Carência
Quase todas as madrugadas, ele chegava trazendo consigo a vida. Era sempre a mesma coisa, um alô caloroso, a saudade implícita na voz ansiosa, os assuntos que pareciam não ter fim. Ela o recebia com o coração em flor, a cama desarrumada e, entre lençóis e travesseiros em desalinho, podia-se ouvir sua gargalhada. Falavam sobre os amigos, contavam fatos do cotidiano, cantavam suas músicas preferidas, tudo naquela intimidade cálida da qual apenas as almas apaixonadas conseguem desfrutar.
Como músico sensível deslizando nas cordas de seu violino, ele adivinhava exatamente qual nota tocar para ouvir dela o som mais sublime. E, juntos, nas madrugadas compunham sinfonias de emocionar até os anjos.
Ela o aguardava contando os minutos como criança que a mãe vai levar para tomar sorvete. Feliz. Muito feliz. Esperava, certa, pelo momento mais feliz, porque promessa de mãe não falha. E não falhava. Os festejos avançavam até o amanhecer. Sempre.
Ele nunca queria partir, arrumava desculpas esticando o assunto; um dia até dormiu e de roncar para deleite dela que ouvia seus roncos como se fossem poesia.
Tudo acontecia assinzinho, exatamente assim com ele e com ela. Brincavam felizes no bosque da paixão sem que nada os incomodasse ou atrapalhasse. Igualzinho duas crianças eram cúmplices e, muitas vezes, imaginavam-se sentados quietinhos debaixo de uma mesa, trocando segredinhos infantis ou em silêncio à beira de um rio, observando-o passar. Quietos. Sem palavras. Apenas a voz do coração.
Certo dia, a promessa de mãe falhou. E falhou num outro certo dia também, e num outro certo dia também e num outro certo dia também. Ela teve febre. Ouvia a voz dele ecoando no seu quarto pelas madrugadas. Ela, instrumento sem cordas. Ela em sorvete. Ela sozinha debaixo da mesa. Ela sozinha observando o rio passar. O coração sem voz.
Nunca mais soube dele. Nunca soube quem ele era. Nunca mais ele lhe telefonou de madrugada.