Jangada

Era uma manhã de 1500, linda manhã de sol e de muitas surpresas. Foi neste dia que meu inventor se deparou com o olhar do estrangeiro, olhar de curiosidade e de cobiça. Foi exatamente nesta manhã que fiquei pronta. E pela primeira vez fui lançada ao mar.

Sentir a água salgada e gélida batendo em minha madeira me deixou um pouco assustada, mas não estava sozinha, sobre mim, estava meu inventor, com seu rosto coberto de tinta vermelha e preta. Ele estava pronto pra guerra. Assim como seu povo e sua tribo que defenderia esta terra sagrada até o fim, porque era aqui estava toda sua ancestralidade, sua história e sua sabedoria.

Este povo tão especial aos poucos seria dizimado pela ignorância do estrangeiro que se apossaria da sua terra com o desejo insano de dominar o futuro, sem se preocupar que o único tempo que temos é o agora. Esta foi a maior lição deixada por meu inventor.

Mas enquanto íamos em direção ao mar, imaginava se eu seria resistente o suficiente para voltar a praia, se não seria trocada por aquele objeto gigantesco que estava parado a nossa frente, cheio de gente de pele clara e olhar colorido, porém frio como o mar que nos cercava.

De repente a onda forte me trouxe de volta, de volta pra realidade e me dei conta que era pequena e frágil pra tanta água e aqueles nós que pareciam tão fortes e resistentes aos poucos se soltavam e vi que a distância que me separava da areia e do mar era do tamanho da minha coragem.

Coragem pra enfrentar as ondas gigantescas que me levavam pra mais longe da praia e perto do estrangeiro... coragem pra descer as correntezas dos rios e ir ao encontro das cachoeiras e correntezas que me guiariam por entre as matas e me ensinariam a ser resistente, a ser útil.

Chegamos, meu inventor estava comigo. Como era grande o objeto desconhecido. Não tínhamos idéia do que seria. Mas não me assustava. Também era de madeira, assim como eu. Quem era essa gente que falava diferente? Não conseguia entendê-los, suas bocas abriam e fechavam e o som não significava nada para mim... mas sei que o que desejavam não era amizade, não era uma aproximação sem interesses. Mas meu inventor em sua ingenuidade se aproxima e se permite seduzir pelo desconhecido.

E a partir daquele dia a batalha começaria.

Meu povo perderia seus hábitos, seus costumes e sua tradição.

Meu povo deixaria sua terra para não ser escravizado. Homens e mulheres perderiam suas crenças e seriam obrigados a aprender com o estrangeiro.

Nossas terras ganhariam cercas e donos.

Nossos rios ganhariam lixo ao invés de peixes.

Nossos mares... e os nossos mares?

Nossas matas seriam trocadas por casas.

Nossas casas por arranha-céus.

O cinza tomará conta dos sonhos, o arco - íris ficará escondido nas grandes cidades.

Talvez um dia o estrangeiro que chegou numa manhã de sol tome posse dessa terra com o coração e a trate com generosidade e com respeito, porque no momento o futuro parece incerto. E incerteza gera desesperança e falta de fé.

Mas eu continuarei fazendo parte da vida do homem simples, do nativo, do velho jangadeiro, que trazem na alma o desejo de um mundo harmônico onde todos os seres humanos vivam em paz com o planeta. Lembrando que cada ser vivo é responsável por essa harmonia.

E cada vez que um ser fere a Terra machuca também um filho da Terra.

E esta velha jangada que lhes escreve é feita de elementos da Terra e só resistirá ao tempo se não for apagada da memória de seu povo, os primeiros habitantes dessa Terra chamada Brasil.

Vasalisa di Katé
Enviado por Vasalisa di Katé em 20/04/2010
Código do texto: T2209265
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.