Nero de Higienópolis
Nero de Higienópolis
Meu nome é Nero. Já vou avisando que não fui eu que o escolhi que é pra não começarem com as piadinhas, olha lá, Nero hein, vai queimar tudo seu tarado, até a mãe! Também já vou avisando que sou um cachorro, que também já ouvi, olha só cara, cachorro não fala, só late, você fala mas é cachorro brasileiro de terceiro mundo e aí não vale, conhece o porquinho e os cachorros m a r a v i l h o s o s de Hollywood e nesse caso eu já vou ficando com raiva, posso me enfurecer e morder, que cachorro brasileiro também se enfeza e pode crer que tem mais intuição; até eu, que sou cachorro de classe média alta como querem alguns articulistas que vivem rotulando pessoas e bairros, espalhando mais preconceito do que o cocô de cachorro que já temos nas calçadas de Higienópolis.
Pois bem, sou Nero, um cachorro de classe média alta como quer o articulista e moro em Higienópolis, também como quer o articulista, em tempo, esse nome, articulista, também é meio patético e pronto. Minha dona se chama Noemia é bonita, loura e muito burra como poderia ser bonita, loura e inteligente que cachorro também tem preconceito, azar. No mais, sou da raça fox- terrier, cinza e bem bonitinho. Eu me considero bonitinho, na rua me acham um cão engraçado. Como bem, durmo bem, vivo num apartamento grande, não posso fazer xixi e cocô onde quero, não deixam, é só levantar a perna que eles vêm com um jornal batendo freneticamente no chão, chato isso. Convivo mais com a Jurema, a empregada que me leva para passear na praça Buenos Aires, minha dona não vai mais lá que tá muito fedidinha, um pessoal meio esquisito que anda por lá agora, prefiro minha esteirinha e meu personal trainer, então tá, lá vou eu com a Jurema. Essa Jurema de nome de índia, vai falando com todo mundo pela rua e eu vou abanando o rabo pois que o dia está azul de miocárdio, nem sei porque falei isso. Mas a Jurema é muito simpática e vai pela rua rebolando os quadris e conversa com mil amigos, olha aí tá um friozinho né, bom pra ficar na cama e esse Nero precisa se esticá, a madame que disse, a madame é a minha dona, não sei o motivo dela ser chamada de madame deve ser resquício da cultura francesa no Brasil. Essa Jurema, cujos olhos brilham quando é para me levar na praça, de vez em quando, para pra falar no telefone público, é uma chatice; fala com dois namorados que tem, olha aí benzinho hoje num vai dá que a madame vai sair, depois liga pro outro, o açougueiro de olhos azuis, tô querendo ir passear no shopping que, depois que inauguraram o de Higienópolis, é um tal de empregada ficar tratando a gente muito bem perto da patroa que é pra ir passear no shopping com a gente, tô sabendo. De vez em quando, caminho na frente, vou cheirando os cocos e os xixis que afinal sou um cão, tenho faro e gosto de colocá-lo em dia e ainda tenho que marcar meu território, se todo mundo anda pondo grade nos edifícios, também tenho esse direito, eis que o exemplo, supostamente, vem de cima. E num desses dias encontrei o Nando que é cachorro de um bêbado que fica em frente à igreja e vive acorrentado depois que fugiu uma vez, num ataque de liberdade. Conversamos, ele me conta que seu dono bebe muito e que cansou de comer restos fedidos de comida que ele pensa que só porque sou cão também não tenho paladar ou bom gosto e sou obrigado a ficar aqui nesse sol horrível, veja só, já tenho até começo de sarna. Quando ele me conta que tem sarna fico um pouco constrangido em me afastar um pouco, afinal, também sou gente, como queria certo ministro brasileiro, não me lembro mais da coisa toda. Mas Nando não percebeu minha aflição e aproveito para conversar com ele enquanto Jurema está de papo com o motorista de táxi. Claro que depois de algum tempo naquele papo de cão me condoí com a sina de Nando, o dono dele é um tipo mal-encarado, vez em quando, chuta o pobre, vida pra lá de miserável, aquele cretino o mantinha acorrentado no banco dos motoristas de táxi naquele sol forte, se bem que deixasse água e restos de comida sob o mesmo sol forte já mencionado, cheiravam mal à beça; mas Nando continuava sua história horrorosa, não há outro termo pra cachorro e eu fui ficando tão deprimido que, em dado momento, tive uma idéia brilhante que cachorro também a tem, até melhor que a dos humanos, que me perdoem; me joguei no chão, danei a ganir com desespero e a empurrar Nando com o focinho, esperneei, esperneei, gritaria vai, gritaria vem, polícia vai, polícia vem, paquera vai, paquera vem, (estou falando da Jurema), veterinário vai e vem, e consegui convencer minha dona a ficar com o Nando. O mendigo esperneou muito, uma velhinha amiga dele fez discurso de cidadania, politicamente correto, direitos humanos e sobre-humanos, nada. Venci. Cheguei exausto em casa, mas carreguei o Nando comigo. Foi levado ao mesmo veterinário, mesmo pet shop, compraram uma camiseta preta e amarela escrito segurança no dorso, todo mundo ria na rua, uau, olha só que segurança que arranjaram, qualquer pé de vento leva esse cão embora e eu, com a alma lavada pela emoção de uma boa ação, avançava defendendo meu amigo; convenhamos, o Nando estava magérrimo, horroroso, cara de cão que segue homem que recolhe papelão na rua, não posso fazer nada. Mas minha dona também estava encantada com a boa ação, não falava em outra coisa no maldito celular. Ficamos amigos, Nando dormia na área de serviço, eu dormia dentro, perto da lora burra, enquanto ele estava sendo tratado pelo veterinário de tudo que era doença. Nando sarou, ficou quase bonito, não se cansava de louvar minha boa ação, éramos muito amigos. Por isso mesmo, nem prestei atenção, pra dizer bem a verdade, nem percebi, quando tudo começou a mudar. Nando foi se chegando, se chegando, olha que eu te ajudo a olhar o apartamento enquanto nossa dona está fora, achei o nossa dona muito íntimo, mas me calei, democracia é democracia; mas aí, ele começou a fazer trocentos malabarismos que aprendera com o mendigo; rolar, ficar em pé sobre as duas patas, ganir e cobrir o olho com as patas quando as popozudas apareciam na televisão, buscar o jornal na porta antes de mim, espalhar minha ração pelo chão, pra Jurema gritar comigo; a lora burra deu de prestar atenção nele e foi um tal de falar no celular, que arranjei um cão de rrrruuuua, inteligentíssimo, vou fazer um chá e vocês podem ter uma idéia do que é sensibilidade, só falta falar, haaa o outro vai bem também, tá meio jururu com a capacidade do Nando, é chama-se Nando, bárbaro né, vou criar moda de cão de rua. Fiquei muito triste mesmo com as palavras de minha dona, afinal eu fora seu companheiro de três anos, agüentei sua inteligência que só pegava no tranco, seu carinho distraído, sua mania de me mostrar para as amigas, de ir na casa da Petei, burra como uma porta, se bem que porta seja surda e não burra, no momento, me falta melhor exemplo; eis que a tal Petei tinha uma cachorrinha infernal que cismou comigo, você hein tem cara de tarado nem chegue perto de mim, que eu grito mesmo, caríssima acho que está havendo algum engano, eu tô na minha, compreende, não compreendia ou fingia, gritava, gritava e lá ia eu ficar na cozinha amarrado no pé da mesa e obrigado a sentir o chulé horroroso da Hermengarda. Claro que cai numa deprê infernal depois da falseta do Nando. Não quis mais comer, não quis mais ir até a praça, não quis mais nada na vida a não ser rezar para que houvesse um céu para cachorros sofridos como eu.
Nando aproveitou bem essa minha fase, andava de lá pra cá, passeava com a Jurema, ia ao pet shop, ao veterinário, vez em quando me olhava de esguelha, olha lá ô meu, essa sua inveja ainda vai te matar, foi você que me convidou pra vir, eu por mim ficava lá mesmo que sou tipo orgulhoso, não preciso favor de ninguém, não tenho culpa se sou gostoso e mais inteligente do que você, sê não sabia que cão de rua é mais inteligente ô panaca, e rosnava, ameaçador, quando não havia ninguém por perto.
Acabei eu dormindo na área de serviço que o nervoso e injustiça constantes, vez em quando, me faziam vomitar. Meu pelo foi caindo, minha pele meio que descamando, fiquei uma sombra do que era. Só que, Deus olha pelos cachorros também, isso é uma verdade, daquelas de calar auditório distraído; eis que o Nando acabou por se revelar, foi quando chegou a pentelhinha da cachorra da Petei que cismou de fazer o mesmo tipo de sedução com o Nando que tal e tal, se você chegar perto de mim eu grito, chamo minha dona que o Nando primeiro gostou da coisa, olha aqui neguinha, vem aqui pertinho que eu vou te mostrar meu salsicha enlatado ou embutido, como preferir, mas depois de certo tempo se enfezou e partiu pra cima dela com tudo. Enorme rebuliço. Jurema atracada no rabo de Nando, a lora burra gritando para já seu cão malvado, a Petei com os olhos esbugalhados , queridinha, ele vai matar a minha Taiwan, esse bruto, e virando-se para a lora burra, você e sua mania de misturar classes sociais, se ela ficar grávida você me paga, me paga. Tumulto geral que assisti com certo prazer malévolo, preciso confessar; na calada da noite Nando foi posto acorrentado no banco dos motoristas de praça em frente a igreja. Na mesma noite me deu uma bruta fome, vontade de correr pelo apartamento, todo, de me jogar no chão com as pernas pra cima, pular feito um louco pela casa. A Noemia bem que teve uma crise de inteligência, será que o Nerinho já tinha percebido a maldade do outro, madame?! Tá tão alegrinho, sarou depressa...
Continuo indo até a praça com a Jurema. Soube que o Nando levou uma bruta surra do antigo dono, que é pra aprender a não ser mal-agradecido. Já está meio magro e meio fedidinho. Se vocês pensam que eu ligo pra isso, estão enganadinhos. Não dou risada porque sou decente e bem educado. Finjo que não vejo. Afinal, ingratidão, perdão e misericórdia, são coisas inventadas por humanos, não pelos cães. Humanos é que estabeleceram o código. O de Hamurabi, por exemplo. Famoso pacas, o tal do olho por olho. O Nando deveria saber disso.