Zé colado
Ele atendia pelo nome de Valentino. O pai, José Meireles, decidiu chamá-lo assim na hora do batismo. A mãe, dona Ernestina Meireles, gostaria que o menino recebesse o nome de um santo católico: Francisco, como era conhecido quem a socorreu nas aflições do parto complicado. O padre dava uma mãozinha; insistia com o genitor para aceitar o nome proposto pela mulher.
– Francisco é um ótimo nome – repetiu o vigário, já cansado de insistir.
– Francisco, não. Qualquer outro, menos Francisco.
– Francisco é o nome de um santo milagroso…
– E também o de certo sujeito…
– Não me olhe com esses olhos! Não admito insinuações! – disse a mãe, visivelmente aborrecida.
O padre sabia o porquê do desentendimento. Dona Ernestina contara-lhe no confessionário. Dissera que o marido desconfiava da paternidade, e a causa estaria ligada à semelhança do bebê com o vizinho, senhor Francisco, homem sério e respeitador.
O Meireles era bastante ciumento. Desconfiava de Ernestina, coitada, a ponto de ela ser impedida de cumprimentar a vizinhança masculina. Certa feita, houve sério bate-boca com o garrafeiro, sem falar nos desentendimentos com o leiteiro e até com o entregador de jornais, um mancebo de quinze anos de idade.
Aquele não era o primeiro filho do casal. Havia dois outros nascidos no interior e José os tinha como seus, sangue do seu sangue, sem dúvida, pois ambos pareciam demasiadamente com ele. Já esse último…
A discussão durou mais alguns minutos. De repente, ouviu-se a voz de Meireles. Firme e decidido, anunciou:
– Pronto, padre, o nome do garoto será Valentino!
– Por que Valentino? – perguntou a mãe, inconsolada.
O desentendimento recomeçou.
– …
– Ele será um bom homem, sim, mas nunca um santo! A quem puxaria? A você?
– …
– Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amem! – concluiu o padre, depois de molhar a cabeça da criança com água benta e entregá-la de volta à mãe carrancuda.
***
Valentino teve uma infância sem muito conforto. Seus pais eram pobres e enfrentavam dificuldades normais a todo casal para alimentar os filhos e mantê-los na escola. A única renda da família provinha do emprego de José como funcionário público municipal. O garoto estudou pouco; concluiu apenas o primeiro grau. Inteligente, cresceu aproveitando a vida: jogava pião, bola de gude e muito futebol, sem, contudo, revelar-se um craque.
Desde criança, Valentino gostava de praticar artes manuais. Vez ou outra se aventurava na confecção de pequenos explosivos. Utilizava material reciclado de “bombinhas”, adquirido em pequenas lojas do gênero. Também mexia nas engrenagens de aparelhos jogados fora pelos proprietários, por considerá-los imprestáveis. Relógios, despertadores, secadores de cabelos, tudo para ele tinha uma serventia. Era versátil em suas habilidades manuais: trocava peças de equipamentos defeituosos, remendava aparelhos... Mexia em tudo que lhe vinha às mãos. Por isso, recebeu o apelido de Zé Colado.
Nos tempos de sua mocidade, era comum aos rapazes vestirem calças bem talhadas. A abertura por onde passavam as pernas era bastante apertada. Dobravam as mangas das camisas para ressaltarem os músculos, e nunca esqueciam de besuntar os cabelos com brilhantina, sempre bem cuidados para evitar que um fio rebelde fosse o motivo das constantes consultas ao espelho portátil. Valentino nunca se apartava do pente colocado no bolso traseiro da calça.
Zé gostava de frequentar o centro da cidade. Ali ouvia notícias, discutia política, futebol e assuntos de somenos importância. Dava conta de tudo que se passava nas ruas. Sem nada fazer, passava as tardes em bate-papos prolongados que se estendiam noite adentro.
Era um bom malandro!
Certa vez, para sua infelicidade, foi abordado por uma patrulha da polícia. Nessa ocasião, estava sem documentos e, por isso, foi preso. Levado à delegacia, a autoridade não gostou da roupa apertada que usava. As bocas da calça contornavam a parte inferior da perna com pouquíssima folga. O delegado abriu a gaveta da mesa de trabalho e retirou dali uma bolinha de bilhar. Aproximou-se do detento, puxou-o pelas calças, e soltou a esfera que percorreu a extensão entre a cintura e a perna esquerda, detendo-se na região do tornozelo, por falta de espaço.
O delegado agachou-se e com as mãos rasgou a abertura da calça por onde a bola de bilhar correu até parar junto aos pés de um policial em posição de “descansar”. O sisudo guarda batia o cassetete na palma da mão esquerda, inclinando a cabeça de cima para baixo; com um sorriso irônico, olhava para o pobre detento que tremia de medo.
– Trinta dias de “cana” – falou a autoridade, empurrando o preso em direção à porta de uma cela vazia.
A cadeia comportava três pequenas acomodações; uma delas ocupada por Valentino. Apenas um carcereiro cuidava da segurança dos presos.
Na solidão da nova morada, o inquieto prisioneiro pensava em dar um jeito de sair dali. Habilidoso no trato das palavras, como todo bom malandro, tentava obter um relógio-despertador.
– Para que você quer um despertador? – perguntou o guarda, intrigado.
– Gosto de acordar cedo.
– Acordar cedo, para não fazer nada?
– Sim.
O relógio-despertador chegou às mãos de Valentino depois de trocado por parte de suas refeições diárias. O guarda era esfomeado e isso bastou como pagamento.
No dia seguinte, Valentino chamou o carcereiro. Com os braços estendidos sobre a grade que lhe cerceava a liberdade, falou:
– Preciso de pólvora!
– Pólvora? Você ficou louco? – perguntou o guardião, desconfiado.
– Pólvora e limão. Estou com “empinje”. Os médicos chamam a doença de pitiríase, uma dermatose fortíssima. Minha mãe a curava com pasta feita de pólvora e limão.
O guarda ficou impressionado com a palavra.
– Piti... o que?
– Pitiríase versicolor.
Valentino carregou na pronúncia, deixando o policial espantado com seus conhecimentos científicos. Ele não sabia, mas o preso ocupava as horas ociosas com palavras cruzadas e lia almanaques anuais sobre curiosidades dos mais variados gêneros.
– …
– O almoço de hoje parece estar uma delícia; o de amanhã, também. O que você acha da troca?
– …
No mesmo dia, a pólvora e o limão foram entregues a Zé Colado. O limão, depois de inalado profundamente, foi jogado no lixo. A pólvora serviu para o engenhoso preparo do explosivo, que teria o despertador como instrumento de detonação.
O petardo seria acionado sem demora.
Valentino preparou a pequena bomba-relógio para as dezesseis horas.
O tic-tac do despertador impressionava apenas ao preso que o sentia no bolso da camisa. Faltavam cinco minutos para a sonhada liberdade. Nos cálculos de Valentino, ele voaria pelo telhado com a explosão da bomba. Cairia nas proximidades e de lá fugiria para longe daquele presídio desconfortável.
A bomba, finalmente, explodiu.
Buuum!
O prisioneiro voou como planejado. Caiu em cima de um telhado, mas ficou preso pela cintura da calça, espetado em um pára-raios. As mãos e os pés ficaram sem apoio, o corpo inclinado, a cabeça para baixo, vendo apenas o telhado escuro de uma casa distante, e o da cadeia onde estivera preso até há pouco tempo.
Os minutos, depois as horas, o angustiavam. De repente, sentiu um peso em sua cabeça. Era um urubu, grande e negro, de bico afiado, a beliscar-lhe a cabeleira untada de brilhantina. Zé Colado ergueu a cabeça para os lados, sem poder ver quem lhe picava o cocuruto. Então, perguntou:
– Quem és?
– Rapinaldo, urubu que sobrevoa a região a procura de comida.
– Olha, não faças isso comigo; eu não estou morto. Sinto a dor de tuas picadas em minha cabeça.
Nova beliscada.
– Ai! – gritou Zé Colado, sentindo a cabeça doer.
O grito estridente também tinha por finalidade afastar o urubu. A ave nem ligou. Sem se mexer, aplicou nova beliscada.
– Oh, seu filho da p… pára com isso! Não te disse que ainda estou vivo?
– Então ficarei aqui, pousado, esperando a tua morte. Depois…
– Rapinaldo, que é isso, cara? Ajuda-me a sair dessa. Depois te recompensarei…
– O que me ofereces de vantajoso?
– Um espelho. Retira-o do bolso direito traseiro de minha calça e vê que maravilha!
Rapinaldo não se fez de rogado. Desceu sobre as costas encurvadas de Zé Colado e retirou o espelho com o bico. Pegou-o com a ponta da asa direita e se viu em uma moldura arredondada: a cabeça com uma coroa vermelha, o bico curvo e afiado, os olhos cintilantes, o corpo negro… Achou-se bonito, mas insatisfeito com rebeldes penas esvoaçantes, que teimavam em não assentarem.
– É pouco. Prefiro uma boa refeição! – Falou espalhando os cabelos com o bico para nova investida.
– Não, pára com isso, cara! Viste como és bonito?
– Essas penas esvoaçantes não querem assentar em meu corpo. Reduzem-me a beleza – retrucou a ave, com certo pesar.
– Tenho a solução para o caso. Se concordares em me tirar daqui, te darei algo maravilhoso. Resolverá o teu problema definitivamente.
– O que será?
– No outro bolso, tira um pente, com o qual farás essas penas rebeldes ficarem juntinhas das outras; assim como o meu cabelo. Estás vendo? Não são bem lisinhos?
Novamente, Rapinaldo desceu pelas costas de Valentino, até o bolso indicado. A polpuda nádega aguçou-lhe o apetite. Beliscou-a com certa determinação.
– Ai, seu traidor miserável!
– Desculpa. Não resisti à tentação.
O urubu finalmente retirou o pente. Penteou-se, olhando no espelho sustentado pela asa esquerda. As penas acomodaram-se em sua plumagem igualmente às outras. Vaidoso, sentiu-se realmente bonito.
– Irei retirar-te daqui; mas prometerás fartar-me de comida pelo resto dos meus dias.
– Exatamente! Quantos cachorros, gatos… irás comer em tua vida! Prometo!
– Ah, é assim? Então pedes para salvar-te a vida e pensas em destruir a de outros? – disse o urubu, beliscando-lhe a cabeça com mais força ainda.
– Não… Isto é… quando morrerem, naturalmente.
– …
O esforço foi gigantesco. O urubu era forte e por fim conseguiu libertar Zé Colado, cujo rosto estava vermelho, quase roxo, por se encontrar há bastante tempo naquela posição.
Tornaram-se amigos. Zé Colado – assim Rapinaldo gostava de chamá-lo – cumpriu a palavra empenhada ao urubu. Sempre oferecia ao seu salvador uma boa alimentação, fresquinha e saudável.
Todas as manhãs, Rapinaldo voava pelos arredores para exercitar as asas e, quase sempre, trazia consigo os restos de uma carniça, sua refeição predileta.