O Boto cor-de-rosa
CONTO I
O BOTO COR-DE-ROSA
Dentro das matas amazônicas, mais precisamente aos arredores dos rios perenes, povoam a mente dos ribeirinhos histórias fantásticas seculares, como a do “boto cor de rosa”.
Intrigante como só ela, essa história é contada tendo vários pontos de vista. Uns contam como escutaram de seus antepassados, e outros, contam aumentando um pouquinho. Mas todos possuem a mesma essência: A lenda de um animal marinho que se transforma num belo rapaz para encantar e seduzir jovens moças interioranas.
Quando deram seis horas da tarde, Rita e Maria, arrumaram-se para a festa de arraial, as margens do rio Bororó. Perfumaram-se com aroma de patichuli e colocaram fitas nos cabelos, como mandava a tradição das festas de São João.
Já calçando seus sapatos, entusiasmadas com a festa, esquecem de arrumar seu irmãozinho Damião, o qual também iria com elas — essa era a condição imposta pelo pai para que as duas pudessem ir.
—Ai que égua! Esquecemo de arrumar o mano pra festa. — disse Rita, a mais velha.
—E pru quê ocê tá olhando pra mim? Eu é que num vô arrumar esse fedelho! — respondeu Maria com tom de desaprovação, franzindo a testa.
—É, mas se nós quiser ir pru arraiá, temo que arruma ele ué! —contestou Rita, segurando nos cabelos trançados.
—Que coisa é essa do pai de só deixar nós í se levar o Damião! —respirou fundo Maria— Fazer o quê, né? Vamo arruma ele logo.
Apressadamente, começaram a arrumar o Damiãozinho de apenas 6 anos. Enquanto uma pegava a blusa, a outra procurava o sapato. E assim foram arrumando o garoto, já todo inquieto com toda aquela pressa das duas.
—Pronto! —disse Maria olhando com satisfação para o trabalho feito— agora pudemo i.
—Deixa que eu aviso o pai que já tamo indo, mana— diz Rita saindo aos gritos pelo quarto à procura do pai.
—Vai logo que nós já tamo atrasada. A festa já deve ter começado —alertou Maria.
—Pai, a gente já ta indo, tá? e tamo levando o Damiãozinho com nós — afirmou Rita, falando quase na ponta do pé de tanta pressa.
Seu Sebastião olhou lá da cozinha cortando um peixe e enxugando o suor da testa com uma das mãos, passando na blusa velha, branca, de pescador.
—Ocês já vão é? Tomam cuidado com seu irmão, e não vão me chegar aqui depois das onze, heim?— Falou alertadamente seu Sebastião indicando com a faca cheia de escamas de peixe em direção à menina.
Já eram, a essas horas, 19:00 da noite, podendo-se ouvir ao longe o som que saia da festa de São João que já começara.
Andaram por um longo caminho estreito, iluminado somente pela luz da lua— que àquelas horas, já estava redondinha lá no céu.
Apertaram o passo para chegar logo. Uma com mais pressa que a outra, arrastavam o pequenino com tanta pressa que o garoto parecia nem tocar o chão com seus pés miúdos.
—Vamo, Damião, se não nós vai chegar lá no fim da festa, ué! —apressando Rita com a fala cansada de tanto andar.
Chegando, finalmente, na tão esperada festa de arraial, as duas soltaram longos suspiros cansados e ao mesmo tempo entusiasmados ao ver tanta gente, e tanta fogueira ao redor da festa à margem do rio Bororó. Tinha música, comida e até balão. Tudo era uma só alegria.
—Eitá... que a festa tá pra lá de boa, Rita!
— Tá mesmo, né! vamo vê se a gente acha as outra menina por aí —falou Maria quase que já soltando a mão de Damião.
—Ei, pera lá! quem vai ficar com esse moleque? —questionou Rita, olhando para a irmã.
—Olha, o jeito vai se a gente reveza, ué! não dá pra se diverti com esse menino grudado em nós —concluiu Maria.
—Tá bom, concordou Rita. Mas quem vai se diverti primeiro?
—Eu primeiro, ué —disse Maria implicando.
—Negativo! eu so mais velha, então, vô primeiro —disse Rita, já deixando o irmão aos cuidados da irmã mais nova e sumindo no meio do povo.
—Essa é boa! Eu fico aqui como babá e ela vai se divertir com os menino —desaprovou, Maria, com um bico, fazendo birra de braços cruzados.
Enquanto as músicas do arraial invadiam as matas amazônicas, Rita saia à procura de alguém conhecido, talvez, para um namorico de arraial (sim, porque como todos sabem, essa idade de 16 anos é fogo!)
Encontrou alguns amigos da escola, que a cumprimentaram e fizeram elogios.
—Nossa... Como ocê tá bonita, Rita! — galanteou um dos garotos, aproximando-se dela.
João era um menino do vilarejo que estudava na sala de Rita, e mostrava interesse toda vez que a via.
Os outros garotos começaram a cochichar ao longe, rindo e brincando ao ver os dois conversando baixinho.
Tá namorando... tá namorando... —isso foi suficiente para Rita dar um empurrão em João e sair às pressas para longe deles.
A lua nunca esteve tão linda. A luz que irradiava dela fazia brilhar as águas do rio Bororó. E Rita que procurava se afastar de tudo, aborrecida pelos garotos na festa, foi para perto do rio, esperando a raiva passar para poder voltar à festa.
—Que coisa, esses garoto! Sempre implicando comigo —falou sozinha olhando para as águas do Rio.
—Nossa, que lua mais linda! —encantou-se ao ver a lua em noite de luar.
Rita sentou numa tora de madeira que ficava próximo às margens do grande rio, e pegando em seus cabelos olhou toda a vegetação que ficava aos arredores do mesmo. Escutando o cantar das cigarras que misturavam-se à musica vinda do arraial, sentiu um friozinho vindo das águas, que arrepiaram seus pêlos do braço. Então pensou um pouco inquieta:
—Tá ficando frio aqui. É melhor eu me juntar ao resto das pessoa lá da festa.
No momento em que quis se levantar sentiu que um dos lados de sua saia havia ficado prezo nos galhos da tora da árvore.
—Poxa, vida! agora vai estragar minha saia, pensou. Puxou com cautela para não rasgá-la.
Enquanto tentava se soltar dos galhos a garota sentiu uma leve sensação de alguém a observando; tentando, por motivo disso, soltar-se com mais rapidez.
Sem chance de sair com a saia intacta Rita puxou de uma só vez, fazendo com que se rasgasse até a altura da coxa.
Quando finalmente conseguiu livrar-se da bendita árvore, sentiu um respirar por cima de seus ombros, fazendo a fita que prendia seus cabelos voar.
—Oi, moça! —falou suavemente uma voz masculina aveludada e calma. Rita se virou para ver quem era, já com o coração a palpitar de susto, pois a pouco não havia ninguém com ela, e agora havia alguma coisa falando ao seu ouvido. Virou vagarosamente e ficou confusa com seus sentimentos, não sabia se sentia medo ou encanto pela figura que se apresentava à sua frente.
—Você está bem? —perguntou o dono de um sorriso enigmático e encantador, segurando um pedaço de renda da saia de Rita, que havia ficado no galho do tronco de árvore.
Ele era diferente de todo o rapaz que ela já tinha visto: cabelos negros, pele branca, alto, e vestido com um terno branco, que denotava uma sofisticação surreal para qualquer um daquele pequeno e humilde vilarejo.
O modo que ele a olhava era gentil. Procurava mostrar segurança ao mesmo tempo em que tentava encantá-la.
—De... de... de onde ocê surgiu? Eu tava sozinha aqui. Quem é ocê? — Perguntou Rita, com voz trêmula.
—Calma, Rita! não se impressione comigo, sou apenas mais um convidado da festa — afirmou o rapaz misterioso de olhos penetrantes .
— Ocê... —esperou, pensando no que falar— ocê não é daqui, é? — perguntou ela, ainda nervosa.
O rapaz vendo o nervosismo de Rita, sentou-se na tora da árvore com a intenção de acalmá-la.
Enquanto ele acomodava-se na tora de madeira, Rita lembrou que o mesmo havia pronunciado o seu nome, e espantou-se ainda mais.
—Ei! eu não conheço ocê! Como sabe o meu nome? —Indagou.
—Sei muitas coisas, bela menina! Mas como disse, não precisa se preocupar, não lhe farei mal algum —falou olhando nos olhos de Rita, levantando-se.
Aproximando-se de Rita, tirou uma rosa vermelha do bolso de seu terno branco deu para ela, que parecia agora estar mais calma. Rita a pegou não escondendo a hesitação.
Quando suas finas mãos morenas tocaram as primeiras pétalas da rosa, foi envolvida por um encantamento, sentia-se estar num sonho— E ele era o sonho! Era o moço mais lindo que ela já tinha visto. Não se comparava a ninguém. “só pode ser um sonho, mesmo”, pensava ela, desacreditada.
Sem perceber, já estava entregue à sedução.
O moço a puxou com uma das mãos para perto de si querendo sentir sua respiração. Olhou cada centímetro de seu rosto fino e moreno, reluzido pela luz do luar; sentindo o cheiro dela ao encostar o queixo em seu ombro.
—Hum... que cheiro você tem!—falou ele, segurando a cintura da garota enfeitada com laços de fita— parece cheiro de rio junto com fragrância de ervas... —Suspirou ele, calmamente, e falou por sussurros—: eu gosto...
A essas horas Rita não conseguia mais livrar-se dos laços sedutores do rapaz misterioso com ar de Don Juan.
Ele pegou a rosa vermelha que estava na mão direita de moça e começou a passar, sedutoramente, por seu fino rosto, roçando seus lábios carnudos e seguindo em direção ao queixo —ao mesmo tempo em que sua mão direita subia em direção ao pescoço dela—descendo cada vez mais no sentido do seu colo, invadindo sua inocência e incendiando seu coração.
Deslizou a bela rosa por todo corpo da menina parando na direção da barriga, prendendo-a em sua sai com o talo da rosa para dentro.
Rita não pensava mais. Desconhecia a diferença entre fantasia e realidade; só sabia que aquilo era bom... muito bom!
Ele, finalmente, envolveu-a em seus braços firmes e másculos, fazendo-a sentir calor, abrindo cada vez mais, por entre apertos ardentes, o rasgo da saia sobre suas pernas faceiras de menina.
Rita sentiu a mais deliciosa sensação: frio na barriga, prazer e êxtase, tudo ao mesmo tempo.
No calor dos braços dele ela sentiu segurança o suficiente para uma entrega total.
Ela não sentia mais o frio da noite, mas sim, um calor ardente nunca sentido, e uma vontade de se entregar incontrolável.
Enquanto Rita sentia a mais ardente sensação da sua vida, ele aproximou seus lábios em direção ao pescoço dela e lhe deu um beijo lento e doce, o qual arrepiou todo o seu corpo.— Rita sentiu suas pernas tremerem, como se fossem cair a qualquer momento — mas isso seria impossível, já que ele a segurava tão firmemente, com tamanha força e, ao mesmo tempo, com tanta suavidade e delicadeza que jamais seria possível cair.
Quando Rita sentiu as mãos dele tocarem seu rosto, e em senguida os lábios dele colarem nos seus, foi como se seu espírito "saísse do corpo". Perdeu totalmente os sentidos.
Um pouco distante dali, Maria já estava preocupada com tamanha demora da irmã, e, então, decidiu ir procurá-la.
—Damiãozinho, temo que procura a Rita— declarou a menina, olhando para seu irmãozinho que já estava pra lá de cansado e sonolento (também não era para menos, já eram dez da noite).
Então, Maria começou a procurar Rita, arrastando o irmão e perguntando para todos se tinham visto a sua irmã.
—Ei, Maria! ocê viu a Rita pura aí? — falava João vindo em sua direção— ela ficou brava com a brincadeira dos menino e sumiu.
—Que hora foi isso? —Perguntou Maria.
—Olha, já faz um tempo pra fala a verdade. — disse o garoto.
—Que coisa! O que será que aconteceu com ela? —falou Maria, com um ar de preocupação.
E então saíram à procura de Rita, perguntando para quem encontrassem, sobre o paradeiro da menina.
Depois de meia hora de busca, João sugeriu que fossem procurá-la perto do rio, Maria concordou. E lá se foram os três em direção ao rio.
Chegando próximo viram ao longe uma pessoa sentada no tronco de um árvore olhando o rio de maneira concentrada, era Rita. Com metade das tranças desfeitas e com um rasgo enorme na saia.
—Rita, o que aconteceu? O que ocê tá fazendo aqui? —perguntou, inquieta, a irmã.
E Rita nada respondia. Apenas olhava, encantada, em direção ao rio.
Vendo que nada falava, João ficou a sua frente, pegou em suas mãos, viu que estavam frias como que sem sangue.
—Ocê tá bem, Rita? desculpa os menino pela brincadeira, insistiu João.
Mas a garota parecia estar numa espécie de transe, e sem previsão para acordar.
—João, ela num vai levantar daí, é melhor ocê carregar ela, concluiu Maria.
João concordou. Colocou os braços de Rita ao redor do seu pescoço e a levantou. Levando-a embora.
—O que nós vai dizer pru pai quando chegar lá com ela desse jeito? toda rasgada e descabelada? Falou Maria, olhando aflita para João.
— Num sei, Maria. Eu não fiz nada!—falou João, tirando qualquer sombra de dúvida que Maria pudesse ter contra ele em relação ao que aconteceu com Rita.
Eles voltaram para casa pensando numa desculpa para dar ao seu Sebastião sobre o estado da filha, que nada falava.
Depois da Bronca que seu Sebastião deu nos três por chegarem com Rita naquele estado; elas ficaram um bom tempo sem sair de casa como castigo.
E depois de alguns dias após o ocorrido, Rita foi melhorando e voltando ao normal, mas nunca conseguiu explicar o que aconteceu naquela noite.
Passado alguns meses, seu Sebastião e Maria começaram a ver uma mudança em Rita, ela estava com uma barriga um tanto avantajada, e isso levantou suspeitas.
—Rita, que barriga é essa? Ocê num tá barriguda não, né? —perguntou seu Sebastião preocupado .
—Claro que não, pai! Eu nunca me deitei com homi nenhum, ora! —respondeu Rita, indignada com a pergunta do pai.
— E ocê, Maria, não sabe de nada?
—Eu não sei de nada não, pai.— afirmou Maria, deixando escapar uma certa inquietude.
—Ocê só pode tá com barriga d’gua, então! — opinou seu Sebastião confuso, coçando a cabeça.
—Já sei! vou leva ocê numa benzedeira.
Chegando à casa de dona Judite, a benzedeira da região, o pai foi logo perguntando o que estava acontecendo com sua filha:
—Dona Judite, quero saber o que tá acontecendo com a minha filha?
—Espera, homi! Conta o que aconteceu com sua filha pra eu dizer o que é, ora!
Depois de dona Judite escutar toda a história, e perceber que Rita não se lembrava direito do que tinha acontecido no dia da festa, dona Judite concluiu tudo.
—Seu Sebastião, sua filha foi mais uma vítima do Boto. —falou a velha, segurando uma vareta na mão, olhando em direção da barriga da moça e balançando a cabeça negativamente. —E mais, ela tá esperando um filho dele.
— Como? Que Boto é esse? — perguntou o Pai intrigado.
—Na verdade, é uma lenda,— atestou dona Judite.
—Como lenda, se embuchou minha filha, ué? —disse o pai indignado.
—Ele aparece nos dia de lua cheia, vestido de branco e cheio de charme, pronto pra seduzi raparigas como a sua filha — afirmou a velha benzedeira.
—Ma quem é ele, e de onde vem? — perguntou seu Sebastião inquieto, andando de lá para cá.
—Ele é o Boto, eu já disse, ué. É um animal mágico que se transforma num rapaz bonitão, irresistível pras moça— reforçou a velha.
Enquanto a velha senhora tentava explicar sobre o boto ao seu Sebastião, Rita começava a ter uns fleches de lembrança em sua cabeça sobre àquela noite esquisita.Começou a lembrar das feições dele, de sua beleza, e de como se sentiu seduzida por ele.
E depois de admitir, internamente, o que a velha falava fez sentido. Rita parou, respirou fundo e falou:
—Pai, dona Judite tem razão, foi o Boto quem fez isso comigo, agora posso me lembra.— De repente, os dois pararam de discutir e olharam em direção a menina que falava de cabeça baixa olhando para os pés, segurando uma rosa —a que guardou até aquele momento dentro de um lenço, sem saber o motivo, mas que agora fazia sentido.
Seu Sebastião todo confuso, colocou as mãos na cabeça e balançou-a negativamente.
—Dona Judite, o que vou fazer agora com essa menina?— falou o homem, desesperado.
—É seu João... não tem jeito! o que aconteceu, já tá acontecido, não pudemo muda.
A menina olhava para o pai com tristeza, pois agora sabia que iria virar mãe solteira, gerando em seu ventre o filho de uma criatura.
—Agora só o que resta é preparar tudo pra chegada do seu neto, filho de boto —a velha benzedeira falou sorrindo pelo canto da boca.
Seu Sebastião pegou sua filha pelo braço e arrastou-a porta a fora chutando as galinhas que estavam no caminho, no quintal de dona Judite.
O velho homem olhou para traz em direção a porta da velha e escutou um riso medonho saindo de lá, e depois umas palavras gritadas em meio a risos: botinho...filho de boto...hahaha...hahaha. —Seu Sebastião não deu outra, apressou os passos com a filha pelo caminho empoeirado que conduzia de volta à estrada que levava até sua casa.
Seu Sebastião e Rita sumiram ao longo do caminho de solo amarelado, margeado por árvores de todos os tamanhos, e acompanhados pelos cantos dos bem-te-vis (presságio).
Esta é uma história que, como todas as outras, foi contada usando um pouco de imaginação. Ela relembra um pouco da cultura Amazônica, com suas lendas, fábulas e até— por que não— “histórias de pescador”, Inspirando o imaginário dos ribeirinhos, e também, o nosso, que apesar de não vivermos lá, fantasiamos assim como eles, ao escutar histórias como esta aqui contada, do “Boto cor de rosa”.
Contos Amazônicos
Suane Cruz