A Segunda Chance
Aguani caminhava pesadamente por entre a mata estreita arrastando um enorme fardo, pois seus braços e pernas doíam muito devido aos movimentos para manobrar suas armas na batalha em que fez parte há alguns dias, e da qual ainda escutava os gritos de dor, a agonia estampada nos rostos de amigos e inimigos, do sangue em toda parte e, principalmente, do pior dos sentimentos para um guerreiro de sua estirpe, o medo da morte.
Não sabia o quanto tinha caminhado pela floresta, mas, apesar das dificuldades do terreno, seu coração estava em alegria, pois era levado por uma força poderosa, o amor. E carregando apenas um grande facão, feito por seu pai quando era um pequeno garoto, e com o qual aprendeu a dar seus primeiros golpes, Aguani afastava a golpes duros os arbustos e circundava as grandes árvores. O calor era insuportável e a sede aterradora, mas continuou seu avanço até encontrar uma clareira no meio da mata. Deu mais dois passos e parou. Uma enorme emoção, por um momento, paralisou seu corpo e mente. Admirando aquela paisagem composta por uma pequena aldeia circundada por belíssimas árvores, lhe veio a lembrança deste lugar. Por muito tempo andou por terras ermas, mas a lembrança deste lugar lhe deu forças para continuar, pois tinha um sonho. Retornar ao seu lar. Sua aldeia.
Depois de muitos anos longe de sua terra, de sua gente, Aguani não se conteve e começou a correr atravessando a vegetação rasteira que agora estava a sua frente. E mesmo ainda sentindo fortes dores nos braços e pernas, continuou correndo e largou o facão no meio do caminho. Chegou às margens arenosas do pequeno riacho Atanul, onde durante muito tempo em sua vida foi o lugar em que aprendeu a nadar e a pescar peixes com as próprias mãos. O pequeno e não muito profundo braço de água circundava a aldeia e servia de rota para as viagens e de ligação entre as diversas tribos da grande nação Quimanani. E agora, mais uma vez, Aguani o vislumbrava de perto. Com poucas e dolorosas braçadas alcançou o outro lado do riacho, que dava para a entrada da aldeia. Observando mais de perto viu que a aldeia estava vazia. Aguani perguntava-se em pensamento onde estariam seus amigos, familiares, companheiros e principalmente ela. E veio a sua mente aquele nome. O nome que para Aguani sempre significou o maior dos sentimentos, aquilo que sempre o fortaleceu e o amparou em suas viagens, lutas e conquistas fora de sua terra. O seu amor. Tana. Com a força da lembrança desse nome suas dores esvaíram-se.
Aguani começou a andar por entre a aldeia deserta e estranha. Este lugar parecia pertencer-lhe e ao mesmo tempo não. Mas caminhava como que atraído pelo canto de uma sereia e parou a alguns metros de uma das inúmeras cabanas que formavam a aldeia. E esta, em especial, era a mais bela porque muito representava para ele. Ela fora construída por seu pai, o grande e respeitado guerreiro Taguara, e ainda mantinha a mesma beleza e simplicidade.
De repente, para sua surpresa, a porta da cabana se abre e de dentro sai uma figura feminina de uma beleza rara. Pele morena de um brilho mágico, cabelos negros, como a noite sem luar, e lisos como longos fios de seda. E trajava um longo vestido verde-claro adornado com fios de um dourado intenso que formavam lindos desenhos representando flores e pássaros da floresta. Era Tana. A flor mais linda dos jardins dos quimananis. E ela ficou ali parada em frente à cabana fitando o grande guerreiro. E mesmo que suas bocas não pronunciassem nenhuma palavra, seus olhares transmitiam toda a saudade e a alegria do reencontro. E Aguani, paralisado, não se conteve e transbordou tudo o que sentia num forte choro. Lágrimas caiam como cascatas banhando seu rosto e expulsando a angústia e o sofrimento de todo esse tempo longe do que mais amava. Não mais se conteve e saiu correndo em direção a sua amada e ela o recebeu com um lindo sorriso nos lábios. E se abraçaram e permaneceram por um longo tempo sentindo um ao outro. Aguani quebrou o silêncio.
---- Tana, meu amor, achei que nunca mais fosse vê-la. Os deuses da floresta me concederam meu maior desejo, o de sentir seu abraço e seu carinho mais uma vez.
---- Também fico feliz em te ver meu amado --- disse Tana, agora com as mãos em volta do rosto de Aguani --- você continua sendo o homem forte e gentil que conheci no passado.
---- Onde esta nosso povo? --- indagou o guerreiro --- me causa estranheza ver nossa aldeia tão vazia, como se um vento de morte a tivesse varrido, e apenas você a me aguardar.
---- Seu povo não esta aqui, Aguani --- Tana respondeu com olhar tenro --- nós agora vivemos em outras paragens, mais lindas e luminosas que qualquer reino do mundo --- completou Tana como se tivesse descrevendo um sonho.
---- Como assim em outras paragens? Será que nosso povo não mais sente apreço por nossa querida terra e se impacientaram dos anos em que vivemos em plena harmonia com as árvores e criaturas da floresta? --- muito indagou Aguani com ar de quem não entendia a situação. E dentro dele começaram a brotar temores de que um grande mal tivesse se levantado contra sua aldeia e seu povo. Um mal do qual Tana não tivera coragem de contar. E vendo a angústia crescer na expressão do seu amado, Tana, uma vez mais, lhe sorri singelamente e segurando as mãos de Aguani procurou acalmá-lo.
---- Entendo o que sente, mas é preciso que saiba. O que procura ainda não pode lhe ser dado --- disse em tom um pouco mais sério, mas transmitindo grande tranqüilidade --- minha missão, concedida pelos deuses a meu pedido, foi descer de alturas muitas a fim de dar-lhe forças na viagem de volta e compreensão para saber que as pessoas que amamos estão sempre conosco, onde quer que andemos e a que distancia for --- explicou.
---- Não vejo motivos para retornar --- falou Aguani com certa indignação. Para ele era incompreensível o fato de ter enfrentado inúmeras dificuldades no intuito de encontrar seu grande amor e mais uma vez desfrutar de uma vida juntos, que os tempos sombrios de guerra não permitiram, e que agora esse mesmo amor o pede que dê as costas e parta para as terras do sofrimento.
---- Eu não atravessei montanhas e florestas sombrias, enfrentei batalhas e desafios difíceis só para te ver por um momento apenas. Eu vim para ficar. E quero ficar --- disse-lhe expressando seus pensamentos inquietantes.
---- Essa decisão não é sua --- disse Tana --- só os deuses podem determinar nossos destinos. E assim como eu aprendi, você aprenderá com o passar do tempo que devemos confiar Neles e ter paciência. Só assim alcançaremos nossos desejos.
Depois dessas palavras Tana deu às costas a Aguani e adentrou na cabana. E ele, por um momento, achou que ela pudesse estar magoada com suas palavras ásperas e pelo fato de não ter compreendido a mensagem dela. E temeu que Tana pudesse sumir, como uma miragem no deserto, e que sozinho aprendesse da forma mais dura aquilo que custara a acreditar até o momento. Que sua amada mulher e rainha, mãe de seus lindos e maravilhosos frutos, não voltara á casa dos vivos e que esse momento, como um vislumbre concedido pela infinita bondade dos deuses, era um presente que tinha o objetivo de aplacar suas mais profundas dores que, durante todos esses anos, o jogara num profundo poço de tristezas. Pensando desta forma Aguani seguiu Tana pelo interior da pequena cabana. Entrando no aposento que costumava servir para a preparação das refeições, viu sua amada apanhar um punhado de ervas e socá-las em uma pequena tigela de argila, que foi preenchida com água quente. Após oferecer o que havia preparado, disse: “Embora você relute que o que vê e senti ainda não pode lhe ser dado, precisa retornar ao mundo que deixou por um momento. Sua hora não chegou guerreiro. Volte e lute pelo povo que ama e por nossos queridos frutos, que por muito tempo negligenciardes pela dor, pois a semente que plantastes gerará feitos gloriosos para tua casa”. Essas palavras afastaram de vez os temores de Aguani, como se uma brisa o tocasse e levasse embora as negras nuvens que ainda persistiam em encobrir a luz.
Mesmo crescendo em seu íntimo a sensação de que aquele intenso e maravilhoso encontro com Tana estava prestes a acabar, Aguani procurou esquecer, por um momento que fosse, a dor que essa mesma sensação lha trazia e resolveu aproveitar cada segundo permitido com sua rainha. E sentando-se em um pequeno banco próximo a janela deu vários goles naquele líquido quente e revigorante, cujo aroma das ervas o acalmava por completo. Olhando para Tana via que ela, como a mais linda das rainhas do mundo e transmitindo uma luminosidade tranqüilizante, permanecia de pé fitando-o com aqueles olhos que pareciam as mais belas estrelas do firmamento. O rei dos quimananis começou a sentir uma forte sonolência e, antes que caísse numa total inconsciência, já com os olhos quase fechados, ouviu pela última vez a voz de sua amada. “Seja forte, pois quando estamos mergulhados nos tormentos da dor e quando a escuridão parece sufocar os últimos suspiros da esperança, a luz é o presente daqueles que resistem e não perdem a fé em dias melhores”. Estas foram a últimas palavras que escutou antes de iniciar a viagem de volta.
Caído num profundo sono, Aguani sonhou que inúmeras formas e cores passavam rapidamente diante de seus olhos. Vagou pelo tempo e espaço como se estivesse sendo carregado por uma mão invisível. E foi acometido subitamente por um despertar em meio ao caos e a dor. Sentiu outra vez o peso do corpo e o gosto do sangue. E uma voz masculina e vigorosa o despertou de vez daquele estado.
---- Levanta! Levanta meu senhor! Abra os olhos, vamos! A vitória é nossa --- falou Maburi, um de seus bravos capitães de guerra e grande amigo. E o rei o reconheceu quando fitou seus olhos, que eram como uma lança para os inimigos, pois transmitiam uma firmeza e uma fúria que poucos tinham coragem de enfrentar. E Maburi estendeu uma das mãos para Aguani e o puxou com um só solavanco e o colocou de pé. E o rei viu muitos de seus homens. Fiéis guerreiros que, preocupados com seu senhor, o rodeavam e esperavam algum sinal de vida. E ficaram alegres quando o capitão o despertou e seus olhos abriram mais uma vez.
Extremamente cansado e com profundos cortes nos braços e pernas, que ainda lhe sorviam o líquido vital, Aguani ergueu o braço direito que ainda segurava a poderosa espada, tão temida pelos servos do mal, como um sinal de vitória. Reunindo com dificuldades o precioso ar em seus pulmões, soltou um vigoroso grito, característico do seu povo e conhecido por muitos em muitas terras, que reverberou por toda a planície, consagrando aquele momento. E sua voz foi acompanhada por milhares de outras naquela tarde.
---- Ah meu amigo, pensei, por um momento, que tinha passado para a morada dos deuses --- disse Aguani a seu capitão enquanto este o apoiava na caminhada de volta ao grande acampamento, em meio a um campo de morte, onde milhares encontraram seu fim.
---- Não meu senhor, ainda não chegou sua hora. A tua casa ainda gerará muitos frutos para seu povo.
Após as palavras de Maburi, Aguani pensou no sonho que teve e nas palavras de Tana. E por um momento desejou estar com ela outra vez. E mesmo assim sentiu-se aliviado.
---- Já ouvi isso meu amigo, e alegro-me em acreditar profundamente.