Absinthe - Reflexões
Absinthe - Reflexões
por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)
Absinthe é uma série de contos sobre literatura. Olive Green é um escritor amador em busca de sua primeira publicação, porém tem um problema muito grave com o Absinto, que o transporta para dentro de livros e histórias. Neste conto, acompanhe Olive em uma de suas piores alucinações.
…
Por que a ruína vem na cor verde? Este destilado feito da Artemisia absinthium entrou na minha vida por substituição ao Gim, bebida esta que eu nunca deveria ter largado em favor da fada verde que mostrou sua verdadeira face de succubus para mim.
Meu nome é Olive Green, mas pode me chamar de lixo, pois é isso que me torno toda vez que bebo do absinto, o que não é com parcimônia e muito menos com raridade. Eu fui capaz de ver a face de D'us e a loucura me possuiu. Tenho passado mais tempo sob os braços de esmeralda da bebida do que em frente a minha Olivetti, passaporte para o meu mundo real, o mundo que Olive Green deseja.
Sinto graça de meu segundo nome. Parece que meu destino já estava selado no meu nascimento. Green. Poderia papai imaginar que seu filho se tornaria o que se tornou? Talvez sim, caso contrário não teria se matado. É claro que os motivos eram outros, mas talvez inconscientemente ele sabia que a condenação de seu primogênito era certa e não queria poder viver para presenciar.
Deitado em minha cama, dentro em meu quarto, presencio o líquido verde em cima do gaveteiro escorregando pelo gargalo da garrafa de encontro ao chão. Derrubei conscientemente o vasilhame para que minha culpa escoasse pelo chão e encontrasse abrigo nas frestas do taco junto com o absinto. Há um bom tanto na garrafa, porém me falta coragem para levantar do abrigo depressivo que criei debaixo de meu cobertor e derrubar de vez essa ferramenta dos covardes.
Uma lágrima cor de esmeralda desce pelo meu rosto.
Começo a lembrar de toda a dor que senti por causa dessa maldição imposta por mim mesmo. Certa vez bebi tanto que achei que o próprio Edgar Allan Poe me servia o absinto, toda vez que enchia meu copo ele dava um sorriso e declama um verso de sua autoria. Quando no final da noite ele terminou a última frase dO Corvo, seu sorriso tornou-se sombrio e pude sentir as garras geladas de Uriel se enroscando no meu pescoço e sussurrando em meu ouvido que logo mais eu me juntaria ao Criador.
No dia posterior minha cabeça pesava e minha consciência mais ainda. No dia anterior eu me casaria, porém me esqueci. Até hoje não tive coragem o suficiente de olhar na face de minha doce Camille e dizer o quão idiota sou por ter perdido ela, que talvez seja a única felicidade verdadeira que eu encontre na minha vida.
Da porta aberta de meu covil posso ver meu escritório com a Olivetti empoeirada e uma pilha papéis idem. Qual será o item que estufa meu interior de letargia me atando a essa cama, vendando meu olhos do mundo e entorpecendo minha mente contra a realidade. Talvez eu seja verde por dentro e não saiba.
Minha mão alcança o criado-mudo e puxo meu cachimbo feito de briar. Um amigo de minha confiança me entregou um pouco de uma erva de origem mexicana conhecida como Salvia Divinorum, protegida em uma antiga caixinha de rapé que agora pousa em minha mão alentando meu desejos. Abro com cuidado e admiro um triturado de folhas de cor verdes escuras. Verde. A cor deveria ser um alerta para mim, mas ignoro solenemente tal aviso e passo a socar a erva dentro do meu cachimbo.
Com a ajuda de um fósforo aos poucos a erva é queimada enquanto a fumaça sobe em um dança hipnótica. Seguro a respiração com a Salvia dentro de meus pulmões se debatendo para sair. Ao final solto uma coluna branca. Minha mente se transporta para algum lugar que não compreendo, de repente começo a me ver como se tivesse fora de meu corpo. Uma batida insistente de tambores ecoa pelo meu quarto e tudo fica verde. O resto que sobrou do absinto na garrafa tombada ganha uma luminosidade encantadora. Vejo-me levantando da cama em direção a fada verde. Tento gritar mas não consigo ouvir a mim mesmo. Logo meu corpo destituído de meu fraco espírito bebe de uma vez só o que restou do absinto.
Sinto uma corda passando pela minha cintura e me puxando da realidade. Passo por um túnel cintilante cor esmeralda e atinjo o chão pesadamente. Estou em um campo aberto com a grama a me beijar os pés, ao centro um pedestal com um livro enorme de capa cor de jade. A curiosidade é maior que qualquer medo que eu poderia sentir, logo estou na frente do livro ansioso por abri-lo, porém o título me prende os olhos. “A tragédia de Olive Green”. Caio ajoelhado em frente ao pedestal, minha vontade é de gritar aos céus: Por que fizeste um veneno tão doce?
Tenho certeza que se eu fizesse tal pergunta eu acharia a resposta dentro de mim mesmo e esta não seria tão boa de ouvir. Ergo do gramado e fito o volume na minha frente, abro com cautela a capa e vejo minha vida.
As injúrias na escola, a separação de meus pais, a falta de amor de minha mãe, a morte de meu pai... Está tudo lá, em detalhes com letras perfeitas para que ninguém tenha dúvida de quão sofrida foi a vida de Olive Green. Da falta de amigos na escola onde todos caçoavam de mim, até os problemas mais recentes com dívidas e falta de amor por mim mesmo.
A respiração fica pesada, o ar caudaloso e meus sentidos torpes. Será que não consigo encontrar a alegria nestas tristes páginas? Algo me ocorre. Talvez nos capítulos finais eu possa ver o que me tornei, afinal a adversidade é a mãe dos sucedidos. Um sorriso bobo brota de meu rosto enquanto procuro o capítulo final de minha tragédia, quando eu o acho o livro me suga para dentro de suas páginas.
Abro meus olhos com calma e vejo que o cenário mudou. As nuvens cinzas preenchem o espaço dando um ar soturno a tudo. A grama já não é tão viva e onde estou nem tão aprazível. É um cemitério. Em meio às lápides dois coveiros trabalham em um túmulo recém aberto, ao lado deles um caixão pobre espera por sua última morada. A tristeza da situação sem parentes ou amigos me compadece de prestar o último adeus ao indigente sendo enterrado.
Aproximo dos trabalhadores e estes nem notam minha presença. Procuro a lápide para saber o nome do morto e encontro meu terror: “Aqui jaz Olive Green. Encontrou na garrafa sua melhor companhia”.
Não consigo sentir as pontas de meus dedos. Minhas pernas tremem involuntariamente. Aproximo do ataúde que marca meu fim e abro a tampa. Sou eu. Um pouco mais velho, com alguns grisalhos e pouco cabelo no topo da cabeça. Visto um terno escuro com uma gravata verde, em minha mãos seguro uma garrafa de absinto. Choro a angústia de saber que D'us não poderia permitir que alguém participasse de seu próprio enterro. Agarro meu cadáver pelo colarinho e bato fortemente sua cabeça contra o esquife de madeira gritando a dor de estar morto.
O cadáver abre os olhos.
Levanto assustado e começo a andar de costas tentando fugir da situação que eu criara, o eu-defunto se levanta também e segue em minha direção com um sorriso macabro me oferecendo um gole de seu absinto.
Não vejo uma cova aberta atrás de mim e acabo caindo dentro de um caixão vazio. O eu-morto aparece logo em seguida e joga a garrafa sobre mim, logo em seguida fecha o ataúde com pesados pregos. Eu não reajo. Conformo-me com minha morte e o som de terra que bate contra o esquife me embala no meu sono eterno.
…
Acordo com dores fortes no corpo. Olho para os lados procurando saber onde estou. Vejo meu cachimbo ainda aceso sobre meu criado-mudo e uma garrafa de absinto em minhas mãos. Jogo longe o vasilhame enquanto ainda trôpego me dirijo até minha salvadora Olivetti.