Um Conto Diferente de Natal
Belém – Ano de 3755 segundo o calendário judaico.
Shai'tan contempla em silêncio a paisagem árida de Belém. Ao fundo um pequeno estábulo, agora iluminado por uma luz angelical marca o contraste. Enquanto olha para trás sente a presença de outra entidade que chegou a pouco tempo.
— Amigo Shai'tan! Como sempre diligente com o horário.
— Guarde suas mentiras para si Samael – disse o demônio soltando um olhar desafiador.
— Calma. Onde está Helel ben-Sachar?
Shai´tan aponta para o estábulo iluminado na noite escura. Os dois ficam algum tempo olhando até que por fim o fenômeno sobrenatural cessa. Helel ben-Sachar aparece na frente dos dois.
Seu corpo é perfeito. Seus cabelos loiros e levemente encaracolados denunciam sua angelicalidade. De suas costas duas imensas asas de couro, semelhantes às de um morcego, e seus grilhões presos ao tornozelo mostram a realidade do anjo caído. Helel ben-Sachar no hebraico quer dizer “O que brilha”, mas entre as pessoas ele é conhecido por outro nome: Lúcifer.
— Diga-me Helel ben-Sachar– começa Samael – o quê fazias?
— Mostrei minha face de anjo para a moça – disse Lúcifer em tom ameno –, ela parece ter acreditado que eu ainda trabalhava para Ele, dará o nome que escolhi e confia nos seus instintos. O recém nascido será nosso Messias.
— Maldito enganador! – sorriu Shai'tan, que mais tarde ganharia o nome de Satã –, ainda tirarás de mim a alcunha de Pai-da-Mentira! – o sorriso em rosto demonstrava todos os seus dentes pontiagudos. Dos três, Satã era o mais inumano. Sua pele avermelhada era duro feito couro de crocodilo. Do alto de sua testa dois chifres iguais ao de um carneiro. Ao invés de pernas, patas de bode e no final da coluna um rabo grosso igual ao de um lagarto.
Enquanto o silêncio dominava o local, Samael sentiu inveja. O anjo que representava a Ira do Senhor sempre tentara o homem, e agora coube à outro fazer seu tão bom trabalho. Ainda lembrava de seu passado glorioso, desposou Lilith e tentou Eva que não resistiu e por fim deu a luz à Caim. Lutou contra Jacó e deu-lhe o nome de Israel quando perdeu a batalha. Segurou o braço de Abraão quando este iria sacrificar Isaac e foi guardião de Esaú.
— Amigo Helel ben-Sachar, tem certeza que funcionará? Seria o povo tão negligente com a palavra Dele? – indagou Samael se lembrando das palavras proferidas a Moisés sobre falsos profetas.
Lúcifer olhou para o céu. A estrela da profecia logo apareceria. Enquanto observava a noite procurou dentro de si a resposta. Sabia que o Eterno havia ordenado para os judeus tomarem cuidado com falsos Messias, e caso algum deles surgissem eles deveriam mata-lo como prova de amor a Ele. Com certeza aquela criança no estábulo seria sacrificada.
— No começo pode não dar certo Samael – retrucou Lúcifer com voz firme –, mas tenho certeza que nosso plano trará alguma mudança para a humanidade.
Os três permaneceram inertes. Satã era o único que não demonstrava arrependimento do que fazia. Para ele a eventual morte da criança naquela manjedoura seria necessária. Não se constrói mito ou herói sem sacrifício. Uma morte seria essencial para que ele fosse tido como um salvador.
— Precisamos garantir que ele entenda bem a tradição judaica. Será bem mais difícil alguém segui-lo se ele não for bom conhecedor – disse Samael em tom baixo, quase para si mesmo.
— Ora Samael – interpelou Satã –, a mãe dele já é da Casa de David! Todos esperam um Messias que tenha a linhagem dos reis do antigo Templo. O menino é perfeito para o propósito. E se não for, eu mesmo o ajudarei a fazer “milagres”. O povo se impressionará com qualquer truque.
— Shai'tan – disse Samael –, você sabe que esta mulher só está aqui pois fugiu. O marido com o qual deveria ter casado foi traído. Ao invés de continuar com sua linhagem intacta ela preferiu se enamorar com o carpinteiro. Qualquer um que escrever a história deles não omitirá esses dados.
— Cuido disso – interrompeu Satã –, farei com que os escribas desta história omitam essas partes. O nascimento deste menino terá caráter divino. Diremos à todos que seu pai foi o Eterno e não este carpinteiro.
— Quem acreditará nisto? – perguntou Lúcifer.
— Helel ben-Sachar, parece que perdeste a fé nas pessoas – riu Samael se virando para Lúcifer –, eles são volúveis e acreditarão em qualquer coisa. Só assim este fedelho será o nosso Messias. Daremos o primeiro empurrão e depois eles farão o resto inventando histórias que comprovem sua relação com o Pai.
A palavra Pai ecoou e os outros dois sentiram um peso no coração. Samael era o único que ainda sentava-se ao lado Dele. Satã e Lúcifer renegaram o Eterno e logo não mais andaram ao Seu lado. Enquanto isso, no céu, a estrela profética se alinhou no lugar certo chamando a atenção do trio.
— Serei Baltasar! – exclamou Samael, e em poucos segundos se transformou na figura do rei mago.
Os outros dois mudaram suas feições para ficarem iguais a Melquior e Gaspar. Começaram a se dirigir em direção ao estábulo, porém Samael continuou parado com olhos brilhantes.
— Desististe Samael – ironizou Satã.
— Não, tive uma ideia. Podemos levar bens materiais para ele. É bem provável que seus pais custeiem um bom ensino judaico para o menino com o que dermos. Daremos mirra, ouro e incenso. Duvido que o carpinteiro não pague um bom ensino talmúdico para o moleque e um salvador com conhecimento das tradições será melhor para nós.
Os outros dois aceitaram a visão de Samael e por mágica materializaram os presentes. Seguiram em silêncio até o estábulo. O local era escuro. Diversos animais perambulavam. O pai do menino estava de pé apoiado no cajado com olhar perdido. A mãe ajoelhada no chão venerava a manjedoura como se fosse um trono. Alheio a tudo isso o bebê se mexia em meio à palha do comedouro.
Os três fizeram a encenação perfeitamente. Se ajoelharam em frente ao menino como se ele fosse um deus. Entregaram os presentes aos pais reforçando a idéia de divindade. Antes de sair Satã, que representava Gaspar, caminhou em direção à manjedoura. Os outros dois ficaram com medo do que ele fizesse. Ele se aproximou e viu o menino . Afagou a testa do bebê e então saiu junto com os outros.
Tomaram uma boa distância do estábulo e retornaram às suas formas originais. Satã sorria de satisfação com o olhar reprovador de Samael.
— Demônio ardiloso! – gritou Samael – o que pensas que fez?
— Vocês pensaram em tudo. Ou quase tudo. Eu coloquei um pouco de loucura em sua mente. De que adiantaria todos acharem que ele é o Messias e ele próprio não acreditar no fato? Ele achará que é o Eterno na Terra. Um deus com corpo entre os homens.
Os dois ficaram em silêncio pensando. Apesar de cruel, Satã estava certo. Sem mais nada dizer Samael bateu suas asas e voltou para o céu. Os outros dois olharem ele ir embora. Lúcifer ainda tinha muitas dúvidas.
— Diga-me Shai'tan – começou Lúcifer –, vemos Samael voltando para ficar ao lado do Eterno. Fizemos tudo isso sem aprovação Dele. Sabemos de sua Onisciência, Onipotência e Onipresença. Ele sabia o que faríamos, Ele estava lá e Ele poderia ter nos parado. Mas não o fez. Por quê?
— Você já pensou no porque você existe Helel ben-Sachar? Se você existe é porque Ele quer. Veja Samael. Um anjo com a obrigação de tentar o homem. Talvez o que fizemos hoje não seja um mal para a humanidade. O mal seria a humanidade acreditar no que fizemos. Creio que nós realizamos o desígnio Dele. Um teste de fé para os judeus e o restante do povo.
Os dois vagaram a esmo por Belém em silêncio. Por fim voltaram para o inferno. Lúcifer acompanhou o menino crescer e enxergou todos os erros deles. O anjo caído sentiu a mão de Satã conduzindo os apóstolos e ajudando a criar o “Novo Testamento”. Muitas vezes Lúcifer pensou em impedir a mentira, mas seria tarde demais. Os planos arquitetados pelos três saíram melhor do que o previsto.
Dizem os demônios que ao passarem pelo trono de Lúcifer nas noites de Natal é possível ouvir o seu choro de arrependimento.