A canção do silêncio
I
Há anos treinava sem parar. Mark já estava cansado daquela rotina. Dormia apenas duas horas por dia. Sua mestra já havia lhe ensinado tudo o que devia. Agora, deveria ser por ele mesmo...
Mark nasceu em uma pequena aldeia conhecida como Galantha. Desde sempre teve aptidão para a arte da magia. Descendente de uma família de bruxos Mark foi o escolhido para acabar com a terrível Maldição de Ankhus, um ser cruel e maligno.
Quando Mark ainda era criança sua aldeia vivia em alegria. Todos os anos havia a Festividade do Sol, que era o momento em que todas as famílias se reuniam e agradeciam ao Deus Sol pela acolhida e pelo calor que permitia a abundância das plantações de trigo, cevada e milho. Os animais viviam em pastos verdejantes e não havia miséria... Ah, não havia miséria. Isso mudou quando os pais de Mark alojaram em sua humilde casa Ankhus, que se passava por um mercador de tecidos. Desde então Ankhus escravizou a todos os habitantes da aldeia. Os pais de Mark o levaram ainda pequeno a Odara, sua mestra, pedindo que ela cuidasse dele e não permitisse que ele voltasse à aldeia enquanto a miséria tomava conta de todos. O Sol nunca mais brilhou, nuvens escuras tomaram conta do local. Os animais morreram de fome, as plantações nunca mais prosperaram e a tristeza reinou...
Mark estava a um dia de acabar seu treinamento. Cansado e faminto, encontrava-se sentado em uma rústica cadeira de madeira tomando a sua sopa de cevada – que ele achava nojenta e amarga.
-Mark – grita Odara, que estava chegando à sua casa.
- Sim, mestra –responde o jovem magista.
- Chegou seu tempo. Acabe de comer e vá descansar. Amanhã cedo iremos encontrar com seu par mágico. Ambos devem seguir e mudar o destino de Galantha.
- Par mágico? – exclamou o jovem aprendiz – Achei que voltaria sozinho para Galantha. Então tenho alguém que me fará companhia.
- Sim, você terá, Mark. Mas lembre-se. Um destino cruel e maligno o aguarda. Volte à sua aldeia, retire o colar do pescoço de Ankhus e o esmague. Só assim ele será totalmente destruído.
-Mestra, mas dizem que o colar de Ankhus é indestrutível. Como farei para esmagá-lo? O que usarei?
- o Amor, Mark, o amor. Apenas o amor verdadeiro pode destruir o colar de Ankhus. Agora, vá se deitar. Um longo dia o espera pela frente.
II
O sol acabara de nascer e Mark já estava em pé. Comeu novamente sua sopa de cevada – torcendo para ser a última vez que comeria aquilo - e guardou um pouco do ensopado para levar consigo (caso não tivesse outra coisa para comer). Arrumou seu grimório, guardou sua varinha e pôs-se a caminhar junto com Odara. Caminharam bastante, até o Sol chegar ao meio do céu. Subiram uma espécie de morro onde, lá do alto, podiam-se ver as nuvens negras que sobrevoavam Galantha.
- Bem, aqui estamos. Acho que seu novo companheiro já chegou. Que os deuses os abençoem e o livrem de um destino cruel.
Odara volta pelo caminho em que havia chegado. O silêncio da ocasião permitia ouvir um pequeno choro feminino vindo de Odara. Mark sentia um enorme aperto no peito, mas nada poderia impedi-lo de voltar a Galantha. Seu pensamento em salvar seu povo estava tão longe que nem sequer percebeu a presença de seu novo companheiro.
- Olá, meu nome é Rank. E o seu?
Mark ficou imobilizado. Nunca havia visto uma pessoa tão bela à sua frente. Não que ele tenha visto pessoas demais, mas aquele garoto parecia diferente. Tinha aparentemente a sua idade, dezesseis anos. Cabelos curtos e loiros, olhos verdes, pele clara. Vestia uma túnica muito parecida com a sua, sendo que a única diferença era o brasão bordado em seu peito: um escudo com um dragão cuspindo fogo, enquanto no seu havia uma águia. Mark estava estático, uma sensação de tremor na barriga, o coração batendo mais rápido.
- O que foi, você não fala? – Perguntou Rank.
-Ooo sim, desculpe-me. Meu nome é Mark – disse o garoto envergonhado.
- Você é bem estranho. Ficou parado por um tempão quando eu estava falando com você.
-Me desculpe. Eu não queria tê-lo deixado falando sozinho. É que eu estava olhando o seu brasão...
-Ah, sim, o dragão vermelho. – interrompe Rank. Desde o início de meu caminho mágico na Antiga Arte me identifiquei melhor com o elemento fogo. Pelo visto você se deu melhor com o elemento ar, não é? Há uma águia em sua túnica...
-Sim, sim. Mas vamos caminhando – disse Mark sem graça – ainda há um longo caminho pela frente...
III
Após descerem morro abaixo e caminharem por um longo tempo os jovens garotos chegaram à entrada de uma floresta de mata bem densa. Caminharam juntos até encontrarem um local em que pudesse pernoitar. Mark não conseguia esquecer o papelão que havia feito logo ao conhecer Rank: “Ele deve estar achando que sou um idiota” – pensava a todo momento, assim como também pensava na beleza atraente de seu par mágico.
- Acho que encontramos um ótimo lugar para dormir, Mark.
Era uma clareira. A única parte da floresta em que haviam conseguido se enxergar, pois a escuridão das árvores enormes que ali existiam não deixavam que, ao menos, um foco da luz lunar chegasse até eles.
-Sim, acho aqui um ótimo local – respondeu Mark.
Comeram e ali mesmo deitaram. Estavam lado a lado, olhando para o céu todo estrelado
- Você já reparou nas estrelas? – perguntou Rank.
-Sim. São belas. Elas apenas brilham porque o Grande Sol dá parte de sua luz à elas. – responde Mark
- Meu mestre dizia que as estrelas são as pessoas que já morreram. – esclarece Rank – Cada estrela é uma pessoa que já viveu aqui na Terra. As estrelas brilham porque, assim como o Deus Sol, há um pouquinho de Deus dentro de cada um. Sempre que surge uma nova estrela alguém chega ao céu. Sempre que uma estrela desaparece significa que um espírito reencarnou na Terra.
Mark ouvia a história de Rank e, ao mesmo tempo, virou-se para o lado do rapaz.
-Mesmo com tanta desgraça ocorrendo em Galantha, acho que sou um bruxo de sorte - diz Mark.
- Por que você diz uma coisa dessas? – Pergunta Rank, assustado.
-Porque com tanta escuridão e tristeza pairando sobre minha aldeia, os deuses colocaram ao meu lado a mais bela das estrelas.
Rank percebe seus olhos enchendo de lágrimas. Olha para os olhos de Mark e percebe o mesmo. Uma gota de alegria surge no rosto de ambos enquanto os lábios dos garotos vão, aos poucos, se aproximando...
IV
O canto dos pássaros e a pouca claridade do Sol na clareira desperta os garotos para o dia decisivo. Mark acorda com Rank deitado sobre seu peito.
-Eu te amo. Aconteça o que acontecer eu irei te amar.
- Eu também te amo, Mark. Nada irá acontecer. Nós dois juntos venceremos a ira de Ankhus e libertaremos todo o povo de Galantha.
- Espero que sim. Mas eu te peço um favor, Rank. Não chegue perto de Ankhus. Deixe que eu pegue o colar dele. Mesmo sem saber ao certo como destruí-lo não quero que nenhum mal te aconteça.
-Nenhum mal irá acontecer, Mark. Os deuses estão conosco.
Os garotos arrumam suas coisas e saem. Logo após a floresta o clima triste e as densas nuvens que pairam sobre Galantha afetam o poder dos jovens bruxos. Uma nuvem de gafanhotos e uma matilha de lobos negros chegam próximas a ambos. Mark e Rank sacam suas varinhas jogando os lobos negros contra os insetos. Como os gafanhotos eram maioria Rank utiliza-se de um feitiço que faz com que todos os gafanhotos peguem fogo. Apenas fuligem cai sobre Galantha e sobre os meninos.
-Muito bem, Rank – diz Mark – mas creio que isso será pouco quando nos depararmos com Ankhus.
Após enfrentar o primeiro desafio os garotos veem o caos que se tornou Galantha: pobreza, tristeza, sofrimento. Pessoas gritando e chorando, dores no corpo e na alma. Ao longe pode se avistar a figura de um homem magro, pele acinzentada, sem cabelos e com olhos rigorosamente vermelhos: Ankhus. Em sua mão pode-se ver uma espada rígida, com um cabo alongado e algumas runas escritas em sua lâmina. Brilhante. O único item que brilhava na escuridão de Galantha
-A profecia se cumpriu – grita Ankhus em direção aos jovens – “Dois jovens mártires ascenderiam ao céu. A pureza de ambos transformaria toda a escuridão em luz.” Mas eu estou aqui e não permitirei que a profecia continue. Vocês não são puros. Acaso acham o amor entre dois homens sinal de pureza?
O medo e a insegurança tomaram conta do coração de Mark. Uma estranha sensação de tremor na barriga tomou conta de seu corpo, mas agora era diferente daquela sensação da primeira vez, quando tinha conhecido Rank.
- Amor, Ankhus – gritou Rank – o amor é o maior símbolo de pureza. Não importa quem se ama, o importante é amar. Mas você não sabe disso, Ankhus. Nunca amou em sua vida!
-Cale-se! – Diz Ankhus, soltando uma bola de fogo de sua mão que atinge o peito de Rank.
-Não! – grita Mark – o amor é a maior pureza que existe, e você não é ninguém para saber o que é pureza ou não.
Mark corre em direção a Ankhus. Uma disputa cruel e terrível começa entre ambos. Mark usa sua varinha para se defender dos ataques de Ankhus até que, muito cansado, consegue retirar o colar que havia em seu pescoço. Nesse momento Ankhus pega Mark pelo pescoço e o levanta.
- Não é necessário que você me devolva o colar. Você nunca poderá destruí-lo. Mas a ousadia de tê-lo tirado de meu pescoço será paga com a sua vida. – Grita Ankhus levantando o jovem bruxo e colocando a espada na direção de seu peito.
Mark, percebendo que seu corpo estava frágil ao ataque de Ankhus lança o colar na direção de Rank, que se estica o máximo que pode e consegue agarrar o colar de Ankhus.
A espada penetra o peito de Mark, que grita e cospe sangue na pele cinza de Ankhus. Uma terrível dor se concentra no peito de Rank ao ver seu companheiro ferido. Uma lágrima corre de seus olhos verdes caindo sobre o colar de Ankhus. Nesse momento, tudo ficou em silêncio. As nuvens negras sumiram de cima de Galantha e um branco esfumaçado toma conta da visão de Rank. É noite, e pode-se ver uma nova estrela no céu.
NOTA: GOSTARIA DE PEDIR QUE, INDEPENDENTE DA OPINIÃO DOS LEITORES DESTE TEXTO, RESPEITEMOS AS DIFERENÇAS. O TEXTO CONTA COM DOIS ASSUNTOS POLÊMICOS, SENDO UM A HOMOSSEXUALIDADE E OUTRO A RELIGIÃO. VAMOS FAZER UMA LEITURA COM OLHAR CRÍTICO E SOCIAL, E NÃO COM OLHAR TEOLÓGICO. GRATO A TODOS!