Passageiro
Gritos, eloquência, confusão de sentimentos e sensações. Depois daquela viagem aquele transporte universitário nunca mais foi o mesmo.
Era uma noite comum. Todos os estudantes corriam para alcançar o Psicodélico – era assim que eles chamavam aquele ônibus, o último a partir. Não se sabe ao certo se havia mesmo alguma coisa que causasse alucinação dentro daquele coletivo aparentemente normal.
O ônibus saiu de seu ponto inicial com 23 passageiros. Quando o transporte universitário estava saindo, um outro aluno chegou, Wagner. No ponto seguinte entraram dois alunos que haviam desistido no semestre anterior: Keila e Ygor.
A condução possuía 44 lugares, 26 passageiros estavam no ônibus. Então, como explicar o fato de todos os assentos estarem ocupados?
André, por exemplo, sempre solitário, sentou-se no fundo do ônibus, nenhum colega o acompanhara, mas ele não estava sozinho. Beatriz teve a mesma sensação, embora não estivesse vendo ninguém ao seu lado.
Cadu, Daniel, Elvis, Fábio, Gabi, Hilda e Ivete costumavam cantar na viagem de ida para a faculdade. No entanto, estavam todos sonolentos. Júlio como era de costume puxou uma marchinha dos velhos carnavais:
__ “Tanto riso, oh! Quanta alegria, mais de mil palhaços no salão...”, Lara pediu silêncio.
Inacreditavelmente não se ouvia nenhum som de dentro do Psicodélico. Embora o motorista estivesse conduzindo o ônibus, não havia no semblante daquele homem nenhum resquício de vida.
Por alguns instantes teve-se a impressão de que todos estavam dormindo. Os passageiros não se moviam, estavam num completo silêncio.
A garota que estava no primeiro banco soltou um berro estrondoso de prazer. Os garotos esportistas estranhamente se acariciavam. Alguns casais de namorados inexplicavelmente trocaram de parceiros. Bom, pelo menos o silêncio acabara de vez. Todos riam, enquanto suas mãos procuravam o corpo do mais próximo, proporcionando intensas sensações. Alguns dançavam, num movimento descoordenado. Não pareciam exatamente felizes.
Menezes, Nira, Otávio, Pietra, Quênia, Raquel e Sandro colocaram as cabeças para fora do ônibus, cantavam uma música estranha, num idioma não identificado. Um outro fato curioso: eles se comunicavam numa língua diferente, nunca antes usada.
Uma garota sempre muito calada, de repente subiu no mais alto dos assentos do ônibus, passava uma brisa suave entre seus cabelos e a estudante começou a tirar seu agasalho, de modo que Túlio, Ubiratajara, Vênus, Xaiane e Zôhar pararam para olhar. Assim que tirou a primeira peça de roupa, que se seguiu de um balanço mais que peculiar, as outras meninas se animaram. Antes de se despirem completamente, soltaram algumas frases incompreensíveis.
Os rapazes não se intimidaram com a ousadia das garotas e também tiraram suas roupas.
Então, os estudantes daquela distinta universidade estavam ali, no Psicodélico... todos dançando, cantando, nus, trocando carinhos cada vez mais íntimos.
A garotada do Psicodélico estava irreconhecível. Dois estudantes do curso de Gestão Ambiental rastejavam pelo corredor como serpentes demoníacas, enquanto uma linda jovem do mesmo curso desenhava várias florezinhas coloridas no rosto de uma outra garota.
O clima de euforia e sedução tomava conta do coletivo e toda a intensidade dos momentos vivenciados pelos universitários era no mínimo inspiradora.
De repente, surge um dos inspetores da universidade – ele estava sentado num dos assentos da frente. E lá vinha ele com as mãos na cintura, rebolando tal qual Carmem Miranda e em vez de trazer nos cabelos frutas tropicais, suas poucas madeixas estavam enfeitadas alguns lápis e canetas. Assim como as outras pessoas, o funcionário estava despido de roupas e de vergonha.
O ônibus parou! O apático motorista, um homem sem atrativo, saiu da cabine e voltou-se para dentro do ônibus. Duas estudantes abraçaram-no. A mais audaciosa puxou-o pelo cabelo, de maneira que o rosto dele era envolvido entre os seios da jovem.
Não se sabe ao certo quanto tempo o ônibus ficou parado, nem se o motorista estava consciente dos fatos que ali aconteciam.
A agitação que vinha de dentro do coletivo aparentava uma superlotação do veículo. No entanto, já era sabido que havia 26 passageiros e agora com o motorista contabilizavam 27 pessoas.
Subitamente estavam todos novamente adormecidos, com exceção do motorista – para ele era a primeira vez. Era um amontoado de pessoas sem roupas. A maior concentração estava no corredor; poucos ocupavam ,agora, os assentos. Ah! O motorista continuava em êxtase entre os seios da estudante,e o seu semblante aparentava vida, expresso em um risinho cafajeste no canto da boca.
Diante daquela situação, confesso que fiquei eufórico. Não era bem o que eu havia planejado, meu plano era bem mais modesto.
Desculpe-me, querido leitor, eu pensei em lhes contar essa história sem que fosse preciso revelar minha identidade, mas agora não tenho escolha. Recordo-me do momento exato em que me propus a mudar os rumos daquela viagem.
Eu cheguei ali um pouco antes do anoitecer, entrei devagarzinho. Poucos sentiram minha presença, no entanto, logo se acostumaram. Naquele dia, eu passei por pelo menos quatro Estados de nossa Federação, do Pelourinho ao Cristo Redentor. Quando o dia estava se despedindo passei entre os charmosos prédios da Avenida Paulista, e ali pertinho estava o psicodélico, onde me instalei para passar à noite na companhia de jovens estudantes.
Como eu estava quietinho no fundo do coletivo, aproveitei para observar os passageiros. Notei que eles mal se cumprimentavam, alguns pareciam se incomodar com qualquer manifestação de alegria, talvez estivessem cansados de um dia estressante, apenas suposições.
O fato é que resolvi interferir na ordem natural das coisas. Agir com a intenção de ajudá-los, aproximá-los mesmo, sabe?
No começo, até achei legal, eles estavam se divertindo. Entretanto a animação tomou proporções inimagináveis e eu perdi o rumo da situação.
Então, fiz com que todos voltassem ao estado de repouso, refleti longamente se eles deveriam lembrar ou não do que havia acontecido.
Por fim, decidi deixá-los a par do que fizeram, porque ao contrário do que deixei transparecer, todos sabiam o que estavam fazendo. Eu utilizei um método ilusório, com função puramente estimulante.
Assim, quando os estudantes e o motorista acordaram e se entreolharam, voltaram aos seus lugares. Todos conversavam uns com os outros, como nunca antes, falavam do trânsito, futebol, novela, noticiários, assunto agora não lhes faltava. Os amantes das marchinhas carnavalescas cantavam com empolgação. Enquanto isso, vestiam suas roupas com naturalidade.
No ponto final eu até fiquei feliz, pois parece que alcancei meu objetivo, mesmo que seguindo por caminhos tortuosos.
Tenho que me despedir, agora, pois amanhã acordo cedo. Vou fazer uma entrega lá para os lados do Maranhão. Neste serviço penso em me portar como redemoinho, imponente e veloz. Se bem que uma ventania cairia bem, uma alma feminina. A propósito, naquela noite, no ônibus eu estava na realidade quase que imperceptível, não sei se irá se lembrar, amigo, mas eu fora aquela brisa suave que soprava ,dentro do Psicodélico, nos cabelos da jovem desinibida.
Sou assim, sou ar em movimento, calmo e suave na pele de cada ser, ou mudanças, ou tormento, reduzo pedras a pó, de grãos de areia faço montanhas, giro as vidas, dou vidas às letras, inspiração às faculdades mentais, tudo em constante movimento: eterno passageiro.