O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – Penúltimo
O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – Penúltimo
Rangel Alves da Costa*
Com um tornozelo machucado pelo tombo que tomou e impossibilitado de se levantar pela pressão do pé de Paulo nas suas costas, o jardineiro batia suas mãos no chão implorando que o levantasse que contaria tudo.
"Eu conto, eu conto tudo, me levante daqui que eu conto tudo!". E chorava, choramingava e esperneava, batendo os pés e as mãos pelo chão em total desespero.
Então Lucinha, ainda com ar da menina linda mais triste do mundo, se aproximou das plantas, flores, bichos e dos visitantes que ainda restavam ali, agora como se estivessem fazendo uma fantástica cobertura jornalística, e perguntou se eles aceitavam que levantassem o jardineiro.
Como não houve consenso de jeito nenhum e o girassol percebeu que se a menina fosse abrir a boca para resolver o impasse iria contrariar uma turma, pois certamente ela optaria pela forma mais humana de se tratar o desventurado homem, então interveio e disse que nada mais justo que o pai de Lucinha, que estava tendo trabalho para manter o homem estirado no chão, decidisse o que seria melhor.
Chamado a decidir, não durou nem um segundo e Paulo pediu à filha que lhe trouxesse imediatamente umas cordas bem grossas. Em cinco minutos o homem já estava com as mãos amarradas para trás. Foi levantado e em seguida colocado sentado numa cadeira no meio do jardim, tendo mais cordas entrelaçando seu corpo à madeira, de modo que só podia fugir correndo sentado, e levando consigo cadeira e tudo.
Parecia cena de circo romano, porém somente com a fera exposta ao público admirado. Com efeito, as mais inimagináveis experiências comportamentais passaram a ser vistas nos instantes que antecederam o interrogatório.
A margarida e a violeta sumiram por instantes e voltaram com vestidos rendados, um perfume muito mais forte e que certamente não era o delas, batons e cosméticos dando uma tonalidade extravagante às pétalas, com sombrinhas e bolsinhas importadas dependuradas. Os cactos estavam visivelmente bêbados, ameaçando castigar o amarrado a qualquer instante.
A gardênia surgiu de mãos dadas com o antúrio e muitos afirmam que já estavam aos beijos e abraços. Formigas começaram a andar em fila rumo ao local onde estava sentado o jardineiro, e todas as vezes que este baixava os olhos e via as danadas quase ao seu alcance, pedia para que deixassem ele falar logo, senão seria certamente comido pelos insetos devoradores.
E havia coisas acontecendo que de tão aberrantes é melhor ficar somente na imaginação. Percebendo que as formigas já estavam subindo pelos sapatos do homem, Paulo jogou sobre ele um balde de água e deu a ordem para que começasse a falar. Mas quando o homem já ia abrir a boca, Lucinha se adiantou, ficou à sua frente e falou:
"Tirando o que você fez com a estrela-de-fogo, acredito na sua inocência. Mas não me cabe julgar os seus atos. Agora você vai ter que provar que é um homem bom como sempre demonstrou ser. Não vai mentir porque sabe que sua mentira só tem efeito para os humanos, para você mesmo, para o meu pai e para mim, mas nenhum valor terá perante todas as outras espécies que são do jardim ou estão aqui. As plantas, as flores e os bichos e tudo o mais, conhecem a mentira antes da palavra ser dita. E se você insistir em mentir sabe muito bem o destino que terá. E era só isso que eu tinha a dizer, agora prossiga".
Mas o jardineiro só conseguiu falar quando cessaram os inúmeros vivas e aplausos para a menina, que depois das se pôs a continuar tristonha num canto ao lado do seu pai.
Então, entrecortado por lágrimas e até soluços, não se sabe se falsos ou verdadeiros, o jardineiro começou a dar suas explicações:
"Ter um jardim só meu sempre foi o que mais quis na minha vida. Eu haveria de conseguir brevemente se desse certo as experiências com a troca de óvulos das plantas floridas que eu vinha fazendo. Eu misturava os óvulos de diversas plantas, que extraía sem que elas percebessem, e colocava as células para germinar numa outra planta, que eu mantinha escondida, de forma que esta pudesse produzir novas espécies de flores, que eu venderia para a máfia das flores. Mas não consegui levar adiante as experiências nem o comércio lucrativo porque fui descoberto pelas malditas rosas..."
E todos que ouviam tais confissões estavam de bocas abertas, espantados, sem reações diante desses absurdos. Mas ficariam ainda mais.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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