As Crônicas de Gru (parte II)

“Aqui entre nós, somente Strilg Pirgenti tem noção da imensidão desses inesquecíveis acontecimentos. Embora ele fosse apenas uma criança que acompanhava os pais num resgate de corpos, teve maturidade suficiente para ver e entender toda aquela chacina desmedida. Quando reconto o episódio relembro o cheiro acre e ácido no ar. O cheiro ferroso do sangue, o odor podre da carne decomposta. Lamentável toda aquela perda... todos os amigos, parentes e pessoas conhecidas... mas ao que tudo sempre indica, de outra forma não haveria de ter sido. Quantos não são os caminhos dessa vida? Alegrias e tristezas sempre rentes à realidade de se viver. Essa oscilação constante de saúde e morte faz-me ainda penar. Mesmo depois de tanto tempo ainda continuo a lamentar por isso... não, realmente ainda não me acostumei. Muito me espanta quantos de vocês ainda duvidam desse meu relato. Quantos de seus parentes e amigos não se foram naqueles dias? Quantas não foram as famílias perdidas no tempo, condenadas a vagar pelo nada piedoso esquecimento? Hoje ao menos temos companhia dos forasteiros do distante reino de Terra. Rogo para que, ao menos eles, dêem a devida atenção para essa verdadeira história. Espero que um dia esse relato valha para alguma coisa. Na verdade até sinto isso. Aprendi a ouvir aquela voz que sussurra dentro de meu peito. Aprendi a sentir e a entender alguns dos indícios da vida. Aprendi isso e muito mais com o Herói, aquele sábio homem. Prestem muita atenção ao que vou lhes contar, até porque – queridos visitantes – o protagonista dessa aventura veio também de vosso reino. E muito contou-me de lá. Esse homem – graças às forças divinas – fez o favor de mudar o curso de nossa história. Se cá estamos hoje – bebendo nessa taverna, longe das muralhas da grande cidade, despreocupados das habituais, mas obsoletas ameaças – é tudo graças a ele. O mais bravo entre todos os guerreiros que já existiram, o homem entre os homens por todos os nove cantos do Multiverso. Homem sem igual que, por mais extraordinário que fosse, nunca destratou um outro digno de respeito. Generoso, honesto, de humildade sem igual, valoroso, destemido, mais sábio que todos os sábios reunidos em conselho, o proclamador da temperança, nosso único e singular herói. E minha eterna gratidão ele sempre haverá de ter. Em todas minhas possíveis horas para oração, volvo parte destas preces à sua pessoa. Devo-lhe minha vida e grande parte de meu conhecimento e prática. Se hoje – beirando o fim dos meus agitados dias – fui um homem justo e digno de respeito, tudo devo por um dia ter cruzado meu caminho com o dele.

Mas chega de delongas, vamos direto aos fatos, nossos novos amigos visitantes não viajaram de tão longe para nada.

Quando eu era um jovem – um recém adulto – e Strilg era apenas um garoto, nossos reinos estavam abalados. Como sempre, vivíamos os dias de agonia causados pela ganância dos seres. Assim como em vosso reino existe a ânsia pelo poder, aqui também encontramos esse tipo de infelicidade. Como já devem ter sido informados, hoje, possuímos um rei único para todos os três reinos aqui no continente de Trínah. Não era bem assim no princípio da história que vou lhes narrar. Naquela época todos os três reinos de Trínah estavam sob constantes ataques dos povos das ilhas do sul – um grande aglomerado de ilhas esparsas onde vivem ainda hoje os Athanuls: o povo guerreiro do sul. Os três reis dessas nossas terras, depois de séculos de guerras entre si, finalmente em prol de um bem comum, uniram-se contra as invasões estrangeiras depois de assinarem um acordo de paz. Muitos e muitos anos se passaram e as invasões se estenderam pelos séculos. Às vezes chego a pensar se o que nos aconteceu não foi apenas um castigo divino por todas as atrocidades que cometíamos. Existem muitos assuntos envolvidos por trás de toda essa guerra; conspirações, guerras internas, traições e etc. – acreditem-me, vocês não gostariam de viver aqui naqueles dias – mas o mais importante de tudo isso foi como ela se resolveu. Há quase um século atrás, o confronto se cessou repentinamente, praticamente de um dia para o outro, como se nunca tivesse se iniciado. Nossos exércitos estavam preparados para um enorme combate que aconteceria num daqueles dias. Os Athanuls já haviam alcançado nossas praias ao sul e ao leste e estavam agrupados aos milhões para finalmente tomarem nosso território. Embora tivéssemos a vantagem geográfica, nada garantia que venceríamos aquele embate. Nossas tropas se espalhavam por todo o continente, agrupadas estrategicamente para deter e dizimar o inimigo. Igualávamos em número e poder de combate, mas os Athanuls eram conhecidos por nunca morrerem sem antes matar três dos nossos. A história do “três por um” correu nosso continente – espalhando-se como o vento – desencorajando muitos dos nossos homens. Pois então, num único dia – mais precisamente da noite para o dia – tropas inteiras começaram a desaparecer. Milhares de homens simplesmente sumiram. Os aliados dos nossos três reinos – mais conhecidos como Tríade de Trínah – foram sendo obliterados um a um. Milhões desapareceram naquela única noite. Dois terços da tríade foram dizimados, mas isso só ficamos sabendo posteriormente. No início, as notícias vinham por mensageiros chegando de todos os lados. Todos traziam as mesmas novas: “as tropas não estão mais lá”. Os mensageiros repetiam seus relatos minuciosamente. Todos eles vasculhavam o entorno dos acampamentos onde antes havia milhares de homens e nada encontravam: “Não deixaram vestígios, nada...” Toda a ilha de Trínah abateu-se temerosa e as péssimas notícias não paravam de chegar. Primeiramente estávamos desesperados, imaginando como morreríamos facilmente nas mãos dos estrangeiros por falta de protetores. Acreditávamos que nossas tropas estavam sendo massacradas pelo próprio inimigo, não pensávamos de outra forma, não fazíamos ideia. Havíamos perdido os melhores guerreiros dos três reinos, estávamos fracos, indefesos. E esse pensamento não era só nosso. As ilhas do sul recebiam as mesmas informações sobre nossa condição. Apressaram-se a reunir o total de seus homens combatentes agrupados em nosso litoral e mandá-los todos de uma só vez numa única investida para, por fim, tomarem todas as nossas extensas terras.

O que ninguém imaginava era aquilo que estava por vir. Nossos mensageiros relataram que em nossas praias, sequer um só ponto de toda a costa sul e da costa leste estava desprovido das embarcações inimigas. Que os guerreiros do sul contavam com mais homens do que um dia houve nessas terras... Imaginávamos, inevitavelmente, um fim rápido e indolor. Da costa até o primeiro dos nossos reinos – o mais ao sul – eram exatamente três dias de caminhada em marcha lenta, mas ao fim do terceiro dia, quando todos já rezavam aos deuses por suas almas, nada, absolutamente nada aconteceu. E, do cair da noite anterior até o alvorecer do outro dia, todos os sons se cessaram. Todos os invasores haviam também sumido...”

Pedro HD Delavia
Enviado por Pedro HD Delavia em 27/05/2011
Reeditado em 12/09/2011
Código do texto: T2997546
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