Absinthe- O Corvo
Absinthe é uma série de contos sobre literatura. Olive Green é um escritor amador em busca de sua primeira publicação, porém tem um problema muito grave com o Absinto, que o transporta para dentro de livros e histórias. Neste conto, acompanhe as traduções de O Corvo, de Edgar Alan Poe, por Machado de Assis e Fernando Pessoa.
Absinthe – O Corvo
por Pedro Moreno
Quando a primeira fagulha de sol atinge meus olhos ainda fechados começo a me arrepender da noite passada. Confiro que estou no meu quarto, o que já é bom, afinal nem tenho ideia de como consegui voltar. Uma queimação no estômago me diz o quão importante é ficar de longe da fada verde hoje, por via das dúvidas nem sairei de casa.
Arrasto-me com dificuldade pela casa, chuto algo e quando me abaixo para pegar minha cabeça pesa. Ao menos achei meus óculos, quando os ponho no rosto sinto o aro pesado afundando no meu nariz e comprimindo minha cabeça, a boa notícia é que não enxergo mal por causa da ressaca, e sim por falta de óculos.
Entro no escritório me deparo com minha algoz e salvadora: A máquina de escrever. Com uma folha presa, escrita pela metade, com cara de deboche, como se dissesse que eu não sou capaz. Mal sabe você Sra. Olivetti Lettera que Olive Green não tem medo de nada.
Com a sagacidade de um leopardo eu me atraco com a maldita e começo a escrever. Conforme as teclas descem as alavancas sobem imprimindo as letras sobre o papel empoeirado, aos poucos minhas palavras desconexas ganham um sentido maior, nada tem o poder de me parar. O tamborilar das teclas ganha velocidade. Quando termino a página contemplo o trabalho bem feito. Pouso sobre as demais já escritas e abro a gaveta em busca de uma nova folha.
Merda...
Há uma garrafa de absinto dentro da gaveta. Fecho o móvel com rapidez e tento me controlar. Deixo meu olhar penetrando na máquina para perceber que ainda não a alimentei com uma folha nova, é preciso tomar coragem para não tomar o absinto.
Conforme a gaveta abre devagar o líquido verde da imaginação começa a aparecer, logo abaixo as folhas que tanto preciso. Retiro a garrafa e pouso sobre a mesa, com o cuidado de alguém que trabalha com ácido, pego algumas folhas e as deito sobre o tampo de madeira.
Sinto o chamado da fada verde.
Há o suficiente na garrafa para um copo, dificilmente faria mal. Sem nem pensar tomo o líquido em um só gole. Com a bebida azeitando minha garganta, pego o papel e passo pela minha velha Olivetti. Espero a imaginação vir e quando esta aparece desato a escrever como se minha vida dependesse disto. No meio do texto surge uma dúvida. Levanto de minha cadeira e já sinto a bebida a me pesar no intelecto, do lado de fora uma noite agreste, em meu colo uma lauda antiga de ciências ancestrais.
Subitamente uma batida em minha porta, de mansinho, logo pensei “Deve ser uma visita e nada mais”. Ergo meu corpo já lento, fatigado pelo ar frio de dezembro, beirando meus umbrais abro a porta e me deparo...
– Prazer, sou Fernando Pessoa, e digo mais!
Um homem português cheio de facetas parado em meus umbrais. Perguntei logo o queria tal lusitano, se demorasse na resposta que saísse e não voltasse mais.
Outra batida na porta nos desperta da realidade, o homem chamado Fernando responde:
– "Senhor", ele disse, "ou senhora, decerto me desculpais, mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, que mal ouvi..." – nisso Pessoa abre a porta dando de cara para um senhor mulato de óculos e barba.
– “E abri largos, franqueando-os, meus umbrais. Noite, noite e nada mais.” – citou o homem entrando no aposento.
– Ora se não bem reconheço – começou Pesssoa – esse tal contista e cronista brasileiro, que agora está em pé nesses umbrais. É o grande Machado de Assis de nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Será que eu perdera a razão e agora os escritores são imortais?
– Calmo cara amigo – disse Machado – por acaso preferia que a porta escancarasse, e achasse a noite somente, Somente a noite, e nada mais?
– Ou que fosse o vento, e nada mais? – completou Fernando Pessoa.
Meu ar se tornou rarefeito, abri de súbito a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais, num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais, foi, pousou, e nada mais.
– Ah! Se não é ave estranha e escura fez sorrir minha amargura – disse Pessoa.
– Como te chamas tu na grande noite umbrosa? – perguntou Machado encarando a ave que negreja.
– Nunca mais. – respondeu o corvo.
Caso não bastasse dois autores mortos em meus aposentos, agora há uma ave mau agourenta insistindo que é gente e pondo-se a falar. Não devo tomar absinto. Tomarei nunca mais! Vendo que o pássaro.
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos – mortais todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
– Nunca mais! – responderam em uníssono Machado e Pessoa.
Maldita seja essa bebida! Que entorpece meu raciocínio e julgamentos tais. Será possível que ela me enreda em dificuldades mais? Já não consigo pensar direito e quando tento andar acabo caindo em meu umbrais.
Acordo depois de várias horas, abro meus olhos e não enxergo sequer Machado, sequer Pessoa. Um frio glacial corta pela janela, levanto para fechá-la e avisto um corvo, pousado em um galho como se dissesse “Nunca mais”.