Danilo apronta mais uma

Danilo viajou à Itália. Naquele tempo, não existia a União Européia; por isso, cada país, se o desejasse, autorizava a entrada de turistas independentemente. Voou de São Paulo a Roma. Chegou à cidade dos Césares a bordo de um avião da Varig, com conexão na cidade do Porto, em Portugal.

Depois da internação, ocorrida sem muita exigência da alfândega portuguesa, Danilo viu-se livre para transitar pela Europa. Só não iria à França, com receio de ser novamente extraditado. Também não viajaria à Alemanha por temer que o rigor germânico ensejasse problemas com o seu passaporte, cuja folha fora arrancada para omitir referências à extradição efetuada pelos franceses.

Os portugueses nem se deram conta da folha subtraída. Danilo chegou a pensar: “teríamos nós, brasileiros, herdado dos lusitanos esse comportamento faltoso? Será, por isso, que somos tão negligentes e desleixados?”.

Talvez.

Iniciou seu passeio turístico pelas ruas antigas da capital italiana, frequentou bons restaurantes, sentou-se às mesas expostas nas calçadas, degustou bons vinhos enquanto os transeuntes desfilavam pelo passeio público; alguns retornavam das compras na Via Veneto, paraíso da moda e do bom gosto.

Conheceu La Fontana di Trevi, a mais esplêndida fonte da cidade, em cujas águas depositou uma moeda. De pronto, aceitou a crença difundida mundo afora: “quem lançar uma moeda nas águas de La Fontana di Trevi voltará a Roma”.

Ele sabia que o autor do projeto de construção da famosa fonte fora Bernini. O magistral escultor a concebeu de sorte que as águas parecessem em movimento, e os cavalos, conduzidos por figuras humanas, esculpidos em mármore, dessem a impressão de emergirem triunfantemente ao retornarem de alguma batalha. Ao fundo, variadas esculturas completam a beleza da obra.

Na Piazza Navona, lembrou-se dos espetáculos lúdicos ocorridos quando a nobreza da época praticava jogos esportivos.

Contemplou a Fonte dos Quatro Rios – Danúbio, Ganges, Nilo e La Plata (o Rio Amazonas ainda não era conhecido), com suas quatro magníficas estátuas, proporcionando-lhe grande euforia.

Num ímpeto, adentrou a fonte.

Vestia roupas coloridas, trazidas em uma sacola e trocadas no banheiro de um restaurante próximo. Antes que pudesse ser impedido, começou a nadar. As fortes braçadas tornavam ainda mais escura a água contaminada pela poluição urbana.

Ao final, gritava como se estivesse comemorando uma vitória. Interpelado por policiais, falou-lhes que acabara de vencer uma competição com nobres da Corte de Domiciano. Ele saíra vencedor e, por isso, enaltecia as cores da “sua nobreza”.

Danilo interpretou, em sua alucinação, o que faziam os nobres e o clero da época nas competições em que tomavam parte, anualmente, no mês de agosto.

Os turistas riam, enquanto Danilo era conduzido a uma sala de um prédio próximo, onde trocaria a indumentária colorida que acabara de usar e com a qual participara do jogo criado por sua imaginação.

A polícia relevou o acontecimento, dispensando-o sob severa repreensão.

No dia seguinte ao acontecimento na Piazza Navona, Danilo visitou o Museu do Vaticano. Antes, passou pela Praça de São Pedro, o mais conhecido logradouro público do mundo.

Olhou para o alto e contemplou as colunas em semicírculo, onde se encontram dispostas cento e quarenta e três estátuas em tamanho natural. Do alto de seus pedestais, parecem vigiar a praça que recebeu o nome do mais importante seguidor de Cristo – Pedro.

– Esta praça está edificada no local onde teria sido crucificado o Apóstolo, no ano 67 – informou Danilo a um vizinho, de origem espanhola, mas que entendia o “portunhol” falado por noventa e nove de cem brasileiros em suas viagens turísticas.

Retirou-se da praça e foi para a Basílica de São Pedro, mandada construir por Constantino no ano 324, em substituição a um pequeno santuário. O templo fora concluído em 349 e inaugurado por Constante, filho de Constantino. Ao longo dos séculos, foram adicionadas várias construções e reformas que obedeceram a projetos de renomados arquitetos, entre eles Michelangelo, autor de a “Grande Cúpula”, obra magistralmente concebida por um gênio inigualável.

– Veja que beleza! – exclamou Danilo, ao se dirigir àquele espanhol da conversa anterior. – Este altar, que serviu de púlpito ao Apóstolo Pedro, é obra de Bernini. Repare na composição das colunas, nas estátuas de várias formas e tamanho…

– …

– Um requinte de extraordinária beleza! – continuou. Tudo aqui é maravilhoso. Olhe senhor, a magnífica escultura de Michelangelo, La Pietá. Esta obra foi esculpida entre os anos de 1499 e 1500.

– Michelangelo tocou-a com o cinzel, e disse: “fala!”. De tão perfeita, só falta mesmo falar – complementou o espanhol, um tanto incomodado pelas frequentes intervenções de Danilo, ao explicar-lhe fatos ou apresentar-lhe obras expostas na Basílica de São Pedro.

– …

– Este é o túmulo de Pedro. Seus restos mortais estão aí depositados. Pedro foi um fiel seguidor de Cristo, embora tenha negado conhecê-lo por três vezes consecutivas – suspirou Danilo.

Mesmo a contragosto, o espanhol Manolo, nome que informara como o seu, andava com Danilo por todo o Museu do Vaticano. Estiveram na Capela Sixtina, construída nos anos de 1475 a 1481, durante o pontificado de Sixto IV.

Daí o seu nome.

– Os afrescos expostos no teto também foram pintados por Michelangelo. Olhe “O Juízo Final”; que maravilha de afresco! Michelangelo foi escultor, pintor e arquiteto.

Danilo maravilhava-se ao descrever o gênio nascido há mais de quinhentos anos.

Manolo concordava em tudo. Já se acostumara às intervenções de Danilo, sem se aborrecer. Sentia-se até certo ponto gratificado pelas aulas teóricas ministradas pelo brasileiro durante a excursão à Basílica de São Pedro, ao Museu do Vaticano e à Capela Sixtina, repositório da mais soberba obra artística legada à humanidade.

Ao final do expediente destinado à visitação, Danilo foi flagrado pelos seguranças. Encontrava-se próximo ao grande painel intitulado “O Juízo Final”, localizado ao fundo de uma das salas da Capela Sixtina.

Trazia uma tabuleta presa ao dedo polegar da mão esquerda, espalmada para apoiá-la, na qual estavam distribuídas variadas tonalidades de tintas. Uma boina verde na cabeça pendia discretamente para a direita. Trajava camisa de mangas longas e folgadas, abotoadas nos punhos, ornamentada por uma gola rendada.

Preso aos dentes, horizontalmente, um pincel pronto para ser usado.

– Você está louco! Que pretende fazer? – perguntou um dos guardas que o segurava pelos braços presos às costas.

– Nada de mais. Apenas vou melhorar a tonalidade das cores, já ofuscadas pelo passar dos anos.

– …

Danilo saiu dali manietado pelos seguranças, revoltado por ter sido novamente impedido de renovar as cores e reavivar as imagens produzidas por Michelangelo.