Absinthe - A Divina Comédia

Absinthe é uma série de contos sobre literatura. Olive Green é um escritor amador em busca de sua primeira publicação, porém tem um problema muito grave com o Absinto, que o transporta para dentro de livros e histórias. Neste primeiro conto, acompanhe Dante Alighieri em A Divina Comédia.

Absinthe - A Divina Comédia

por Pedro Moreno

Acordo cansado com a cabeça doendo e o mundo girando debaixo de minha cama. A luz já cobre meu corpo adormecido com as roupas do dia anterior, o sol parece querer me ferir os olhos vermelhos carmesim. Demoro para conseguir levantar e o dobro de tempo gasto para chegar na pia. Meu rosto envelhecido pela vida boêmia recebe água fria para despertar. Em vão. Minha mente entorpecida prega peças com o ambiente, quando olho para o escritório, sinto que as leis da perspectivas foram revogadas.

O mal tem nome: Absinto. Cansado de beber gim que a cada dia que passava estava mais fraco para o meu paladar, o balconista me ofereceu uma bebida feita de uma erva conhecida por losno e com gosto de anis. Sua graduação alcoólica altíssima ajuda a esquecer meus maiores problemas.

Pena que esta bebida mexe com meu raciocínio de tal forma que eu nem me apresentei. Sou Olive Green, escritor em busca da publicação de seu primeiro título, assim que eu conseguir escrevê-lo, e grande admirador da literatura. Sento com as costas arqueadas na cadeira e pouso as mãos nas teclas da máquina de escrever e espero a imaginação fazer seu trabalho.

A folha de papel parece ficar reta, por mais que eu a ajuste esta nunca está no meu contento. Quando finalmente eu acho uma posição satisfatória as teclas da máquina parecem querer se mexer, em um movimento estranho como se bailassem na velha Olivetii. Aos poucos a esculhambação destoante mingua. Vejo que as paredes estão novamente retas e o assoalho não parece estar vivo, porém toda a criatividade parece ter ido junto.

Visto um capote por cima de tudo e pego meu chapéu. É hora de me encontrar com a Fada Verde.

No caminho tortuoso à caminho da taverna, tropeço umas duas vezes e na última esfolo meu rosto na calçada de pedregulhos., Quando avisto o estabelecimento responsável pela destruição de vidas um sorriso brota em minha face. A construção de tijolos e seu telhado inclinado denotam a idade já avançada do imóvel. Um papel, roto que eu não tinha percebido no dia anterior, fixado por um prego velho me chama a atenção. Escrito com caligrafia esmerada o seguinte recado:

“POR MIM SE VAI À CIDADE DOLENTE,

POR MIM SE VAI À ETERNA DOR ,

POR MIM SE VAI À PERDIDA GENTE.

JUSTIÇA MOVEU O MEU ALTO CRIADOR,

QUE ME FEZ COM O DIVINO PODER,

O SABER SUPREMO E O PRIMEIRO AMOR.

ANTES DE MIM COISA ALGUMA FOI CRIADA

EXCETO COISAS ETERNAS, E ETERNA EU DURO.

DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS! ”

A Divina Comédia, Dante Alighieri, pensei ao abrir a pesada porta que separa os cidadãos bons dos bêbados como eu. A fumaça do cigarro inunda minhas narinas e começo a respirar melhor. Tento atravessar a taverna em direção ao balcão, afasto diversos boêmios pelo caminho contando histórias de leopardos e leões. Enfim pouso meu traseiro no banco de madeira e me acotovelo na bancada.

— Tu és Virgílio? — pergunto ao atendente.

— Com tamanha bebedeira de ontem, mal podia imaginar que você conseguisse chegar de novo a esse balcão, quem dirá lembrar meu nome!

— Ajudai-me taverneiro famoso! Minha garganta e alma pedem por Absinto.

Virgílio pegou um copo de cristal e o pôs sobre o balcão. Sobre o receptáculo uma colher cheia de furos que recebeu um torrão de açúcar. Olhei fascinado para os detalhes do preparo. O taverneiro puxou uma garrafa de tom esverdeado e molhou o torrão que pouco se dissolveu, em seguida ateou fogo no torrão.

O açúcar pegou fogo com facilidade enquanto a chama o caramelizava, Virgílio, sem perder tempo, pegou uma jarra de água gelada e quando a chama se extinguiu, derramou sobre o torrão fazendo-o dissolver junto com a bebida.

Peguei o copo com delicadeza e fitei-o admirando. Percebo os olhos do taverneiro sobre mim que pergunta se minha alma foi tomada pela covardia e o respondi com um só gole da bebida que esvaziou por completo o copo. O anis queimou minha garganta mas ainda sim consegui falar.

— Deve-se temer as coisas que de fato têm o poder de nos causar mal. Encha o copo.

Enquanto Virgílio preparava o ritual de novo olhei para a taverna com outros olhos, podia ouvir os lamentos, gritos e suspiros tão terríveis vindo de seres sem esperança de morte ou salvação. Rostos distorcidos pelo ópio e o álcool dançavam sua marcha fúnebre.

Subitamente um velho pálido de pelos antigos, vestindo seu uniforme policial, adentra no salão.

— Almas ruins, vim vos buscar para o castigo eterno! Abandonai toda a esperança de ver o céu outra vez, pois vou levar-vos à cadeia se não pararem com a gritaria!

Em seu bolso, uma plaqueta indicava seu sobrenome: Caronte. Pegou os baderneiros que se lamentavam amargamente e tratou de leva-los rumo à delegacia batendo com seu cassetete em todos que hesitavam o caminho. Eu vi os boêmios mais exaltados sendo levados enquanto a bebida começava a fazer efeito, logo fiquei com sono e desmaiei escorado ao balcão.

Acordei com o som de trovões da tempestade que instaurara do lado de fora. Com os baderneiros fora da taverna, o único som audível era dos lamentos e suspiros. Em uma mesa afastada em um dos cantos da salão, estavam quatro conhecidos criminosos: Homero, Horácio, Ovídio e Lucano. Caso o guarda tivesse se atrasado em sua apreensão, poderia encontrar com esses ladinos que pareciam tramar algum plano ou coisa parecida.

De súbito um deles apagou a luz da taverna deixando-nos no mais completo escuro, podia eu ouvir as lamúrias dos boêmios sendo roubados pelos criminosos que fugiram e deixaram a porta aberta. Um vento súbito preencheu o espaço e trouxe as vozes daqueles que perderão suas paixões. Contei os copos pousados na bancada e concluí que era hora de eu ir ao banheiro esvaziar-me das toxinas.

Abracei a louça e vomitei parte do que tinha bebido, ainda tonto, sentei-me no chão e me deparei com um cachorro acorrentado à parede do sanitário. Tão logo olhei para o cão e este tratou de latir e rosnar, não tive outra alternativa senão jogar meu maço de cigarro para que este me desse tempo para fugir.

Tropecei em diversas pessoas caídas de tanto beber e por fim voltei à taverna e à minha tentativa de auto-destruição. A luz voltara e as pessoas mais calmas se embebedavam em círculos em volta da mesa.

Em um deles, talvez o 5º círculo, havia vários homens nervosos com algo e bebendo um líquido negro e de aspecto grosso e asqueroso. Alguns até engasgavam com a bebida devido à tamanha ira demonstrada. Um dos revoltosos ergue de sua cadeira como se procurasse briga, ele olha para todos os lados e resolve vir em minha direção.

Tinha uma aparência desgrenhada, com barba por fazer há pelo menos dois meses e calças rotas. Circundando sua cabeça uma típica touca de marinheiro.

— Quem és tu que vens antes do tempo? — perguntou o homem

— Venho — respondi —, mas não demoro, mas quem és tu tão revoltoso?

— Eu sou um dos que chora, como podes ver.

— Com choro e com luto, espírito maldito, que assim permaneças, pois eu te conheço, mesmo tão sujo!

Ele pulou sobre mim e nos atracamos aos socos e pontapés. Tamanha era nossa embriaguez que Virgílio conseguiu definir a contenda sozinho, jogando o marinheiro para fora do bar.

— Não se preocupe. Ele sempre foi uma pessoa muito orgulhosa. — respondeu o taverneiro preparando outra dose para mim.

A partir deste momento eu pareci ter entrado em um estado de contemplação. Um nirvana induzido pela fada verde... Enquanto o mundo girava ao meu redor eu refletia sobre os acontecimentos desta noite, teria eu descido até inferno e não percebi? Minha história se confundia com a de Dante e sua descida ao inferno guiado pelo espírito de Virgílio.

Com dificuldade atravessei a taverna em direção a porta. O mundo girava lentamente ao meu redor quando cheguei na parede com o papel roto preso por um prego enferrujado. Aquilo que tinha sido o início de tudo poderia se tornar o final também. Encarei a folha presa resignado e esperançoso de que ela traria minha redenção.

Não havia o poema.

Era apenas um anúncio de uma cartomante que prometia toda sorte de informações sobre o futuro, presente e passado. Dei um suspiro aliviado e comecei a rir de mim mesmo por acreditar no que acontecia comigo. Entrei de novo na taverna, agora com o espírito revigorado e sentei de novo ancorado no balcão. Até os rostos das pessoas haviam mudado de feição, o lugar parecia mais calmo se não fosse por um casal brigão que argumentava em uma das mesas.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — disse a mulher

— Errou! — Interrompeu o homem, rindo.

— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Ouvi a conversa e algo estranho me chamava a atenção. Camilo... Esse nome não me era estranho. Conforme a conversa prosseguia fiquei sabendo o nome da mulher: Rita.

Camilo e Rita...

Subitamente um estalo tomou conta de meu cérebro. Olhei para os dois e em seguida repeti para mim mesmo: “A Cartomante, Machado de Assis”. Pedi mais uma dose de absinto e tratei de viver minha nova história.