Um grito na Escuridão

Meu nome é Alan Castro Diniz, eu tenho 17 anos de idade. Por toda a minha vida tentei ser aquilo que os outros queriam que fosse. Sempre fui rodeado de amigos, sempre fui o aventureiro da turma, o grande cara.

Agora são onze e vinte sete da manhã, eu estou contando os últimos minutos da monótona aula da senhora Diniz, divido minha atenção entre o relógio e o fim da explicação sobre o sistema reprodutor dos répteis. A senhora Diniz, depois de vinte e cinco anos dando aulas na Joaquim Ribeiro, repetindo as mesmas aulas todos os dias, acho que nem ela deve gostar de falar sobre a cloaca dos crocodilos. Mas ela apenas está seguindo a programação, assim como seus alunos em frente a ela. Não que exista muitas outras escolhas, aparentemente não há muitas pessoas que realmente possam mudar algo, a maioria só sabe reclamar das coisas. Agir não parece coisa de seres humanos já faz tempo.

O ponteiro do relógio se move um pouco, eu suspiro tentando retirar de mim toda a frustração que carrego no meu peito, para ser sincero eu não quero estar aqui, nem sei por que não saí da sala sem prestar desaforo pra ninguém, mas já que estou aqui até agora, esperar pouco mais de um minuto não vai me matar.

- Então nesse caso, se houver uma pergunta na prova…

Anselmo perguntando algo pela enésima vez nessa aula. Realmente não consigo acreditar que alguém aqui esteja dando bola pra como as fêmeas de crocodilo defendem seus ninhos, ou como é a musculatura da mandíbula de uma serpente, mas ele deve ter seus motivos. Nunca tive nada contra ele, mas agora eu só consigo pensar na Vanessa e nos últimos segundos que me separam dela. Com tudo que vou ter que fazer à noite, quero muito falar com ela. Não que eu esteja com medo, mas nunca se sabe.

Fecho os olhos no momento que o relógio marca as onze e meia, sempre atrasa um pouco, a rotina de um adolescente não é pesada, mas muitas vezes é torturante. Nada como não ter as rédeas do nosso próprio tempo e por que não, o nosso destino. Idiotice minha, achar que essa jaula acaba quando a maioridade vem. Mais responsabilidade, mais confiança e as mesmas amarras, só que em outras faces.

O último sinal toca, eu vibro dentro de mim. É como se eu vencesse uma guerra, mesmo sendo algo tão simples e tolo, eu vibro.

Me levanto e jogo minha mochila nas costas, saio da sala com passos rápidos e Vanessa já está me esperando, eu a puxo pelo braço e a beijo.

- O que é que você queria tanto fazer? – Ela me perguntou.

- Só quero passar esta tarde com você, almoçamos juntos e vamos ao cinema.

- Do nada assim?

- É, tem problema?

- Não, sem problema nenhum. Mas, isso é estranho. Você está agindo estranho, desde ontem à noite quando não quis conversar comigo, saiu lá de casa dizendo que estava nervoso demais pra falar. E agora isso?

- Estou querendo compensar, eu sei que é difícil me agüentar quando estou nervoso.

Fico pensando quanto tempo ela vai demorar a me perguntar.

- Isso tem a ver com o André, não tem? – Pronto, já perguntou.

- Amor, o que o André faz ou deixa de fazer é coisa dele, se ele está querendo acabar com a vida dele, é algo que eu e nem ninguém poderia mudar.

Ela fita os meus olhos, talvez cinco segundos:

- Por que você ainda tenta mentir pra mim? Eu sei que você quer ajudá-lo, mas é perigoso demais! Alan, você sabe que é. Não venha tentando me agradar com idas ao cinema. – Ela põe as mãos no rosto, eu não tenho reação, ela é uma das poucas pessoas a quem eu não posso enganar. Ela sabe tudo sobre mim. Depois de pensar um pouco, ela ajeita o cabelo e com um olhar imponente diz:

- Eu sei que não vai adiantar nada, você quer ajudá-lo! Mas por favor, não passe dos limites. – Tentei beijá-la de novo, mas ela se afastou. – Você não é um super herói, e não se esqueça disso!

- Tudo bem! – Eu disse – Eu prometo que vou estar inteiro pra você amanhã cedo.

- Vamos pra minha casa, prefiro alugar uns DVDs e ficar a tarde inteira com você no sofá, já que quer me compensar.

- Como você quiser.

Horas mais tarde

A tarde foi ótima, Vanessa sabe como me fazer esquecer os meus problemas. Pena que assim que saio de perto dela, elas vêm de novo como fantasmas me assombrando. Agora são dez e vinte três da noite, estou na porta do armazém dos Machado, aqui que ele disse que me buscaria. O tempo passa e eu fico impaciente de novo. Começo a pensar, como meu melhor amigo, aquele em quem todos nós confiávamos se envolve com traficantes e fica com a cabeça a prêmio? Como ele poderia bolar um plano de assalto pra pagar uma dívida de drogas? Esse não é o André que eu conheci, mas eu não vou deixar as coisas desse jeito! Não importa o que aconteça, eu vou trazê-lo de volta.

Sem demorar muito mais ele chegou e eu pude ouvi-lo à distância, o opala preto estaciona na minha frente e ele abre a porta do passageiro para mim:

- Entra! Temos que ir rápido! – Entro bem rápido e fecho a porta, André me estendeu um revolver – Não sabemos se vai ter alguém lá.

Eu pego o revólver, a primeira coisa que percebo é que é mais pesado do que parece. Coloco na cintura e penso que deveria impedir André de fazer mais uma loucura, mas pra ser sincero, não consigo falar nada.

O carro acelera e vamos em direção ao barzinho que André disse que seria nosso alvo fácil.

- É um pouco longe. – Ele disse – Talvez leve dez minutos se pegarmos as via expressa, eu estou contando com você Alan!Se alguém atrapalhar, você não pode hesitar!

- André. Não consigo acreditar que estou ouvindo você falar assim. Você não teria mesmo nenhum problema se eu matasse uma pessoa lá, não é?

- Não sei por que está falando isso. Eu preciso da sua ajuda amigão.

- Eu vim até aqui, por que achei que em algum momento, você voltaria a pensar.

- Não! –Ele gritou – Se eu não fizer isso, se eu não conseguir o dinheiro eles me matam!

- E pra isso você está disposto a tirar outra vida?

- Não pode estar falando sério, se não está disposto a me ajudar, então eu não preciso de você. – Não consegui acreditar que ouvi aquilo, tirei a arma da minha cintura.

- Eu nunca achei que você iria cair tanto. – Com toda a força que tenho, lanço o revólver pela janela do carro.

- Tá maluco? – André grita de novo – Sabe quanto isso me custou, o quanto isso ira me ajudar.

Abaixo minha cabeça, o tempo parece parar, André está gritando comigo, mas não ouço nada. Olho para frente e vejo uma grande luz, ela flutua sobre o chão a uns dois metros de altura. São só segundos e ela brilha com força, só aí André a percebe, seu brilho nos atinge e o carro perde o controle, rodamos na pista e capotamos. Não sei quantas vezes, mas as ferragens do carro me pressionam com uma força que nunca senti antes, tudo escurece, ouço muitos ruídos indescritíveis.

Abro os olhos, estou preso entre as ferragens, mas não sinto nada. Não consigo ver muita coisa, só uma pequena luz que atravessa o metal contorcido, começo a pensar se estou inteiro.

Continuo sem sentir nada, tento mexer o pescoço, parece que as ferragens me prenderam nessa posição, seria bem melhor eu não mexer, mas não adianta. Se os danos forem grandes demais eu vou morrer de qualquer jeito. Penso na Vanessa, nos meus pais e no André. Não consigo ver onde ele está, mas duvido que esteja melhor que eu. É melhor eu tentar ao menos ver com eu estou e talvez eu possa me mexer um pouco. Quando tento me virar ouço o som de metal rangendo, e me sinto mais livre. Mexo meu braço e não sinto nada, só ouço o metal rangendo, então consigo trazer meu braço até o meu rosto. Estou sem nem um arranhão. Não consigo acreditar, me mexo mais um pouco e retiro o outro braço. Com um único empurrão abro uma passagem e me levanto das ferragens, olho pro opala no chão. Não sobrou nada.

- Como eu sobrevivi a isso? – Me pergunto.

Começo a andar, o mundo apaga. Se estou vivo ou não não sei.

Estou andando há horas, na verdade nem sei a quanto tempo estou andando, estou voltando para casa, mas de uma certa maneira não quero voltar, tento evitar as pessoas. Depois da batida, muita gente me cercou, queriam saber se eu tinha visto as pessoas que estavam dentro do carro, parece que não me viram sair de dentro dele. Saí de lá na mesma hora, pensei que se eu tinha dobrado o metal sem nenhum esforço poderia facilmente partir um braço ao meio ali. Só olhei um pouco pra ver se André estava lá dentro, não vi nada. Algo dentro de mim me diz que, seja lá o que aconteceu comigo, aconteceu com ele também. Já estou quase no meu bairro, passo em frente à prefeitura. Estão reformando uma praça aqui já tem algum tempo, parece não ter ninguém lá dentro, eu dou a volta até o lado menos iluminado da praça. Toco na grade, não sinto nada, parece que não estou tocando o metal, é como se nada existisse. De alguma forma eu sei o que preciso fazer, dou dois passos para trás. Num salto eu pulo as barras sem sequer chegar perto delas. Durante os segundos que fico no ar eu olho para o céu, me imagino voando, então eu sinto alguma coisa, algo dentro de mim. Eu me sinto livre! Estou dentro da praça, vejo um caminhão. Eu olho em volta, não tem ninguém que possa me ver ali, me aproximo e toco no caminhão, eu seguro e aperto com força. Nada acontece. Eu imagino o que pode ter acontecido, imagino se seria mesmo capaz de fazer o que tinha feito no carro, ou como saltar a grade. Aperto de novo a lataria do caminhão, ela se amassa como se fosse papel e range até se quebrar. Eu dou um passo para trás, dou um soco no caminhão, e de novo nada acontece. Eu penso em empurrá-lo para longe, e quando dou outro soco ele se move por três ou quatro metros antes de tombar no chão. A lateral está totalmente esmagada, o barulho é imenso, várias pessoas se aproximam, eu começo a correr, estou bem distante das grades quando tento pular, passo por cima delas e vou parar do outro lado da rua, não penso em hesitar e continuo a correr. Eu nunca corri tão rápido, atravesso dois bairros e não me canso, paro de frente à minha casa. Abro o portal, estou normal, sem nenhuma força bruta, de alguma forma eu sei que posso controlar tudo que está acontecendo. Quando entro em casa meus pais já estão dormindo, olho no relógio da cozinha e vejo que já passa de uma da manhã, vou para o meu quarto e olho o celular em cima da mesa do computador, tem uma mensagem de Vanessa, ela sempre me manda uma antes de dormir. Eu leio: “Sei que vc só vai ver essa msg quando voltar, espero que tenha ajudado o andré, ele pode precisar muito mais do q a gente pensa!

Boa noite anjo, S2”

Alguma coisa dentro de mim me diz que André não está mais precisando de ajuda, mas que quem está na lista dele com certeza precisará, não sei o que aconteceu comigo, mas eu se que estou bem, sei que posso controlar estes poderes estranhos e me sinto poderoso, como se pudesse fazer qualquer coisa, algo assim acontecendo com André me assusta, principalmente depois de hoje. Me deito, mas duvido que consiga dormir. Não penso em nada, não sinto nada.

São seis e doze da manhã, não dormi nada na noite passada. Simplesmente não tinha mais a necessidade de dormir. Fiquei deitado na cama a noite inteira, sem sentir nenhuma sensação.

Me levanto da cama e começo a andar pela casa, minha visão está embaçada, parece um misto de sonho e realidade, a porta dos quarto dos meus pais está fechada. Hoje é sábado, então eles devem dormir até mais tarde, duvido que tenham se preocupado comigo, já estão acostumados com minhas saídas noturnas, minha visão melhora, e é como se eu acordasse, talvez meu corpo não precise mais descansar, mas minha mente dormiu bem essa noite.

Tudo está diferente pra mim, normalmente eu estaria morto de fome, mas não sinto nada agora, até minha aparência está melhor, penso em continuar os testes. Vou até a cozinha e pego uma faca, coloco-a voltada para meu coração, respiro fundo e a coloco de volta sobre a mesa.

- Não preciso fazer isso! –Penso em voz alta- Eu sei meus limites! De alguma forma eu sei.

Mito embora eu não esteja sentindo nenhuma sensação externa pro dentro eu me sinto extremamente poderoso, como se agora eu fosse livre de verdade.

Minha mãe abre a porta do quarto.

-Alan, pode ir buscar o café, por favor?

- Tudo bem.

Minha mãe sempre foi a força por trás da minha casa. Como a liga que mantém tudo unido enquanto meu pai sempre foi o meu exemplo. Mas agora, por alguma razão eu não me sinto mais ligado com eles, me sinto distante.

Enquanto ando pelas ruas de manhã, observo as pessoas que estão indo trabalhar em seus turnos de sábado. Elas dão tanto de si, entregam seu tempo e sua força em troca de um pouco de vida digna, a maioria deles nunca terá essa vida digna, simplesmente por que acham que será seu pagamento que lhes trará isso, são como abelhas produzindo o mel. Não passam de animais seguindo seu instinto.

Eu compro pão e leite, e penso se agora se tornaram mesmo tão inúteis para mim, já que agora nunca mais sentirei fome. Ao chegar em casa os coloco sobre a mesa, e vou para o meu quarto, ligo o computador e começo a ver vídeos no youtube, está tudo tão entediante, checo meus e-mails e recados no Orkut. Nada disso me interessa, pego meu MP4 e me jogo na cama para ouvir musicas, quando ligo o aparelho a primeira que toca é dezesseis do Legião Urbana.

Sempre gostei dessa música, fecho meus olhos e de repente me sinto tragado para o vazio.

Em volta de mim, ouço diversos sons, mas não consigo dizer do que seriam. Então ouço a voz de uma mulher, ecoando bem alto:

- Eu prometo que tudo será feito como se deve!

- Tudo o quê? – Eu gritei.

Meu corpo começa a formigar e depois a queimar, era a primeira coisa que eu sentia desde o acidente e era a pior sensação da minha vida, grito com todas aminhas forças para que a sensação passe e acordo no meu quarto. O celular toca na mesa ao lado, Vanessa me liga às quatro e quinze da tarde, não acredito que tenha dormido.

-Alô. – Eu atendo

-Oi. Tudo bem com você?

- Tudo.

- Como foi ontem?

Penso no que vou dizer, em ocasiões normais contaria qualquer coisa pra ela, mas agora não. Não sinto vontade de contar pra ela.

- Tudo bem.

- Só isso? Você some desde ontem, não responde as minhas chamadas e nem as mensagens, e só me diz tudo bem?

- É, estou bem. Não vi que tinha ligado.

- Então tá. Não entendo por que não quer falar disso comigo. O que pode ser tão importante assim que não pode falar nem comigo?

- Não é isso! –Levanto a voz – Não é nada, eu só estou bem, não aconteceu nada. Por que está tão histérica?

- Histérica? Eu? Tudo bem, por que não fui eu que fiquei aqui preocupada por que você podia se meter no meio de um bando de traficantes. Mas se não acha que isso vale a consideração, tudo bem.

Normalmente esse tipo de conversa me deixaria louco, mas tudo que faço agora é fingir estar discutindo, não sei por que faço isso, mas parece me divertir.

- Olha – Ela continua – Eu não gosto de discutir com você, por isso eu vou parar por aqui! Mas me faça um favor? Assim que quiser dividir comigo, qualquer coisa que seja, vamos esquecer tudo isso e vamos sair ta?

Penso muito antes de responder.

- Claro! Te vejo depois. Te amo. – Nunca isso soou tão falso.

- Te amo também!

Ela desliga o telefone, eu coloco o celular sobre a mesa do computador e quando me viro vejo na minha frente uma garota, aparenta ter uns vinte anos, tem os cabelos pretos e olhos verdes, veste uma roupa branca e parece ser completamente normal, a única coisa estranha é o fato de uma estranha estar no meu quarto. Eu ia falar pra ela sair, mas antes que pudesse ela pega de leve na minha mão, e eu sinto o toque dela, não tive tempo para me espantar, senti náuseas e parecia que estava fora da realidade, olhei para ela, o mundo parecia girar, ela olhou para mim com uma expressão de pena.

- Ela se importa muito com você! – Ela disse –Todos eles, lute por eles por que eles fariam qualquer coisa por você.

Caí no chão do meu quarto, de novo não sentia mais nada, o piso e qualquer outra coisa não existem para meus sentidos, a garota havia sumido. Me vejo tomado de um desejo enorme de ver Vanessa, pego o telefone o mais rápido que posso e discoi o numero, enquanto o telefone toca eu cada vez me arrependo mais daquilo que senti enquanto discutia com ela.

Terceiro toque.

- Não acredito nisso.

Quarto toque.

- Vou contar tudo para você.

Quinto toque.

- Atende logo!

E ela atendeu.

- Vanessa, eu tenho que falar com você…

- Alan… Por favor… Me ajuda!

O telefone desliga, e um sentimento imenso toma conta de mim, é o André. Não sei como sei que ele está na casa de Vanessa, mas eu sei. Em cada fibra do meu ser, eu sei. Me sinto ligado ao André, de alguma forma o acidente nos conectou e por isso eu sei que ele está com Vanessa e que ele vai machucá-la. Ao passar pela sala vejo meus pais sentados no sofá falando com um homem de meia idade, não reparo muito nele. Só o que me chama a atenção é o relógio de ouro no puldo onde está entalhado um grande “E.M.”

- Alan, espere um pouco. – Diz minha mãe. – Esse é o senhor Martinez. Estávamos falando de você, ele…

Não ouvi o que minha mãe dizia, continuei andando e saí da casa. Ainda na frente do portão, eu respirei fundo e senti a presença de André. Meu corpo estava tremendo, tentava não pensar no que ele poderia estar fazendo com Vanessa, meto a mão no bolso e tiro uma foto de Vanessa. Na foto, ela está na frente de um circo, não fazia nem dois meses que tirei essa foto dela. Na ocasião ela me disse que sabia que podia confiar em mim. Minhas mãos tremiam, eu me sentia tonto enquanto olhava para a foto, então, da mesma forma como tudo isso tinha vindo, também se vai. A tremedeira, a sensação e a foto.

- Onde a foto está? – Eu me pergunto. Eu apenas fechei os olhos por um instante e ela desapareceu da minha mão, alguma coisa me faz olhar para cima. Há uns dez metros de altura, bem acima de mim, um globo de luz flutua, e antes que eu possa me chocar com isso eu começo a sentir André batendo em Vanessa, e ouço os pensamentos depravados que ecoam por sua mente. Ele sabe que eu posso ouvi-lo e ele me desafia:

- Vem me pegar!

Antes eu estava totalmente alheio a tudo isso, mas agora, eu irei até o fim do mundo para salvar Vanessa. Olho pra cima de novo e o chão a minha volta treme, o ar é expulso da minha volta quando eu salto para pegar a esfera de luz, mas ela desaparece da minha visão, em vez disso eu percebo que minha velocidade aumenta, eu subo muito mais do que dez metros de altura, eu estou voando. Fecho os olhos quando começo a descer rápido, caio no chão que se abre em uma cratera, eu ainda não sinto nada. Olho para a frente, estou no quintal de Vanessa e seus pais estão caídos em frente a porta, na sacada está André segurando Vanessa pelos cabelos.

- Queria me fazer mudar, Alan? Queria me mostrar o caminho correto? A humildade é a melhor coisa do mundo, não era isso que você dizia? Esse era o seu caminho. Vou te mostrar agora onde leva o caminho que você escolheu.

Ele joga Vanessa ao chão, eu salto na maior velocidade que consigo para pegá-la, enquanto olho para o rosto dela por um único instante sinto André se aproximando, jogo Vanessa a distância antes de receber um soco na altura do estômago, não sinto nada, mas sou arremessado a mais de 40 metros dali, caio em cima de uma caminhonete. Mal consigo me levantar. André está na minha frente.

- Você e eu éramos demais. Mas nunca tínhamos nada pra poder provar isso. Eu sempre vi os outros tendo mais, eles não mereciam mais, você não merecia mais do que eu. Por que Vanessa escolheu você? Por que você conseguiu um emprego melhor, por que você tinha amigos melhores…

- Você era o meu melhor amigo! – Eu interrompi, ele então pegou minha garganta e apertou.

- Você não é melhor do que eu! E agora vou fazer você engolir sua arrogância. Eu não precisava que você me salvasse, eu sempre soube onde estava me metendo, mas você sempre tentou bancar o super herói. Agora, vai morrer se sacrificando como um.

Ele saltou me segurando pelo pescoço e depois me lançou de volta contra a caminhonete, então estendeu a mão para mim, e desferiu um raio poderoso na minha direção a eletricidade partia da mão dele que parecia ser o olho de um furacão, vi tudo a minha volta explodir e a meu redor só havia fogo, cinzas e destruição.

Na minha mente se passaram dezenas de imagens aleatórias. Vi minha mãe me preparando o primeiro bolo de aniversário que me lembrava, vi de novo a primeira vez que fui a um show de rock, vi meu pai me ensinando a dirigir em seu Kadet, e por fim vi o dia que conheci Vanessa.

Uma fúria enorme tomou conta de mim, me ergui do chão tirando uma porta de carro destruída de cima do meu corpo. André estava na minha frente, nem sequer tive o esforço de pensar, me atirei contra ele. Era um estado de êxtase, o poder fluía por todo o meu corpo de uma forma que não tinha acontecido até então, era como se aquele corpo não fosse mais meu, eu luto com André a mais de dois metros do chão, desferindo socos e chutes numa velocidade que se houvesse alguém assistindo nosso embate nem sequer seria capaz de acompanhar os movimentos com os olhos. Num movimento veloz, André me pega pelo pescoço e aperta com força, é claro, só posso imaginar que ele esteja aplicando força, ainda não sinto nada. Com a mão que me segurava André desfere outro raio, sou lançado de novo ao chão, dessa vez com mais violência. Olho em volta dentro da cratera onde estou. Todas as casas em volta estão destruídas, não vejo sequer um ser humano, me lembro da Vanessa um segundo antes de ouvir seu grito, procuro em todas as direções, mas não consigo vê-la. André salta na minha frente, ao tentar me dar um soco eu seguro o punho do monstro que um dia foi meu melhor amigo e com um golpe que nem sequer sei como dei lhe quebro o braço. André parece não sentir o golpe e isso não me espanta, então dou um soco com toda a força que penso possuir no peito dele, ele cai longe da minha visão.

Volto a procurar por Vanessa, reviro os escombros da casa dela, mas não consigo encontrá-la. Enquanto entro em desespero ouço o choro dela, que parece estar bem próximo de mim, e ouço sua voz entre soluços:

- Alan, volta pra mim!

- Estou tentando meu amor,- as lágrimas correm do meu rosto- Onde você está?

Espero um pouco pela resposta que parece não vir, então ouço a voz dela gritando. Ela parece desesperada.

- Vanessa, ond… – Sou empurrado ao chão por alguma coisa. Quando me levanto, vejo na minha frente o homem que estava conversando com meus pais.

- Olá garoto. Parece estar com problemas aqui. – Ele me diz calmamente.

- Saia da minha frente. – Grito em fúria e ando na direção que pensei ter ouvido o grito de Vanessa.

- Sabe de uma coisa Alan? – Ele diz ainda calmo- A Luz não salva ninguém duas vezes.

Paro por um instante ao ouvir o que ele havia dito, mas antes de digerir o que aquele homem dizia ele já estava na minha frente.

- Meu nome é Martinez, eu sei tudo sobre você criança. Sei por que a Luz escolheu você, sei por tudo isso está acontecendo. Por que seu amigo se tornou seu algoz e por que Vanessa é a fonte da sua força. A Luz está te testando Alan, e você precisa vencer… – André derruba um prédio alguns metros de distancia de nós – Se você perder, tudo que você conhece será destruído.

Então ele some diante dos meus olhos e sem saber como eu ataco André de novo, bato nele várias vezes e tão rápido que ele não poderia se defender. Então me lembro que ele era meu amigo. Lembro-me de uma época onde nós conversávamos sobre nossos planos, sobre garotas, eu principalmente falava muito da Vanessa.

Olho nos olhos daquele que foi meu melhor amigo, e eu digo:

- Por que?

Ele grita de volta com raiva.

- Eu vou matá-la!

Sinto uma pressão enorme no meu peito e apontando para André no chão eu lanço um raio que o destrói. Mas a dor no peito não passa, pelo contrario, se torna mais intensa e eu caio no chão sem conseguir me mexer, então em meio a dor que sinto surge um pensamento racional, eu percebo que estou sentindo a dor. Não sentia nada mas agora eu senti a dor. Olhei para o lado e lá estava um velho prédio relógio, nunca vi aquele prédio, mas agora pouco eu me importava. Só reparei nas horas que marcava: três e vinte e três da tarde.

Fechei meus olhos pensando que este seria o meu fim, sobre mim uma forte luz. Quando abri os olhos estava numa mesa de hospital, na minha frente uma linda moça de cabelos pretos e olhos verdes, a mesma do meu quarto. Ela sorri para mim, ao seu redor um pelotão de médicos também sorriem aliviados e um pouco assutados.

- Oi, eu sou Keren. – Ela diz – Você se sente bem?

- Eu preciso achar Vanessa – eu me levanto e corro para fora empurrando os médicos que tentam me segurar. Parada na porta está Vanessa, eu a abraço. – Não acredito que você está bem.

Ela chora, eu também.

- Eu matei o André…- Eu digo soluçando.- Não podia deixar ele te machucar!

- Alan, do que você está falando?

- André matou seus pais, ele ia te matar. Eu não podia deixar, tudo que aconteceu nestes dias…

Vanessa estava assustada, seu rosto passou de alivio a surpresa e duvida.

- Alan, nestes últimos dias…

Eu olhei fundo nos olhos dela antes de desmaiar, pude ler os lábios dela, ela dizia que eu estava em coma.

Meu nome é Alan Castro Diniz, eu tenho 17 anos de idade. Por toda a minha vida tentei ser aquilo que os outros queriam que fosse. Sempre fui rodeado de amigos, sempre fui o aventureiro da turma, o grande cara. Por isso fui bancar o herói moralista pra cima do André, não percebi que ele tinha virado um monstro. Na verdade, nem sei se ele era mesmo um monstro, ou se isso era alguma coisa que tinha inventado em meu delírio. Eu sempre o considerei meu amigo. E eu nunca desistiria dos meus amigos.

Agora meus amigos não apareceram aos montes para me visitar no hospital, talvez eles tenham coisas a mais com o que se preocupar. Meus pais sim vêm aqui todos os dias, assim como Vanessa. Depois da loucura que eu vivi eu fico me perguntando como deve ter sido pra ela. Afinal, eu passei dois dias sem sinal de vida deitado numa cama de hospital depois de um acidente violento. E para piorar ela teve que suportar um louco por outros dois dias. Foi difícil acordar e perceber que tudo que eu estava vivendo era um sonho. Era tão real.

Estou sendo acompanhado pelo Dr. Guillermo, ele disse que estou com depressão pós-traumática e com um caso raro de reação alucinógena. Ele diz que minha mente criou um sonho no qual eu poderia descarregar meus medos e frustrações. Bom, ele é o médico e eu não ouso discutir por que ainda não coloquei minhas idéias em ordem. Ontem eu contei tudo que eu tinha vivido pra Vanessa, ela chorou um pouco. Ele me disse que eu iria ficar melhor, eu estive feliz por saber que ela estava comigo, me lembrei do quanto eu sofri imaginando que André havia feito alguma coisa com ela.

- O André? – Perguntei- Como o André está?

Ela hesitou um pouco, eu vi o medo de me contar nos olhos dela. Com isso ela não precisava falar mais nada.

- Tudo bem, ele decidiu ir por esse caminho. – Eu disse olhando para ela- Eu nuca consegui tirar nada da cabeça dele.

Ela sorriu forçadamente, e me abraçou.

- Não poderia ter sido você! – Ela me disse- Eu te amo!

- Com licença!- Disse Keren parada na porta- O horário de visitas acabou.

Eu assenti com a cabeça e beijei Vanessa, ela saiu pela porta dizendo que voltaria na manhã seguinte. Depois que eu vi ela entrando no elevador eu olhei para a doce enfermeira que checava meu soro.

- Keren –Começo – Quando André morreu?

- Então ela te falou, nós achamos melhor deixar que você se recuper..

- Eu estou muito melhor, só quero saber como foi.

Ela para um pouco, sua face está com uma expressão estranha. Uma mistura de dúvida e receio.

- Ele teve uma parada cardíaca, vocês dois tiveram na verdade. Ao mesmo tempo.- Ela disse sem olhar diretamente pra mim.- Ele não teve tanta sorte quanto a você.

Enquanto ela falava eu senti meu estomago embrulhar, não sei bem por que fiz a pergunta seguinte:

- Qual a hora em que ele morreu?

- O que?- ela não entendeu tanto quanto eu- Acho que foi perto das três e vinte da tarde. Talvez alguns minutos antes ou depois, mas agora basta. Não vamos falar sobre isso. Se quiser posso chamar o doutor Guillermo.

- Não, obrigado! Estou bem!

Mas eu estava pensando, é claro que tinha sido ás três e vinte e três da tarde, não tinha como ser coincidência. E se tudo tivesse acontecido de verdade. E se não fosse um sonho …mas era impossível, eu estava em coma…Era irreal, surreal… Impossível.

Estava perdendo o controle, sobre meus pensamentos, então algo me fez voltar a razão: Vanessa. Não queria que ela tivesse um namorado louco. Naquele instante eu me determinei a não mais pensar nisso e a me comprometer a seguir todo o tratamento do meu brilhante psicólogo, eu e ele teríamos que fazer o nosso máximo.

Isso foi ontem, agora estou vendo minha futura esposa passar pela porta do elevador para me visitar de novo, assim que eu sair daqui a alguns dias tudo vai ficar bem. Tenho que agradecer à Deus por que não tive nenhum ferimento grave.

- Seu pai me disse que você arrumou um emprego.- ela me disse entrando.

- Com tudo isso eu me esqueci de te falar.

- Acho que as coisas vão melhorar daqui pra frente! –Ela sorriu e me abraçou, através do espelho no teto eu vi meu rosto, e claro como a luz do dia e vi uma luz forte brilhando dentro dos meus olhos. Ainda há muito o que seguir, mas eu vou esquecer tudo.

Epílogo

São três e vinte e três da tarde, hoje é segunda-feira. Estou sentado em um banco no Cemitério da cidade. Meu pai, Gomes Castro Diniz faleceu ontem, vitima de um câncer no pulmão. Minha esposa, Vanessa e meu filho Renato estão ao lado de minha mãe perto do caixão. Meu filho demonstra uma força muito grande para não chorar, algo que eu não faria nos meus dez anos de idade. Não é um momento agradável e como na maioria desses momentos eu quero ficar sozinho.

Eu olho para o céu e vejo poucas nuvens, penso em tudo que vivi com meu pai, me perco em lembranças.

- Perdido em sonhos? – Ouço uma voz ao meu lado. Vejo um homem de barba e cabelos ruivos, não muito mais alto do que eu e vestido com um terno imponente. No bolso parece carregar um antigo relógio de ouro.

- Com licença, mas eu te conheço? – Eu pergunto, talvez seja um antigo cliente do escritório.

- Com certeza- Diz o homem- Você parece ter sofrido muito esses últimos dias.

- Acho que é algo fácil de se perceber em um enterro.

- Verdade!

-Ainda não disse seu nome! – Eu falei já um pouco apreensivo, a presença daquele homem me deixava nervoso.

- E nem vou!- Ele disse tirando o relógio do bolso e olhando para ele, uma sensação de terrror me toma quando vejo entalhado o E.M.– Você foi derrotado, e a luz nunca salva ninguém duas vezes.

- Não é possível! Vejo uma luz forte me cegar e então o homem não está mais na minha frente. Vanessa que vinha na minha direção toca meu ombro de leve.

- O que foi querido? Você estava falando sozinho?

Eu só posso estar ficando louco…