se encavando na terra. No entanto, os homens nada sofriam com seu toque.
Em seu pavilhão, Maxximillyan exultava, parecia que a Luz havia ouvido seu clamor e lhe agraciado com a vitória. Mas então, algo que ele jamais poderia vislumbrar, mesmo em seus piores pesadelos, ocorreu.
***
Todos os cálculos e medidas de contra ataque haviam surtido efeito até o momento, no entanto, Ed-Guy não havia calculado a possibilidade de que os rifles utilizados pelos combatentes, pudessem ter uma capacidade tão notável de dano. Mesmo se o sistema de escudos estivesse operacional, os feixes de plasma os atravessariam facilmente.
Após alguns segundos de análises, verificou que sua integridade física estava gravemente comprometida e de acordo com a Diretriz 01, em tal situação, era permitido o uso de armamento pesado. Sem demora, Ed-Guy disparou.
***
O Imperador não entendeu direito o que ocorreu, vira a besta encolher-se toda, escondendo os olhos e patas, tal qual uma tartaruga, então sua corcova abriu e dela foi cuspida uma esfera metálica, de cor preta e laranja. A esfera formou uma parábola no ar e quando em seu apíce, uma luz cegante dominou a noite recém chegada.
Cego pela luz, Maxximillyan sentiu uma forte lufada de calor causticante e logo depois seu corpo foi içado do chão e jogado longe. Pó e cinzas invadiram seus pulmões e ele engasgou como um peixe jogado em um cesto de pescador. Ficou durante um tempo que se parecia ao de um aeon completo, cego e afogando-se no seco, até que lentamente a luz de seus olhos retornou, preenchendo o vazio branco por imagens de horrores vistos em outros tempos, quando a loucura era uma forma de sanidade.
Coberto de cinzas e com bolhas pontilhando sua pele avermelhada pelo ar quente, viu com incredulidade, uma nuvem de chams, que se assemelhava a um fungo, subindo até as estrela, as apagando. Das legiões, nada restava, apenas o chão rasgado por fissuras chamejantes e placas de vidro fumegante, permaneceu onde havia um campo encharcado. Com o horror mais primal que já experimentara, o Imperador gaguejou ante a visão que permeava toda a mítica da Litania de São Lebowittz:
-O Falso Sol! Luz, por que abandonaste Teus filhos?
Ainda sem acreditar totalmente no que via, ele se ergue e para seu desespero total, viu que Ba’Halmuth novamente abrira os olhos e erguera-se sobre as patas. A besta parecia atordoada, como se mesmo ela não fosse capaz de resistir ao poder do Falso Sol que havia cuspido. Mesmo aturdido, o verme ainda teve força para bradar o grito de guerra das forças de Bheli’Ahal. Sua voz horrível ecoou pelo campo, ela dizia uma saudação ao poder do Fogo Frio sobre os seres vivos:
-FUCK YOU, BITCH!
Os dentes do Imperador batiam e as pernas estavam prestes a falhar, pensou em desistir, mas então uma idéia lhe veio a mente, algo que lhe parecia insano até antes do Fogo Frio da Lenda queimar a terra e o céu ante seus olhos. O homem correu os olhos pelos seus arredores, procurando algo e quando encontrou a caixa metálica caída a uma boa distância de onde ficava o pavilhão, riu. Histericamente riu, enquanto lágrimas limpavam seu rosto, deixando sulcos na sujeira. Ele abriu a caixa e dela retirou um artefato estranho, uma espécia de luneta antiquissíma. Ainda tremendo, apertou um botão ao lado da coisa e fixou a visão no verme que jazia parado na distância.
Gravado no artefato, estava a Insígnia do Falso Sol, com suas cores, listras e estrelas.
***
Os sistemas operacionais Anti-PEM de Ed-Guy, haviam resistido bem à detonação do artefato nuclear, mas o mesmo não podia ser dito de sua extrutura física. Danos consideráveis haviam ocorrido na armadura e no sistema hidráulico de movimentação. Seriam necessários vários dias até que a nano frota de reparos pudesse executar a manutenção requerida, o que dado a atual conjuntura, era exponencialmente negativo para o prolongamento de sua vida útil.
Enquanto avaliava a extensão dos danos e inventariava as munições restantes e combustível líquido, os sensores de Ed-Guy apontaram que uma nova fonte de ameaça surgira. Distante, um homem segurava uma arma de alto poder destrutivo, sua mira estava focada no automono de combate, o marcando como alvo.
Ciente dessa nova ameaça, Ed-Guy direcionou toda a força restante para o sistema de movimentação e se lançou em carga contra o inimigo. Segundo seus cálculos, tinha apenas vinte segundos até que o disparo fosse efetuado e sua vida útil tivesse fim.
***
Maxximillyan via todo o campo calcinado pelo visor da luneta, tudo assumira tons esverdeados, fazendo com que um arremedo de tarde nublada surgisse. Na distância, via Ba’Halmuth correr em sua direção. O verme galopava, quase voando rente ao solo. Parecia ciente do poder da arma nas mãos do homem. Parecia saber que um quadrado vermelho lentamente se fechava sobre sua figura.
Tão logo o quadrado se fechou na imagem do verme, o céu foi tomado por uma claridade avermelhada, que parecia elevar o pó do chão, fazendo-o brilhar tal qual um enxame de vaga-lumes. Poucos micro-ciclos depois, um feixe de luz vermelha, desceu sobre Ba’Halmuth, o derretendo quase que de imediato, ao passo que o metal borbulhava, o feixe passou a se expandir, escavando com seu brilho o solo ferido pelo Fogo Frio, corroendo a terra, criando uma profunda cratera, correndo na direção do Imperador, que enlouquecido, ria enquanto sua carne enegrecia e borbulhava.
Quando a luz desapareceu, um vale profundo passou a existir. Um lugar sem vida, onde nenhuma planta ou animal jamais viveria.
***
Após milênios orbitando o planeta, o satélite recebeu a marcação de um alvo. Como se apenas poucos dias após o fim da Terceira guerra mundial houvessem passado, a máquina obedeceu o comando de disparo e lançou um feixe de plasma contra território americano. Um disparo de carga máxima, que nem mesmo durante o ápice do conflito havia sido utilizado.
Tão logo o canhão terminara seu trabalho, as células de captação de energia solar se poram a acumular energia para uma nova descarga de plasma.
No entanto, o último marcador de disparo fora vaporizado naquele dia.
Agora o satélite Sky Eye do Exército dos Estados Unidos da América, ficaria pairando no abismo sem fim, até que tombasse sobre o mundo como uma chuva de estrelas.