Convenção de heterônimos

Pandora, a adolescente gótica é a primeira a chegar, olhos delineados de lápis preto, muita máscara nos cílios, rosto esbranquiçado pela pasta d’água usada como base e pó compacto, boca nua. Cabelos vermelhos encaracolados desgrenhados, franja caindo do lado esquerdo do rosto. Trajando cacharel vinho, calça de couro preta, sobretudo preto e coturno até a altura dos joelhos. Na altura do coração pendurada a cruz egípcia. Pandora com dezesseis anos de idade, com crise de identidade, debochada e analítica.

Cherry, mulher adulta, educada, executiva, independente, um pouco enjoada, é a segunda a chegar, tailleur grafite, maquilagem discreta, cabelos escovados, salto alto fino, tira da bolsa Prada palavras cruzadas para aguardar o início da convenção, apesar de ser discreta avalia o local em 360 º. E, olha Pandora com olhar de reprovação e torce o nariz. Ela tem quase 30 anos e considera-se auto suficiente.

Chega Maria, coitada, de jeans surrado, havaianas laranjas, camiseta de propaganda do vereador fracassado, unhas encardidas, calcanhar rachado, com duas sacolinhas plásticas de supermercado, uma com a marmita e o refrigerante de 2 litros e a outra com os carnês das prestações que terminou de pagar no Centro da Cidade. Maria tem mais de cinqüenta anos, tem um coração gigante e muito sofrimento acumulado.

Por fim, chega Libélula de rabo de cavalo e saias pregueadas, camiseta da escola e sandálias. Pouco desajeitada, tropeçando nos próprios pés e fazendo graça de si mesma. Equilibrando cinco livros, apesar de estabanada é extremamente estudiosa, CDF e líder nata, adora discursar nas convenções.

Às vezes é cabeça de vento, por perder as chaves de casa, casacos, cadernos, guarda chuvas, mas seu QI é acima da média, e sua idade é ainda pueril.

Heterônimos sentados em roda de ciranda, inicia a dinâmica:

Pandora: - Estou adormecida há muitos anos. O que está pegando? Qual é o lance? Que ventos me trazem aqui? Vamos terminar logo que eu estou com sono e quero hibernar como urso, ou melhor, como vampiro. Não se atrevam a me chamar de bela adormecida!

Cherry: – Tenho pilates daqui a pouco, e tempo é dinheiro, minha hora é cara, qual é o motivo da reunião?

Maria: – Jesus amado, minha Santa Margarida pelada! Aconteceu algo com Libélula? Diga bichinha, não se avexe não, seja ligeira.

Libélula: – Calma pessoas. Chegou o dia. Hoje é aniversário DELA, desejo presenteá-la de forma justa.

Pandora: – Idade de Cristo, como qualquer idade, e daí? Vai ter cerveja boa?

Cherry: – Não é isso garota, estamos falando da profecia das mutações heterônimas - diz olhando-a com desdenho de cima a baixo.

Maria: – Sei nada disso não! Vamos terminar logo com essa prosa que eu tenho feijão no fogo.

Libélula: – Hum... vou explicar Maria. Todo ciclo tem começo, meio e fim. Que tal recolher nossas ruínas e jazer os excessos? Ela está no centro do pêndulo... não houve mais as nossas vozes.

Pandora: – Você é patética, não vai sobrar nada de mim nela. Deixe como está. E qual é a nova? Ela ganhou um dicionário de rimas? - ironiza.

Libélula: – Estamos falando em homogeneidade heterônima. Osmose. Perderemos amplitude, força, seremos resquícios, recordações, e o que ela ainda considerar bom terá "valência dimensionada".

Pandora: – É como misturar todas as massinhas de modelar coloridas para transformar as cores no cinza, entendeu Maria?

Cherry: – Péssimo exemplo, cinza é cor sombria, gótica maluca. Maria vai ficar com os neurônios em pandemônios.

Maria: – ETA, não carece de brigar, sem pexera aqui! Eu acho que entendi, e gostei por demais. Não sou tão burra assim... Vamos nos fundir... vai sobrar muito de mim nela, ela adora cuidar da casa, da filha, adora cozinhar, tudo bem para mim.

Libélula: – É o ciclo da vida, o amigo imaginário vai embora quando acaba a infância. E nós morremos quando surge o padrão original, quando o poeta assume o seu verdadeiro eu - criando sua própria identidade, seja da década vivida ou do âmago, simples assim...

Cherry: - Todas nós estamos mescladas, fragmentadas e adormecidas, ninguém mais aqui é inteira. O que somos? Partículas, farelos ou fumaças?

Pandora: - A Patricinha disse a verdade. Já estamos todas mortinhas da Silva, só falta jogar uma terrinha em cima para oficializar - diz beijando a cruz egípcia, e deitando no colo de Maria.

Libélula: – Há tempos nossos conflitos a impediram de crescer, fizemos mal a ela. Fomos egoístas por acorrentá-la a nós.

Pandora: – Brincamos com ela de fantoche, só escrevia o que nós queríamos e quando queríamos, maldita obsessão!- fala em tom de arrependimento.

Maria: – Judiaram da minha bichinha, coitadinha. Assinemos o divórcio ligeiro, pegue o pergaminho e a pena.

Cherry: - Agora o capitão da embarcação assume o leme...

Libélula: – Sim, vamos deixar ela ir embora levando consigo só o melhor de cada uma de nós!

Sheila Gomes de Assis
Enviado por Sheila Gomes de Assis em 18/07/2010
Reeditado em 18/07/2010
Código do texto: T2385473
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