O Evocador
- Manifeste-se, demônio! Perante as forças de YHVH, eu ordeno que apareça diante de mim e obedeça minhas ordens!
Cristian vocifera, empunhando uma espada com a qual aponta para o triângulo desenhado à sua frente no chão. Em sua mão esquerda, descansa um livro espesso, de capa de couro preta e páginas amareladas pelo tempo .
Engole em seco, ao dizer as palavras.
“Será que não vou ofender o espírito, dizendo tais palavras?”Cristian percebe sua falha com o pensamento negativo. “Não, eu sou um mago, ele deve me obedecer! Além de tudo, tenho de seguir o ritual à risca…”
O rapaz repete as palavras por duas vezes, mas nada acontece. Volta ao livro, que indica que a ordem deve ser dita não mais de três vezes e, em caso de falha, uma maldição deveria ser proferida à entidade que estaria em desrespeito com o mago.
Após, vacilantemente, praguejar contra a existência do espírito, Cristian, nervoso, volta três páginas no grande livro e resolve verificar seus procedimentos.
- Não, está tudo certo, eu fiz tudo certo… O enxofre, o triângulo com o turíbulo… a fumaça está branca e densa, perfeito… Minhas ferramentas mágicas estão consagradas…
O aspirante a mago ouve um tossido às suas costas e, assustado, vira-se bruscamente. “Maldito seja, deveria se manifestar no triângulo! O que está acontecendo?” , pensou.
Ele observou a silhueta de um ser pequeno atrás da fresta da porta de seu quarto. A porta fecha rapidamente e ele ouve o som de passos rápidos, seguido de choro e gritos de uma garotinha.
Cristian largou a espada no chão e atirou o grimório contra a porta. Com o sangue fervendo, largou suas ferramentas e toda a parafernália ritualística da maneira que estava e saiu correndo de seu quarto. Ele já havia entendido: sua irmã mais nova, Sarah, estava lhe espionando durante todo o ritual. Pensou que essa foi a provável causa de sua falha.
Ainda vestido com seu robe ritualístico, alcançou sua irmã e segurou seu pulso firmemente. Com as orelhas pegando fogo e muita raiva dentro de si, Cristian grita, como se estivesse amaldiçoando o tal demônio:
- Sua infeliz! Quem deixou você entrar no meu quarto? Você sabe que ninguém, nunca, pode entrar no meu quarto! Maldita, maldita! Que queime nos sete infernos!
Sarah, com seus apenas 8 anos, intensifica seu choro e desespero. Ao se livrar de seu irmão, foge em busca de sua mãe.
Em um lapso de racionalidade, Cristian percebe o absurdo por ele cometido.
“Eu não consigo nem ao menos controlar meus demônios internos e estou aqui tentando evocar um espírito desconhecido… No fim, parece que eu trouxe mesmo o inferno pra cá.”, pensa , lamentando e segurando um choro de remorso.
Essa foi a décima tentativa de Cristian realizar esse ritual. Nunca havia evocado um espírito e estava na ânsia de realizar esse feito. “É só mais uma falha”, refletiu. “Se não desisti até agora, não será dessa vez que desistirei.”
Alguns meses se passaram enquanto Cristian se preparava para mais uma tentativa. Resolvera tirar férias e alugou uma casa de campo. Durante a semana que precedera sua décima primeira tentativa, Cristian se retirou para meditações, manteve sua alimentação frugal e permaneceu totalmente casto. Sentia-se preparado para realizar aquele que seria o primeiro grande feito de sua carreira magística .
Em uma noite sem luar, Cristian preparava sua estação de trabalho: portava a espada, o bastão, o cálice e a moeda. Ao seu redor, um círculo havia sido traçado e marcado com diversos nomes de Deus, anjos e arcanjos. Ao leste, um triângulo composto por enxofre encontrava-se traçado. Dentro, seu turíbulo já queimava as ervas prescritas pelo grimório. As plantas haviam sido maceradas com suas próprias mãos, até que estas, agredidas pelo atrito, sangrassem.
Tudo estava pronto. Cristian fitou o triângulo sem o sigilo do demônio a ser evocado. Cristian sabia que, ao se evocar espíritos, se fazia necessário conhecer o mesmo, seu nome e seu sigilo, o símbolo que condensa e materializa as energias de um ser em específico. Mas esse ritual a que ele tinha acesso era diferente.
O adepto traçou o círculo mágico e realizou diversos feitiços para banir e afastar espíritos e energias indesejadas. Devidamente paramentado com suas armas mágicas e, novamente, portando o velho grimório, começou a recitar as antigas palavras. Para sua surpresa, no meio de seu discurso, a densa fumaça branca, lentamente, adquiria tons alaranjados, amarelos e vermelhos. Sentiu um arrepio em suas costas. Cristian continuou as entonações e, antes de terminar, conseguia observar uma figura permeando aquela fumaça. O semblante era de um homem gordo, a estatura era baixa e, quanto mais o tempo passava, mais nítida a imagem ficava. Cristian percebeu que já havia, a algum tempo, parado de recitar as palavras. Parecia-lhe que já não importava mais, que havia conseguido seu intento: havia evocado um demônio.
- Manifeste-se, demônio! Perante as forças de YHVH, eu ordeno que apareça diante de mim e obedeça minhas ordens! – vociferou Cristian. O evocado, no entanto, não parecia ouvir, visto que não respondera a ordenação.
- Vamos, manifeste-se! Você não consegue me ouvir? Não me vê? Sente minha presença? – indagou Cristian. – Quem é você e qual o seu nome?
Para sua surpresa, a entidade mostrou -se inteligente e capaz de dialogar:
- Finalmente, finalmente sem erros… Ah, você consegue me ouvir? Olá.
Cristian se sentiu envergonhado: “estaria a entidade impaciente com suas falhas em evocá-la?”
- Olá, olá, sim, consigo. Qual é o seu nome? - questionou novamente Cristian.
- Meu nome? De que isso seria importante? Digo apenas se disser o seu.
Cristian preferia não enfrentar o demônio diretamente. Era sua primeira evocação. Ele precisava apenas do nome e sigilo da entidade para que conseguisse chamá-la mais facilmente, das próximas vezes. Esse era seu único objetivo nessa operação.
O mago não queria proferir seu nome. Ele sabia que isso é sagrado e, assim, indicou seu nome iniciático:
- Sou conhecido por Prometheus. Agora você, diga seu nome e mostre seu sigilo.
- Prometheus? O acordo era pelo nome, e sou chamado de Kaquovis. No entanto, tenho interesse em ter seu sigilo também, então sugiro uma segunda troca.
O evocador se sentiu acoado. Abaixou sua arma mágica e já não entendia o que estava a ocorrer. Ficou preocupado e fez algo que sabia que, posteriormente, se arrependeria. Pegou um de seus cadernos, nervosamente folheou até uma das páginas e, relutantemente, mostrou seu sigilo para a entidade.
- Muito bem, Prometheus. Registrado está. Aqui está meu sigilo. – E fazendo alguns rápidos movimentos com suas mãos, seu sigilo apareceu flamejante, em vermelho, na frente de Kaquovis. Rapidamente, Cristian anota tanto o sigilo quanto o nome do evocado e retorna para o mesmo.
- É isso, então. Agradeço sua presença e está livre para ir.
- Livre para ir? Ora, eu sempre estive livre para ir. Mas se deseja encerrar por aqui, que assim seja.
Rapidamente a figura apaga e a fumaça torna a ser branca. Cristian realiza todos os rituais de fechamento, banindo energias indesejadas e retorna para seu caderno para, enfim, registrar seu sucesso.
"Sol em peixes, Lua em peixes. (Obs.: Conjunção Sol, Lua e Júpiter )
Após tantas tentativas, finalmente consegui realizar o feito descrito no Ars Colloquium. Não sei das qualidades de Kaquovis, mas certamente poderei evocá-lo mais vezes, agora que possuo informações sobre ele. Não me pareceu tão demoníaco quanto o livro prevê.
FR. PROMETHEUS"
A centenas de milhares de quilômetros e a algumas dimensões paralelas dalí , também escrevem em seu grimório:
"Conjunção Sol, Io, Calisto e Planeta Água em Virgo.
Evocação realizada com sucesso. O evocado, Prometheus, se manifestou com plena clareza em meu espelho negro e acatou todos os meus pedidos. Nome e sigilo registrado para futuros trabalhos. No entanto, não pareceu tão demoníaco quanto o livro prevê.
KAQUOVIS"