Consequências
A luz tênue e alva da lua refletia suavemente na lamina da minha espada que repousava de forma serena em meu colo, enquanto meus olhos permaneciam focados no horizonte, onde a visão se perdia em um imenso oceano. O mar estava calmo, com ondas preguiçosas que se atiravam sobre a areia acinzentada pela noite. Minha mente vagava em paz naquelas águas, com imagens de minha terra natal, de meus amigos e das praças em que eu costumava dormir, após entreter o povo da vila com truques de malabarismo, musicas serenas de harpa ou flauta doce e às vezes, só às vezes, quando guerreiros e soldados passavam pela vila, mostrava meu espetáculo com a espada, uma espécie de dança, que esse povo não aprecia por acreditarem que não tem valor no combate. Mas estão errados.
A armadura de cota de talas é a mais leve que eu consegui arranjar, feita de um metal da cor dessa areia noturna, e que irá me proteger apenas de flechas e golpes de espadas mal cuidadas e sem fio. Espadas dessas que apenas a infantaria usa, infantaria composta de soldados que são na verdade carpinteiros, padeiros, lavradores… Já os capitães sabem o valor de suas espadas e as tratam como se fossem seus braços. A força do braço para uma espada forte não faz diferença no corte, mas faz na perfuração. Um capitão sabe disso. Eu sei disso, mas faço parte da segunda infantaria.
Ouço a primeira sair do acampamento. Meus olhos continuam focados no mar. Agora em minha mente, repasso todas as lutas e batalhas das quais já participei, lembro e as revejo em minha mente, volto analisar meus movimentos, os padrões dos adversários… Sei do peso dessa armadura e da agilidade que ela vai tirar de mim, mas sei também que uma flecha bem posta no corpo é fatal, a ponto de, após ser atingido, sua vida ter sido encurtada a dez ou vinte segundos.
Olho para minha espada. Sinto seu fio com o polegar, me vejo em seu reflexo. Sim, ela está pronta, como um braço forte, como uma cobra rápida e ágil que, com apenas um bote, incapacita sua vitima, não importa o tamanho ou força. Gentilmente, guardo-a na bainha de aço, usando-a como apoio para me levantar e por fim a amarro em minha cintura. Apoio minha mão direita no cabo e sigo meu caminho para a minha posição. Desde que entrei no exercito, sempre fui soldado da segunda infantaria. A primeira é composta de suicidas, que dão suas vidas para acabar com os arqueiros e outras formas de ataque à longa distancia. Quando isso acaba, deslizo entre os corpos mortos caçando os vivos, para que eles se juntem aos meus amigos mortos dessa forma.
Meu pelotão então avança pela areia. Esta noite estamos atacando um forte, que protege uma série de vilas dentro da rala floresta que se forma após a praia. Vejo alguns mortos, outros vivos, alguns deles no chão, incapacitados. É isso que faço, não perco tempo dando golpes mortais, apenas procuro deixar o soldado fora de batalha. A maioria que fica de frente comigo sai viva, às vezes sem uma parte do corpo, mas ainda viva. Desembainho minha espada enquanto avanço em direção ao aglomerado de inimigos com lanças. Desde que entrei no exercito, sou treinado em como evitá-las e incapacitá-las.
O pequeno grupo avança em minha direção. Vejo as três principais lanças em minha frente, apenas aguardando o momento em que chego em sua área de alcance, mas quando esse momento chega, eu subitamente paro e dou um pequeno salto para trás. As lanças, nesse momento, estão esticadas em minha direção e os soldados me olham com um olhar surpreso, mas também de medo. Eles entendem que, na posição em que se encontram, o primeiro golpe decide a luta. No instante em que meu pé toca o chão, salto novamente nas lanças, mas desta vez sei que eles não poderão me estocar. Fico entre os três e, como em uma dança, giro minha espada entre dois deles. Um fica com o braço preso apenas por um fino pedaço de carne e o outro já esta a caminho do chão, com as tripas acompanhando a queda. Esse é o problema das armaduras de infantaria, quando a espada é bem cuidada, tanto faz o que você veste, um golpe sempre o atingirá. Dessa forma, alguns preferem armas de contusão como maças e martelos, pois nossas espadas pobres têm o fio grosso e tosco, que apenas serve para rasgar a carne, não madeira e aço.
Aproveito a força centrifuga do meu corpo e perfuro o soldado da frente na barriga. Não que eu precisasse de toda a força que consegui para o golpe, mas em batalhas com mais de um oponente, seus movimentos devem ser contínuos, sem a chance da reação dos soldados adjacentes. Tiro minha espada do corpo do jovem soldado a minha frente, os dois lanceiros da linha na qual avancei estão ocupados com outros soldados, logo preciso me preocupar com a minha frente.
Então vejo o que me fez perder a atenção por um segundo, uma mulher do exercito inimigo, dançado como eu, sua espada portava uma sublime aura prateada pela luz da lua, mas a ponta, e apenas a ponta, estava coberta de sangue. Ela lutava como eu. Mas isso não foi o que mais me impressionou, seus olhos estavam brilhando, não havia medo na sua face, apenas a convicção de saber pelo que esta lutando. Sim, aquela era a única mulher do mundo que seria capaz de retirar de mim o sentimento mais sublime que existe, ainda assim, minha inimiga, agora minha rival.
Nosso olhar se cruzou por um brevíssimo instante, minha espada estava em diagonal à frente do meu peito, em uma posição defensiva contra possíveis ataques frontais, senti um toque na espada e, em uma batida de coração, girei meu corpo para evitar a segunda linha de lanças. Desci meu corpo o máximo que pude, as lanças passaram por cima de mim, eu as vi como arautos da morte. Eu poderia ter sido morto, isso nunca aconteceu em uma batalha.
Golpeei as lanças que foram cortadas, logo após os soldados a minha frente. A batalha havia ganhado um novo motivo, dominar essas terras agora, para mim, nada mais seria do que o resultado de nossa investida. Comecei meu caminho ate aquela mulher, mas a legião me impedia, como uma barragem que impede o fluxo natural de um rio. O brilho daquela espada me indicou sua posição, e onde estava, notei que avançava em minha direção. Minha alma se encheu de alegria, em breve estaria cruzando espadas com a única pessoa digna do meu talento.
Assim que um corpo caiu a minha frente, vi ela e sua armadura avermelhada. Mesmo que no primeiro momento tenha visto apenas seu rosto, sabia que sua armadura seria como a minha, é a melhor opção para esse tipo de confronto. Paramos um segundo, nossos olhares focavam um ao outro, nossas espadas gotejavam o liquido rubro da vida e nossas almas se cumprimentavam.
Nos movemos no mesmo instante, sua espada girou com formosura, seu corpo tinha a agilidade de um felino, um felino saudável e caçador. Me mantive firme, protegi minha bacia do golpe lateral como um cervo, golpeando com firmeza seu predador. Sua espada se tocou a minha, o impacto diminuiu o sangue em suas belas e poderosas laminas, a vibração em nossos braços foi como um convite para uma dança, dança aquela que, dentre ambos os exércitos, apenas nós sabíamos dançar.
Ataquei então lateralmente, sua espada longe da área de defesa. Como esperado, deu um pequeno salto para se esquivar da ponta da lamina, posicionou o pé à frente do corpo e a espada na altura da cabeça, em minha direção. Sorri por um momento, mas desviei um olhar para o soldado do meu exercito que a atacaria. Esse gesto foi o suficiente para ela se livrar de um martelo robusto que girava em sua direção. Percebi que aquele não era o momento para a nossa luta, nossa dança, nosso encontro. Ela também percebeu e avançou em meus companheiros, eu fiz o mesmo nos dela.
Após alguns minutos de combate, nosso pelotão já havia sofrido um enorme numero de baixas e o nosso capitão finalmente deu a ordem de recuarmos. No mesmo momento da ordem, a cumpri. Sei quando estamos perdendo e tenho o senso de querer viver para um outro dia. Covardes vivem para lutar no dia seguinte. Covardes voltam para suas esposas.
No meu caso, eu sabia que o destino havia me dado a única oportunidade de abaixar minha guarda, embainhar minha espada e sair daquele mundo de lutas e guerras, indo para um onde eu poderia ser feliz com minha mulher, minha casa e meus filhos. Mundo que conheci em seu olhar, em sua espada, em sua dança… Nosso futuro como um paraíso, uma paz que possa ser desfrutada, recompensa de todas as batalhas, todo o treino e todo tempo que foi gasto antes de encontrá-la. Mas sei que é assim, cada coisa vem no seu devido tempo, se você a merece, se você está pronto para recebê-la, ela vem para você, como um prêmio.
Já no acampamento, voltei para o litoral, sentei e meditei. Sua imagem aparecia em minha mente como a força de seus golpes, deslizavam sutilmente, mas as marcas que deixavam eram profundas. Nesse momento ela também estaria meditando, sobre a batalha, sobre mim. A certeza de que ela sentia o mesmo que eu era absoluta. Nossas aparências não importavam, nossos passados nem nossos nomes, almas gêmeas nasceram para estar juntas, se completarem.
Tudo que eu precisava saber era onde, onde ela estaria meditando. O que completa a agua? O vento seria o único elemento que não agrediria o meu. Pus-me de pé novamente e voltei o olhar para o forte. Procurei o pico mais alto até encontrá-lo, iluminado serenamente pela lua. Não precisaria atravessar o forte, o que facilitou minha busca. Não vesti minha armadura, não seria necessária. A espada dela seria capaz de tirar minha vida mesmo que vestisse a mais dura de todas elas.
Quando terminei de subir o pico, a vi sentada, a lua formava uma aureola ao redor de sua cabeça, não portava armadura, apenas um fino vestido de seda negra e seus cabelos estavam soltos, caídos de forma sublime pelas suas costas. Se manteve inerte por um momento, depois suspirou e tirou a espada do colo, apoiando-a no chão e se levantando. Seus olhos se encontraram com os meus e nossas almas se cumprimentaram mais uma vez, nossas espadas tremiam, ansiosas em nossas bainhas, ansiosas pelo único combate que realmente valeria a pena a luta. Sua voz, tão linda quando seu rosto, disse apenas que sabia que eu viria, que nosso combate já estava predestinado, desde o momento que me viu, já sabia disso. Disse também, que se ganhasse a luta, eu sairia do exercito, pois a única remota chance de vitoria, era um plano que me teria como peça chave. Eu disse que, se eu ganhasse a luta, nós dois sairíamos do exercito, e voltaríamos para minha terra natal.
Ela desembainhou a espada, fiz o mesmo. Meu coração estava disparado, não queria perder a luta, não queria machucá-la. Ficamos parados, nossas espadas em mãos, nossos corações se preparando e nossas mentes tentando entender a situação. Foi então que eu entendi. Entendi toda a situação, tudo que estava acontecendo. Um soldado que ainda pode lutar sempre irá lutar, não importa se é casado, não importa se tem filhos.
Fiquei em posição de ataque, ela fez o mesmo. Tomei fôlego e avancei. Ela mirou o ombro que eu segurava a espada. Quando o golpe estava a caminho, soltei a minha companheira e me deixei ser acertado. Havia tempo, muito tempo, que não sentia aquela dor. Por pouco, muito pouco, o golpe não perfurou meu pulmão, mas conseguiu atingir minha escápula, cai no chão segurando meu ombro, o sangue minava do ferimento, escorria da minha mão para meu braço. Ela guardou a espada e disse apenas uma palavra, “covarde”. Depois disso ela me abandonou ali e foi embora.
Eu chorei, mas não era de dor. Minha espada, eu abandonei minha espada em troca daquela que seria meu braço direito, e agora, nenhum dos três eu tenho. Deixei minha espada ali, onde ela sentava para meditar, embainhada e suja com meu próprio sangue e voltei.
Quase dois anos depois, em minha terra natal, tocava com dificuldade minha harpa. Meu braço ficou ruim depois daquele golpe. Não podia mais ser um soldado, não podia mais ser um fazendeiro. Tocava minha harpa, uma musica triste, mas esperançosa, uma música que, em suas notas, falava sobre uma guerreira, sobre um guerreiro e sobre uma decepção. Mas a culpa foi minha, eu não lutei pelo que eu queria. Os termos eram claros, se eu ganhasse ela viria, e apenas se eu ganhasse. Me deixei ser tomado pela fraqueza, pelo medo, pela covardia… Traí minha espada, meu ensinamentos… Trai minha vida e pelo que lutava. Trai a mim mesmo.
Essa musica é triste, disse alguém da pequena platéia, ela me lembra um guerreiro que largou sua espada em uma batalha, pois não queria ferir a única pessoa no mundo que seria capaz de amar.
Eu levantei os olhos e a vi, aquela mesma mulher, seus cabelos e seu vestido negro de seda. Não carregava uma espada, não carregava o brilho que tinha nos olhos. Mas o brilho dessa vez era diferente. E o brilho era para mim.
Mas o que encanta as pessoas, nessa musica, é a esperança. Ela continuou, se levantou e veio ate mim, ainda falando. É o sonho e o amor, a essência da fé. A crença inabalável, mesmo que machucado, mesmo que abandonado. Essa platéia esta aqui para ouvir essa musica, entender esse sentimento, e com ele, prosseguir com a fé que lhes é dada por você.
Ela sentou ao meu lado e tirou uma flauta, no movimento notei uma cicatriz em seu braço, um pequeno inchaço que me dizia que seu braço fora quebrado. Não mais era uma guerreira, sua espada não podia ser empunhada.
Da sua flauta, uma musica lenta saia com facilidade. Tínhamos talento para as artes, e só éramos bons guerreiros pois fazíamos da luta uma arte.
A canção falava sobre uma guerreira que teve de abdicar a única pessoa que a amaria de verdade por seu amor a pátria, por sua família e por todos aqueles que já viveram ao seu lado. Sobre a tristeza que essa guerreira sentia, sobre as lutas que teve que travar, sempre esperando sair viva para que um dia, pudesse encontrar esse guerreiro que sempre o via em seus sonhos, em seus desejos.
Então juntos tocamos uma musica sobre dois anos. Dois anos de guerra, dois anos de espera. Um tempo onde duas almas se separaram, duas almas que deveriam estar juntas. Tocamos uma musica sobre a esperança, sobre o amor que sempre existiu, e sobre o reencontro que os dois guerreiros esperavam. Reencontro que não podia ser mais sublime que uma canção.
Ela me convidou para viver com ela, em sua terra natal. Eu não tinha família, poucos amigos, nenhuma raiz. Era por esse momento que espereva, que minhas musicas falavam, que a esperança me abençoava.
No pico onde nos confrontamos, nossas espadas jaziam em um pequeno templo que fora construído. Uma ao lado da outra, embainhadas, dormindo. Minha espada sempre esteve aqui, e sempre estará, junta daquela lamina que me deu a única coisa que realmente importa na minha vida.
Ela, aquela guerreira.