ALMA ARDENTE

“Quando os instintos desfazem uma alma ardente, em meio a dualidade dos fragmentos que insistem em se perder junto a noite, é exatamente quando a mente não consegue discernir a memória da fome.”

Talvez fosse a chuva fria que acorrentava seus pensamentos, enquanto ela caminhava através do prado, a capa que a cobria por inteiro, mas ainda assim sentia o frio que a invadia por entre os poros do tecido, fazendo com que seu corpo se enrijecesse. Ela caminhou através do prado até encontrar a entrada para a floresta, penetrando por entre os caules antigos, parou junto à uma faia, olhou ao redor, e deixou a capa negra escorrer de seu corpo nu, até atingir o chão.

Antes mesmo do que ela esperava antes mesmo de sentir sua presença, sentiu suas mãos infiltrando-lhe por entre o ventre enquanto segurava sua garganta, deslizando os dedos por entre seus cabelos de terra, seus lábios se abriram vagamente num gemido que não pode deter, até que ele roçou os lábios por seus ombros, fazendo com que ela se virasse. Maculando sua pele com os fios ruivos e espessos de sua barba, ele a deixou vermelha onde quer que tocasse, onde ela sempre apreciava o roçar indecente de seu queixo. E diante do inicio da escuridão ele segurou seus seios puxando-a para junto de seu peito também nu.

Era necessário, somente naquele momento eles podiam se encontrar, por anos fora assim antes que a noite chegasse, a noite que os penetrava na sombra indelével. Ela o deixou se apropriar de cada molécula sua, antes que a escuridão caísse, pois sabia que quando a lua surgisse por detrás das faias eles teriam a liberdade da noite em suas peles ao invés do inconstante formigar de seus corpos ainda quentes.

Foi quando o negrume jogou seu manto, que os finos raios azuis distorceram sua luz sob a pele nua deles, que sequer haviam começado, ela chegara tarde, e agora já não havia mais tempo.

Clara sentiu o calafrio arrepiando-lhe os pelos de seu corpo. Ela que até então arranhava vagarosamente a parte dos ombros de Adam que estavam ao seu alcance naquele confuso enlaçar de braços, parou, parou porque suas unhas vermelhas já estavam se metamorfoseando em garras. Antes que seus instintos começassem a se ferir eles pararam de se tocar, e em segundos suas peles sumiram, para darem lugar aos pelos grandes e macios, que os libertaram do frio da noite.

Ele, um lobo grande e vermelho, ela, uma loba um pouco menor, cinza e com olhos amendoados, que pregavam tudo o que sua carne não podia. Os dois saíram da floresta simplesmente para correr pela pradaria, até chegar ao riacho que corria na beira da colina em favas. Enquanto bebiam água, os dois lobos que se conheciam antes mesmo de saberem da existência de seus corpos humanos, sentiram seus pelos arrepiarem, dois lobos, quase gigantes, sentiram o cheiro do sangue que atravessava o riacho.

A fome invadiu-os e seus olhos quase vermelhos de desejo se cruzaram, antecipando a decisão de caçar. Seguindo através da margem nua do riacho farejaram algo entre as faias, o instinto dos lobos salivando por um pouco de sangue. Mas antes que entrassem novamente na floresta, Clara uivou para a lua, o que fez com que Adam parasse a tempo de ver com seus olhos lupinos o pedaço de carne sangrenta jogado ao acaso a beira das árvores, e o brilho dos inúmeros olhos escondidos, esperando apenas que o lobo vermelho mordesse a isca.

Eles se entreolharam e começaram a correr, fugindo dos disparos, correram muito mais do que podiam. Contudo antes de chegarem à orla da floresta onde mesmo os homens mais insanos não penetrariam, Clara soltou um uivo de dor, pois uma bala a atingira na perna. Quando percebeu o que acontecera, Adam ladrou com raiva e avançou sobre o homem com a carabina, o único que se atrevera a seguir o lobo, os dentes afiados cravaram na pele macia e suja do homem que certamente conhecia Adam em sua outra forma, mas que jamais poderia dizer a ninguém que o que vira nos olhos do lobo fora um olhar humano repleto de ódio por ele ter ferido sua companheira de lua.

Através da dor a lua cheia os guiou para dentro da floresta, onde estariam seguros, lugar que se encontram os murmúrios do instinto sem pudor. Mas Clara não conseguiu chegar até a faia onde eles se transformavam, perto da cabana há muito abandonada pelo ultimo lobo que vivera na floresta. Ela caiu antes, retomando aos poucos sua forma nua e humana, sem forças para manter a influencia da lua. Lutando contra seus instintos Adam não suportou a influencia dos raios lunares, ele não tinha o poder de reverter aquilo que a natureza lhe dera, mas ainda podia controlar sua mente, por Clara ele teria que conseguir.

Quando os instintos desfazem uma alma ardente, em meio a dualidade dos fragmentos que insistem em se perder junto a noite, é exatamente quando a mente não consegue discernir a memória da fome. Adam estava diante da mulher que em sua forma humana ele sentia algo que jamais admitiu ser amor, interpretava a confusão de seus sentimentos como simples resultado do desejo de sua alma ardente, de sua carne flamejante. A loba com quem corria nas noites de lua lhe fazia pertencer a si mesmo muito mais do que qualquer mulher poderia fazer.

Mas agora ela não era uma loba, e sim uma mulher, sua caça ferida, com o sangue de aroma vernal fazia o lobo salivar. Adam tentou deixar sua forma de lobo para não se entregar à fome, ao sangue de Clara, mas ele era apenas um macho fraco, e não poderia, nem ao menos por aquele sentimento que lutava em se manter vivo dentro do lobo. Até uma nuvem escura tomou o céu, e o que ele achou ser impossível aconteceu! Aos poucos Adam conseguiu recuperar sua forma humana, sem os raios tocando sua pele era mais fácil discernir quem ele queria ser, se soltar da prisão de sua fome.

Ainda com traços lupinos ele se levantou e segurou o frágil corpo nu de Clara nos braços, levando-a até a cabana do ultimo lobo da floresta. Ele a colocou, meio desacordada, sobre o cobertor que ele mesmo deixara ali, horas antes. O a bala atingira de raspão a coxa de Clara, porém o sangue quente do ferimento jorrava escorrendo por entre suas pernas. Adam rasgou um pedaço do cobertor para fazer um torniquete na perna de Clara que já estava completamente desperta, apenas observando-o. Ele amarrou firme o tecido ao redor da palidez de sua perna, olhando o contorno que a gota de sangue fazia encantadoramente por sua pele.

E antes que ele pudesse notar que ela o encarava, Clara segurou firme os cabelos castanhos claros do homem-lobo, mas ele resistiu, apertou seu pulso, e a fez soltá-lo. Seus olhos lupinos a encararam como jamais tinha feito, ele a tocava apenas antes de se transformarem, para que seus instintos se abrissem, depois que a lua ia embora, cada um voltava para sua vida na cidade, encarando-se como estranhos.

Mas agora, eles já tinham se transformado e voltado a suas formas, mesmo com traços selvagens, e tudo o que Adam queria era sentir o gosto quente dela novamente. Ainda segurando seu pulso, ele se pos ajoelhado a sua frente, e deixou que seus lábios caíssem por entre as coxas dela, permitindo que sua língua pérfida sentisse o gosto do sangue de seu ferimento, desmentindo o pudor de sua boca. Era a primeira vez que ele sentia o gosto do sangue humano, o gosto de sua companheira de lua que lhe despertava sentimentos tão controversos quanto intensos.

Eles estavam em pele, mas o desejo em seus olhos ainda cobertos pelo efeito da noite clara. O gosto do sangue desceu pela garganta de Adam com o desejo da carne, da caça, mas era Clara ali, era ela e não sua caça. Puxando para si o corpo que conhecia em pelo, os olhos que desviava quando a lua não estava cheia, ele deixou que seus dedos envolvessem a cintura de Clara, deixando seu peso cair sobre ela, sentindo seus pequenos seios, porém um fino gemido de dor o moveu para baixo, por alguns segundos ele se esqueceu de que não deveria. Ela estava ferida, e o gosto do sangue em sua boca constipava sua mente.

Adam procurou os olhos dela, perdidos nos seus. Sabia que tinha que levá-la dali, cuidar de sua dor, mas como poderia, ele não arriscaria sair à luz do luar e se converter novamente, talvez sem o controle de quem era ou não a caça. Ele procurou as roupas que deixara ali antes de se metamorfosear, depois de se vestir cobriu Clara com o cobertor e a levou nos braços. Mas quando saiu da cabana, o luar na floresta de faias fez sua pele formigar, ele sabia que Clara não tinha forças pra se controlar, que a dor fazia com que ela se esquecesse. Ele não ia conseguir levá-la até um médico, não iria conseguir fazer com que a dor parasse.

Então Adam a colocou junto de uma faia, cobrindo-a do frio, sabendo que aquela bala, mesmo não tendo permanecido no corpo de Clara disseminara a prata no sangue dela, e logo, muito logo a lua já não seria suficiente para lhe dar a força necessária. Ele olhou sem poder fazer nada, a pele de Clara se convertendo em pelo e voltando, numa metamorfose continua, ele sabia o que aquilo significava.

Algo mais cedo lhe dizia que deveria só naquela noite ir até a floresta de carro, mas era o código deles, não chamar a atenção, porém de alguma maneira alguém sabia que havia lobos na floresta, alguém os encontraria só por diversão, pela simples curiosidade de saber quem eram.

Adam a observou se converter da loba cinza na mulher pálida, seus cabelos se confundindo com a terra, seu corpo nu sujo de sangue e musgo, por tantas noites de lua ela acalentara sua maldição, por tantas noites ela despertou o desejo contido, proibido em pele, de sua alma ardente.

A luz bruxuleante da lua surgiu por detrás das faias, iluminando-os por completo, Adam já não podia controlar sua mente, uivando ele se converteu em sua forma natural da noite. O lobo vermelho tentou reanimar sua companheira, mas seu focinho gelado apenas encontrou a pele de Clara que perdia seu calor. Ele deitou-se no musgo junto dela, encaixando seu pelo através dos cabelos da moça. E

E num ultimo uivo Adam sentiu sua alma ardente congelar, na noite em que a fome de sua memória perdeu-se em seus olhos tépidos, pois aquele lobo uivou em silencio pelas noites em que somente por ela ele renasceu diante da lua cheia.

13/12/2011

Às 01:48

(O conto com a imagem se encontra no blog Relicário de Sangue

http://sofiageboorte.blogspot.com/2011/12/conto-alma-ardente-parte-unica.html)