Trilogia "Águas passadas"
(Trilogia baseada no universo medieval fantástico do MMORPG Ragnarök Online)
PARTE I
- Breve Chuva
Igreja de Prontera, começo da madrugada
-... e que mesmo que eu ande pelo vale da sombra da morte, senhor, eu nada temerei, pois tu está comigo. Amém.
O sacerdote terminou sua prece e depositou cuidadosamente a vela acesa no altar. Olhou ao redor, para ter certeza de que estava sozinho e, no silêncio da catedral, retirou a máscara. O cabelo louro e liso escorria por seu rosto, escondendo parcialmente os olhos. Um facho de luz prateada iluminava a passarela central, por onde caminhava. Foi até o confessionário e sentou-se, esperando por longos e silenciosos minutos, até que alguém entrou do outro lado.
Uma pequena porta de madeira deslizou entre o sacerdote e a pessoa que chegara, deixando apenas um cercado quadriculado, que escondia os dois rostos um do outro, na penumbra.
- Deus o abençoe, filho. – disse o recém-chegado.
- Amém, padre.
Uma seqüência de orações foi dita pelo sacerdote, até que o padre retomou a palavra.
- Qual pecado aflige sua alma?
- Padre, eu estou cometendo o pecado da mentira.
- Mentir não agrada a deus, filho.
- Sim, e o peso da mentira está se tornando insuportável demais.
- Quão grande é sua mentira, filho?
Uma pequena chuva começou a cair em Prontera. As gotas começaram a fazer barulho na abóbada da construção, tornando qualquer conversa em tom baixa inaudível. E, por demorados momentos, os dois homens conversaram.
- Eu entendo sua angústia, e agora faz sentido o pedido de Leonard Belmont. Faz sentido total.
- Lamento que o senhor tenha sido agredido por isso, padre.
Por trás do cercado quadriculado, o padre, já com idade avançada, sorriu.
- “...ofereça a outra face a seu inimigo”, disse o senhor.
- Verdade, padre. Verdade.
A porta de um dos lados do confessionário foi aberta. Alguns passos foram ouvidos, e a porta do sacerdote também foi aberta. Os olhos verdes observavam o padre, por entre os fios louros, olhando-o nos olhos.
- O peso da mentira vai aumentar a cada dia, filho. – disse o padre, suavemente, para o sacerdote cabisbaixo – E enquanto você não dividi-lo, ele vai continuar a sufocá-lo. Não apenas isso, mas você precisa entender que um grande número de pessoas sofre com esse peso, sem nem ao menos saber qual é ele, e nem como aliviá-lo. Você precisa assumir sua responsabilidade.
O sacerdote ajoelhou-se e beijou a mão do padre. Agradeceu a ele e foi até a porta da igreja. Colocou a máscara sob o rosto novamente, prometendo a si mesmo que aquela seria a última vez.
***
Enfermaria de Prontera, 1h da manhã
- Atchim!
O barulho fez Aislinn levantar-se rapidamente. A pequena Lisa estava com febre. A constituição da garotinha não era mais a mesma, desde que ela voltara de sua iniciação como sacerdotisa da família Cerridwen. Na verdade, alguma infecção tinha pego a garota, que não melhorava há alguns dias.
Preocupada, a mãe foi até a janela e baixou o vidro, cortando a corrente de ar que entrava no quarto. Não tinham muitos pertences, desde que Leafar, durante sua crise de justiceiro, antes de morrer, colocou fogo na casa da família, em Payon. Apenas os bichos de estimação – o macaquinho Ayo, o cão Rush, o Petite Shiryu e o Chon-Chon de Aço SuperFly – eram sua companhia.
- Calma, filha. Mamãe está aqui. Vai ficar tudo bem.
- Minha cabecinha dói... ai...
Aislinn abraçou a menina, murmurando uma canção de ninar. Chovia e, sem remédios, era tudo que ela podia fazer. Desde que matara o marido, Aislinn havia abandonado o arco, tornando-se uma Sábia, em busca da verdade sobre o mal que tinha destruído sua família e a pedra fundamental da Ordem do Dragão.
Três batidas na porta, porém, chamaram a atenção dela. Quem estaria ali àquela hora? Instintivamente, buscou a aljava de flechas, mas piscando forte, acordou para a realidade e segurou o bastão firmemente.
- Entre. – disse, observando atenta a porta.
Um sacerdote louro entrou. Seu rosto tinha uma máscara branca, conhecida como Máscara de Fantasma – um nome propício para aquela ocasião.
- Boa noite, milady. Perdoe o inconveniente do horário.
Ela reconheceu no mesmo instante o irmão Valmonte, que tinha se apresentado há algum tempo, durante o funeral de um dos membros da Ordem do Dragão.
- Imagine, irmão. Aconteceu algo? O que o traz aqui a essa hora?
Calmamente ele caminhou até Lisa e colocou a mão na cabeça dela. Murmurou uma oração, abençoou a menina e utilizou uma reza de Cura. Lisa tremeu, olhando assustada para o sacerdote.
- Está melhor, menina?
A pequena noviça não conseguiu responder. Algo terrivelmente familiar a deixou sem voz. A menina sentou-se direito na cama, abraçada à coberta. O cãozinho saiu do pé da cama e foi até o sacerdote, cheirando-o. A seguir, deitou-se aos pés dele, quieto.
- Milady, eu vim a essa hora porque faz-se necessária uma conversa franca. Há muito a ser dito, mas o momento não pode mais se adiar. Perdão.
- Mas o que é tão grave assim? Ei...
Aislinn foi até a cama e notou que Lisa estava bem. A menina estava corada novamente, e agora estava com a temperatura do corpo normalizada. Parecia tudo perfeitamente bem com ela.
- Irmão Valmonte, - insistiu ela – o que tem a dizer?
De costas, ele fechou a porta. Rush saltou de seus pés e ficou do lado, observando quieto. Com um suspiro, ele retirou a máscara e deixou-a cair no chão de madeira daquele aposento simples da enfermaria.
- Eu não posso mais mentir. Há muito a ser dito, e vocês duas são as primeiras que, por direito, devem saber.
A voz fez Aislinn e Lisa se arrepiarem por inteiro. Sem a máscara para abafar o som, a voz era assustadoramente inconfundível. Lágrimas instantaneamente inundaram seus olhos. Rush começou a abanar o rabo e latir, enquanto o Chon Chon de Aço e o Petite, até então quietos, começaram a rodear o sacerdote, fazendo festa.
- Q... quem... – a voz de Aislinn saía fraca, lutando para ser ouvida – quem é você?
O sacerdote se virou. O cabelo louro balançou suavemente para o lado e saiu da frente do rosto. Os olhos verdes buscaram os de Aislinn. O choque a fez cambalear para a frente, perdendo o equilíbrio. O sacerdote deu um passo para segurá-la nos braços. Lisa, de tão tensa e descrente, estava quase rasgando a coberta.
- Eu sou – disse ele, olhando a Sábia nos olhos – exatamente quem você está vendo.
“Leafar” foi tudo que Aislinn conseguiu dizer antes de desmaiar. E a chuva que caía sob Prontera, como se participasse daquilo, cessou.
PARTE II
- Tempestade
A distância da enfermaria até a Kafra foi percorrida em pouco tempo. Sem a máscara, com a roupa de sacerdote úmida pela chuva passada, cabelo com pontas molhadas, Leafar carregava Aislinn, ainda desfalecida, em seus braços. Lisa ia a seu lado, acompanhada pelos bichos de estimação. Era difícil para a menina dizer qualquer coisa; na sua frente, seu pai, morto diante de seus olhos, carregava a mãe.
- Senhorita Camila. – disse ele, olhando a Kafra. Ela não deixou de se admirar, pois raramente qualquer uma das Kafras era chamada pelo nome.
- S-sim... pois não? – respondeu a moça de avental, um pouco ruborizada.
- Necessito de vosso serviço. Poderia enviar a nós e nossos animais para a cidade de Geffen?
- Pois não, senhor.
De tão surpresa com a educação, a funcionária Kafra se esqueceu de cobrar pelo serviço de teleporte. E em um facho de luz a família foi enviada para Geffen. Uma viagem rápida, mas que para Aislinn, ainda no mundo dos sonhos, não foi percebida; aliás, mundo dos pesadelos, dado o teor deles – um Leafar mudado, irreconhecível, de atitudes intolerantes e cruéis.
***
Abadia de Sta. Capitolina, dois meses atrás
A luz azul emanava do cavaleiro. Pequenas bolas azuis saíam ocasionalmente, subindo aos céus. Não havia nenhuma sombra de dúvidas sobre o poder daquele homem – no caso, Leafar, então líder da Ordem do Dragão.
- Padre, desejo uma audiência AGORA.
O Padre se assustou. A porta de seu aposento fora aberta por um chute do cavaleiro, que tinha profundas olheiras. Sua roupa estava suja, e a capa, outrora gloriosa, agora tinha muitos rasgos, demonstrando o pouco cuidado do homem com sua imagem.
- Eu não posso atendê-lo agora, senhor cavaleiro. – disse o Padre, assustado.
- Quero saber quem me proibiu de ingressar na ordem de Prontera como Sacerdote.
- Do que é que o senhor está fal...
Leafar avançou. Segurou a pesada mesa de madeira com as duas mãos, por um dos cantos, e levantou-a, atirando-a, a seguir, para o lado. Sua voz saía furiosa da boca, com os lábios secos.
- Eu concluí o treinamento como Noviço! Eu tenho o direito de receber os poderes de um Sacerdote! Eu exijo isso!
- Mas o senhor já um Cavaleiro, de nível máximo, pelo que sua aura diz. Não entendo por qual motivo o senhor quer s...
Em um movimento rápido, Leafar ergueu o homem pelo colarinho. Os pés dele ficaram pendendo no ar e seus olhos passavam todo o medo que sentia. Não era possível que aquele cavaleiro fosse o bondoso e nobre Leafar, de quem ouvira falar.
- O que eu quero ou deixo de querer não é problema seu, padre. Eu exijo me tornar um Sacerdote também!
- Nem o mais poderoso dos cavaleiros tem o direito de exigir coisa alguma de deus. Se a igreja não o nomeou sacerdote, eu não o farei, Leafar.
Se Leafar pudesse ler a mente do padre, saberia que, a pedido de Leonard Belmont, Arquimago membro do Conselho de Magia de Geffen – e seu pai! -, sua entrada no sacerdócio tinha sido barrada. Leonard tinha excelentes motivos para isso, e o padre, mesmo sem conhecê-los, confiava no pedido do amigo.
- Eu sou o instrumento máximo da justiça, padre. Justiça Infinita é o nome que deus me deu, e é por meio dele que eu vou expurgar todo o mal de Rune-Midgard.
- S-solte-me, por favor.
- Apenas quando eu for ordenado sacerdote!
- Os guerreiros de deus não fazem chantagem para ter o que querem.
A dureza das palavras fez Leafar afrouxar o aperto. Aos poucos ele foi descendo o padre, até deixá-lo de pé em sua frente. De punhos cerrados, ficou encarando o padre, como se a frase o tivesse desarmado. O padre suspirou aliviado, segurando firmemente o Rosário.
- Além do mais – continuou – os ditos guerreiros de deus são os templários, não os cavaleiros. Se me permite dizer, errou de profissão.
A resposta veio com um soco direto no olho. Não fossem os Colares da Vitalidade que usava, o estrago teria sido pior. O padre caiu por cima da cadeira, descrente com a violência.
- Errou de escolha, padre. Eu não sou um guerreiro de deus. Eu sou O guerreiro de deus.
Nos dias seguintes, a Abadia teria funcionários vivendo sob o medo. Leafar, com o padre sob sua custódia, transformou o lugar em uma prisão, onde manteve o Rei Tristan III, raptado, escondido. Em sua crise, acreditando ser o arauto da paz, ordenou que o Rei encerrasse definitivamente a Guerra do Emperium. Sem sucesso, disse que, caso algum período de guerra acontecesse novamente, Leafar mataria o Rei, cravando sua cabeça em uma estaca.
E isso quase se tornou realidade, não fosse a Ordem do Dragão ter encontrado seu líder enlouquecido e tê-lo detido. Em uma batalha terrível e selvagem, Leafar finalmente fora neutralizado. Alterado, lutou como um verdadeiro monstro. Documentos encontrados previamente pela guilda sugeriam que ele era um tipo de experimento. E verdade ou não, enfurecido, apenas Tarcon e Deenar conseguiram segurá-lo, para que Aislinn, em toda sua força como Caçadora, pudesse disparar o ataque fatal, que terminaria de vez com a insanidade que tinha destruído-o.
“Eu sou a Jusitça Infinita! Pare, Aislinn! Você não sabe o que está fazendo! Aislinn!” era tudo que ele dizia. E ela, com os olhos marejados, antes de gritar o Rajada Dupla, murmurou “Projeto... é isso que você é.”.
***
- Mama... acorda.
As pálpebras de Aislinn tremeram, fazendo força. A voz da filha entrou aos poucos em sua mente, até despertá-la por completo. Um primeiro olhar mostrou que ela estava em uma casa aconchegante, bem construída. O sofá onde estava deitada era de couro, macio e grande. Um xale de lã cobria o corpo. Sentada no grande tapete da sala, do seu lado, entre ela e uma mesa de centro de madeira clara, Lisa acariciava as tranças da mãe. Um aroma de chá quente invadia o lugar, com seu odor passeando entre a decoração e móveis. Sem dificuldade, Aislinn pôde ver Leonard Belmont, sua esposa Margareth, e Leafar, sentados em lugares distintos, silenciosos.
- Eu... eu não estou entendendo nada disso. Lisa...
A mão, fria, encontrou as mãozinhas quentes da menina, que as apertaram firme. A garotinha estava com os olhinhos vermelhos de choro, mas parecia que agora estava bem.
- Espero que esteja confortável, Aislinn. Tem fome? Há algo que possamos fazer para melhorar seu estado?
Foi impossível para Aislinn conter a surpresa. Maltratada por anos por Leonard, desde que se casara com Leafar, jamais em toda sua vida tinha ouvido alguma palavra de carinho ou atenção do sogro. Nunca fora bem tratada, sequer perguntada sobre seu estado. A madrugada estava cada vez mais estranha para a Sábia.
- Por favor, o que está acontecendo? – foi tudo que conseguiu dizer, inicialmente. Lisa, até então quieta, foi até Leafar e pegou sua mão, olhando-o nos olhos.
- Você é meu papá?
Leafar voltou o olhar para Leonard. Ele se levantou calmamente de sua poltrona, com um grande e pesado manto de pele. Pegou, na mesa de centro, um livro enorme, de capa preta, com cantos cinza-escuro. Era um tomo grosso e aparentemente bem antigo. Cuidadosamente sentou-se ao lado de Aislinn, por cima do xale que a cobria.
- Seus olhos estão bem, jovem? Consegue ler? Ou quer que eu leia para você?
Aislinn esfregou os olhos com as costas das mãos. Forçou a vista, e pôde ler na capa os seguintes dizeres:
“CORPORAÇÃO REKENBER
Histórico do doutor fundador Zenit Zerter Lighthal”
- Isso... isso tem a mesma data... – ela balbuciou, enquanto Leafar, observando de seu lugar, abaixava a cabeça, quieto.
- Isso – completou Leonard, com a voz suave – tem a mesma data da extinção da Ordem do Dragão, exatos quinhentos anos atrás*.
A Sábia começou a folhear as páginas. A descrença começou a tomar conta de seu ser enquanto lia de maneira superficial as informações. Ficou boquiaberta com o conteúdo. Era inacreditável o que estava escrito ali, mas fazia um sentido assustador.
- Você, curiosamente, interagiu de maneira plena com o que está lendo, jovem. – disse o arquimago, soltando um longo suspiro – E agora é hora de você conhecer a verdade. É hora de saber tudo que aconteceu em sua vida, desde que conheceu meus filhos, Elessar e Leafar. E mais do que isso, é hora de você entender plenamente o que é o Projeto 003.
Aislinn e Lisa olharam para Leafar. “Projeto 003”. A lembrança do nome as fizeram recordar do monstro que enfrentaram em Sta. Capitolina. A chuva que tinha caído em Prontera, agora alcançara Geffen. Mas diferente do que aconteceu na capital, agora uma tempestade se formava. E a água, cruel, castigava as paredes da casa, enquanto Leonard começava a contar tudo para Aislinn e Lisa.
Tudo.
*nota: na história oficial de Lighthalzen, no site do pRO, um local que será utilizado neste conto foi realmente fundado há 500 anos.
PARTE III
- Calmaria
A sala da casa dos Belmont, em Geffen, estava silenciosa. Aislinn, sem sono, folheava curiosa o tomo em seu colo. Seus olhos corriam por nomes e informações. Recém-formada Sábia, depois ter abandonado o caminho de Caçadora, estava achando familiar aquele tipo de dado: eram registros sobre a criação de vida humana.
Com um carinho paternal, Leonard foi até ela. Deixou o copo de chá quente na mesa de centro e sentou-se ao lado da garota. Tomou cuidadosamente o livro das mãos dela e fechou-o. Seus olhos perderam-se no título, e ele começou a falar, como se estivesse hipnotizado.
- Há exatos quinhentos anos, Aislinn, a Ordem do Dragão tinha sido destruída na guerra. Uma guerra que acabou com muitas vidas, muitos sonhos. E no começo dessa guerra, uma pessoa perdeu a amada. O doutor Zenit Zerter Lighthal teve sua mulher morta por um ataque inesperado de monstros. Sem chance de reação, sem misericórdia. Morta.
Lisa sentou-se do lado de Aislinn e segurou forte a mão dela. Um vento frio soprou por uma fresta na janela, obrigando Margareth a se levantar para resolver isso, com um pano dobrado por onde o ar entrava.
- O doutor Lighthal era um homem equilibrado e sensato. Nunca se entregou a fraquezas “humanas”. E contrariando um juramento que tinha feito no passado, usou os recursos de seu laboratório para refazer sua mulher.
O silêncio imperou na sala. A palavra “refazer” não foi inicialmente assimilada. Aislinn piscou e esfregou os olhos, olhando atenta para o Arquimago. Ele suspirou, e continuou contando.
- Zenit conduzia um projeto chamado Guardiões. Seu sonho era desenvolver os guerreiros perfeitos, nos mesmos moldes dos MvPs, mas voltados para proteger o povo. Nenhum ser humano teria que se sacrificar, já que seriam utilizadas cópias de grandes heróis para isso.
- Cópias? – perguntou, curiosa.
- Sim. Cópias, clones, simulacros, doppelgangers... o nome que você achar mais agradável. Em seu sofrimento, ele utilizou os recursos do Projeto Guardiões para reproduzir sua esposa. Ela tornou-se, secretamente, o Projeto 000.
Margareth serviu mais uma rodada de chá quente. O aroma de pêssego invadiu a sala, quebrando um pouco aquele clima pesado. Aislinn tomou um gole quente, gostoso, preparando-se para não perder o fio da meada. Leonard levantou-se, com as mãos para trás, também pensando em como falar para não deixar Aislinn e Lisa perdidas em meio às informações.
- A guerra aconteceu no reino dos homens. E ao mesmo tempo, terminava uma guerra divina. O panteão de Odin vencia o panteão de Oparg, os deuses dragões, e selavam o líder deus dragão como uma gigantesca estátua de pedra, que passaria séculos no Calabouço de Magma, esquecida. O doutor Lighthal, por motivos que contarei mais adiante, precisava ocultar seu diário. E por razões irrelevantes neste momento, este diário teve suas páginas magicamente apagadas. O livro, branco, foi entregue a um certo Cavaleiro do Dragão, que passou a utilizá-lo como diário pessoal, escrevendo sua própria história nele.
- Você não está dizendo que...?
Leonard se aproximou e pegou o livro. Murmurou algumas palavras, enquanto uma breve luz amarela saiu da palma da sua mão, envolvendo momentaneamente o objeto. A capa mudou para um tom vinho.
- Reconhece agora, Aislinn?
“Diário de Julian Belmont” era o que a capa dizia – o livro que tinha sido enterrado por Julian, junto com a espada do antigo Mestre da Ordem do Dragão, e o qual a nova geração da guilda tinha empreendido uma longa batalha para reaver.
- Meu deus! O diário de Julian era, na verdade, o diário do doutor Zenit disfarçado?
- Exato, jovem. Vocês protegeram, sem saber, este precioso documento.
- Isso explica... muita coisa!
A cabeça de Aislinn mergulhou em pensamentos. No passado, em duas oportunidades, grupos distintos tentaram roubar o livro. Ninguém entendia porque um diário que apenas continha dados sobre a composição da guilda e algumas lendas do passado era tão importante.
As coisas começavam a fazer sentido, mas ainda não explicavam o que era aquele Leafar ali, sentado com uma roupa de sacerdote, quieto. E Leonard, notando a perturbação aparente na Sábia e na pequena noviça, continuou explicando.
- Eu já fui tão fraco quanto o mais recente Aprendiz. Como todos os cidadãos, eu construí minha história e meu poder. Comecei com apenas uma faca e uma camisa de algodão, até ter minha fortuna, equipamentos e poder. E nessa jornada, eu atingi o primeiro nível máximo de poder, conhecido como A Aura. E no ápice de minha força, durante estudos, encontrei os Olhos de Oparg.
- Você também ajudou a remontar o tiu Opárga? – perguntou Lisa, referindo-se ao deus dragão.
- Sim, pequena. Vocês pegaram a parte fácil da coisa. Tiveram apenas que montar o coração dele. Meu grupo teve que encontrar as garras, os olhos, presas e língua. Foram anos caçando, acredite.
- E se me permite a pergunta, - disse Aislinn, adiantando-se para a frente no sofá, interessada – o que faziam os Olhos de Oparg?
- Eles me colocaram em contato direto com a alma do deus dragão, vagando no limbo do esquecimento. Oparg foi meu tutor e guia. A cada parte de seu corpo petrificado que restaurávamos, uma parcela de seu poder ia aumentando, assim como a proteção que ele nos fornecia. Até ele poder vagar em forma austral pelo Valhalla, para descobrir os planos de Odin e poder voltar. Foi quando ele soube do plano Lineth.
- Lineth – disse Aislinn, participando das conclusões – era uma das amantes de Odin, certo? A que deixou o Valhalla, por não aceitar sua condição e que acabou tornando-se amada de Oparg, não é?
- Sim. Mulheres geram guerras desde o princípio dos tempos. Com os deuses não foi diferente. E Oparg, antes de ser derrotado, escondeu Lineth. Apenas a Ordem do Dragão saberia sua localização exata. Por isso que Odin planejava reviver sua guilda, como você já sabe, desde que salvaram Oparg e Lineth.
Memórias recentes tomaram conta de Aislinn e Lisa. Mas o interesse pela história atual as fez ficarem quietas, para ouvir logo o que queriam: quem era aquele Leafar sacerdote?
- Oparg me contou desse plano de Odin. Para ter sucesso, o senhor do Valhalla precisaria de um descendente de Julian Belmont. Esse descendente faria renascer a Ordem do Dragão, encontraria Lineth e a devolveria para Odin. Preciso te dizer qual família de Geffen descende dos Belmont?
“Vocês” foi o que saiu fraco da boca da garota. Leonard e Margareth, únicos parentes vivos da linhagem Belmont.
- Odin faria a valquíria induzir meu filho a reviver a guilda. Meu filho seria uma marionete nas mãos dele, apenas para encontrar sua amante. Eu jamais permitiria isso. Jamais.
Margareth foi até o lado de Leafar e segurou a mão dele, quase chorando. Ele manteve-se silencioso, prestando mais atenção em Aislinn do que na mãe.
- Guiado por Oparg, eu fui até o Lago das Valquírias. Eu desenterrei o “diário de Julian” e copiei todas as informações dele. Então eu espalhei as páginas, que vocês tiveram que reunir depois.
- Então foi VOCÊ quem encontrou o diário e espalhou as páginas?
- Sim. Eu precisava de tempo para concluir meu projeto.
Sério, Leonard olhou para a esposa. Ela, parecendo entender o que ele queria dizer, foi até o quarto. Alguns momentos depois, retornou com um macacão de bebê. Seus olhos estavam marejados. Ela entregou a peça de roupa para Aislinn e começou a chorar, amparada por Leafar.
- Margareth – continuou Leonard – tinha dado a luz a Elessar, nosso primeiro filho. Oparg me alertou que Odin usaria ele. Eu não pude aceitar isso, mas não tinha recursos suficientes. Então eu “matei” Elessar, atirando-o de um penhasco a um rio. Com a ajuda de Oparg, porém, Odin foi ludibriado. Ele achou que a criança tinha morrido em uma queda d’água, mas Oparg guiou o bebê até as margens de um povoado, onde foi acolhido e adotado pela família Cerridwen.
- Eu... odiei o senhor e a senhora imensamente quando soube que Elessar era seu filho, e que vocês tinham se livrado dele assim. Ele já tinha morrido, nas mãos do Orc Herói, mas eu os odiei do fundo de minha alma por isso.
Ao citar o MvP, Lisa notou que Leafar tinha cerrado os punhos. Pelas formas de suas bochechas, era possível notar que ele tinha cerrado os dentes, contendo algum tipo de fúria. Pela primeira vez, a menina se assustou.
- Foi tudo calculado, Aislinn. Eu jamais mataria um filho meu, ou sequer lhe causaria algum mal. Oparg guiou Elessar até sua família, onde ele a conheceu, se tornou seu irmão e você, por fim, se apaixonou por ele.
A garota ficou ruborizada. Ninguém no mundo sabia dessa paixão secreta dela pelo irmão. Mas ao que tudo indicava, Leonard Belmont era um homem que conhecia todos os segredos - e mais um pouco.
- Margareth então ficou grávida de Leafar. Odin soube, e novamente preparou sua valquíria para induzir meu filho a se tornar sua marionete. Iria reviver uma honrada ordem do passado apenas para encontrar sua ex-amante. Quanto maior o nível de poder de alguém, mais tolas tornam-se suas guerras. Oparg me avisou dos planos de Odin, e realizamos o maior engodo dos últimos tempos.
Leonard fez um gesto para que os presentes o acompanhassem. Sem jeito, Aislinn deu a mão para Lisa, e as duas seguiram o arquimago. Leafar e Margareth foram logo atrás. Eles saíram da sala e foram para o laboratório de estudos, na ala oeste da casa. Enquanto Leonard movia as mãos, móveis eram rearranjados, como se estivessem liberando espaço para algum outro lugar.
- O Projeto 000, a esposa de Zenit, apresentou uma falha. Quando Lighthal morreu, na guerra, a mulher ficou louca. No começo ninguém deu atenção, até ela começar a matar algumas pessoas, sem razão aparente. Foi difícil, mas ela foi capturada e morta. O laboratório de Lighthal foi então lacrado. Seus experimentos foram colocados em modo de animação suspensa.
- Experimentos? – perguntou Lisa, olhando o arquimago mover uma pesada estante de livros apenas apontando o dedo para ela.
- Sim. Existiam guerreiros lendários no passado, como o Algoz Eremes Guile, a Arquimaga Katrhyne Keyron e o Lorde Seyren Windsor. Nosso bondoso doutor Zenit Zerter Lighthal clonou-os, como parte do Projeto Guardiões. Mas eles não estavam prontos. Ficaram guardados, até que se descobrisse um modo de curar sua anomalia.
Finalmente Leonard abriu caminho para uma pesada e maciça porta de pedra. Murmurou diversos encantamentos, que faziam um selo entalhado brilhar em diversas cores, em muitas intensidades. Aislinn reconheceu o símbolo da Ordem do Dragão como o tal selo.
- Um pesquisador depois do doutor Lighthal tentou continuar os estudos. Com base no Projeto 000, ele desenvolveu o Projeto 001. Seguindo o ideal da concepção do doutor, esse Guardião protegeria a Torre de Geffen. E tudo correu bem com ele por dez anos, até ele descobrir sobre Geffenia. Este Guardião, cujo nome se perdeu no tempo, a exemplo da amada do Doutor Lighthal, exposto a uma situação psicológica extrema, apresentou a anomalia. Ele invadiu as fundações da Torre de Geffen, e passou a proteger de maneira doentia uma provável entrada para Geffenia.
- O senhor então confirma que o Projeto 001 é o Doppelganger?
- Sim.
A pesada porta de pedra se abriu para cima. Um longo corredor foi iluminado por tochas, abrindo caminho para que eles caminhassem. Em silêncio, eles seguiram até chegar em um aposento grande, com tubos grandes, livros, anotações e muitas outras coisas típicas de um laboratório. Lisa novamente reparou em Leafar, e viu que ele parecia extremamente desconfortável de estar ali.
- Com o apoio de uma certa corporação secreta chamada Rekenber, eu consegui o material necessário para repetir o experimento do doutor Lighthal. Protegido dos olhos de Odin por Oparg, me foi dada autorização para criar o Projeto 003.
Leafar deu um passo a frente. Envergonhado, sentou-se em uma cadeira, do lado de um tubo grande, onde um líquido borbulhava. Cabia uma pessoa de pé ali dentro. Alguns fios boiavam dentro desse líquido. Sua voz, tímida, saiu de sua boca, baixa.
- Eu estava tendo aqueles sonhos estranhos. A valquíria aparecia neles, me mostrava a guerra do passado, a morte do tal Julian Belmont... me mostrou muitas pessoas que eu devia encontrar... e me disse que eu deveria reviver a Ordem do Dragão, a pedido de Odin, para que a Paz tivesse uma nova aliada na guerra contra o Mal. Eu achei isso nobre e gostei da idéia.
Leafar se levantou e olhou para o tubo. Na parte de dentro, as marcas de seus dedos faziam despertar memórias desagradáveis. Com um suspiro, ele encostou uma das mãos no vidro, falando sem olhar para trás.
- Eu tinha me despedido da minha mãe, pronto para me tornar um espadachim. Mas meu pai pediu para eu vir até aqui antes. Ele precisava me mostrar algo antes de eu partir. Eu já estava vestido como Aprendiz, era só sair de casa. Mas ele me pediu para entrar nesse tubo e colocar aquela máscara.
No alto do líquido, uma máscara bucal flutuava, presa por um tubo. Leafar parou de falar, com os olhos marejados. Leonard apertou o ombro do filho, como se passasse força para ele, e voltou-se para Aislinn.
- Coloquei meu filho em animação suspensa, exatamente como estavam os clones de Seyren e Eremes, e todos os outros heróis copiados por Lighthal. Fiz então um Simulacro dele, o Leafar que vocês conheceram, que se tornou seu fundador e líder. Para vocês e para Odin, o líder Dragão Dourado; para mim, apenas o Projeto 003.
Leafar continuou de costas. Com dor, lembrou-se do tubo enchendo-se de um líquido viscoso e dormente. Lembrou do desespero de quando seus pulmões ficaram cheios com aquela substância, e das pancadas no vidro, tentando sair dali, até apagar completamente. Não conseguia se virar, com uma vergonha inexplicável. Leonard não evitou que uma lágrima escorresse de seu rosto, e concluiu sua explicação para mãe e filha ali presentes.
- Para tentar evitar a anomalia, incluí um senso de humor descabido nele. Se ele risse das coisas, não sofreria pressão psicológica que o alterasse. Mas, bem... não sou deus. – Leonard sorriu entristecido – O choque de ter visto um pai de família morto por um ladrão que ele não prendeu despertou a anomalia. E a exemplo do Doppelganger, o Projeto 003 estava se tornando um MvP. Foi quando vocês interferiram e mataram ele.
Lisa andou até Leafar e puxou a mão dele. Ele olhou de lado para a menina.
- Por isso que você... quer dizer, meu outro pai, o de mentira, não virou sacerdote? Por que você estava lá?
- Na verdade, - falou Leafar - eu despertei há pouco tempo. Meus pais não me esconderam essa história, e fiquei bem abalado. Só consegui encontrar paz na igreja. E se meu “outro eu” me encontrasse lá... bem, eu provavelmente estaria morto agora.
O silêncio pesou. Morto? Leafar não estava morto? Para cada uma das cinco pessoas ali presentes, essa era uma pergunta sem resposta. Quem era Leafar, afinal? O simulacro que tinha vivido uma vida, que se casou com Aislinn e adotou Lisa? O cavaleiro que reviveu a Ordem do Dragão? O filho que desafiou os pais no passado? Ou o sacerdote confuso?
Foram minutos no mais completo e absoluto silêncio. Nem quando estava desabitada aquela câmara tinha sido tão fúnebre. E em meio a esse clima duvidoso, Leafar sentiu um toque delicado em seu ombro. Voltou-se para ver quem era, e notou a Sábia na sua frente, de olhos lacrimejados.
- Eu... sinto muito...– disse ela, com um tom sincero.
- Obrigado... eu não sei o que fazer, não sei ser como ele, não sei como agir.
- Apenas seja você mesmo, Leafar. Bem-vindo à vida... amigo!
Os dois se abraçaram, sem choro e sem dor, de olhos fechados e um sorriso nos lábios. Leonard e Margareth se aproximaram, emocionados, e abraçaram os dois também. A pequenina Lisa pegou o Rosário e murmurou o final de uma oração da qual tanto gostava.
- E deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas.