Os Últimos Venovs

No meio da cidade uma jovem adolescente, caucasiana, de longos cabelos castanhos, quase loiros, caminha. Seus olhos castanhos claros amendoados são belíssimos. Descalça, usa apenas um longo vestido branco, um pouco velho e sujo, mas a beleza da moça consegue fazer com que o vestido se torne banal. Aqueles cabelos sedosos, aquele pele alva e pura. Sua simpatia fascina a todos apenas com um olhar.

Ela para em certo ponto e começa a cuidar de algumas crianças vagabundas; parece amar crianças. Pega-as no colo tratando-as como suas próprias proles. Brinca com elas como se também fosse uma criança. Todos os dias são assim, algo bem rotineiro.

Agora, depois de ver como estão as crianças, se dirige até sua casa para cuidar do enorme jardim que possui. Mora no castelo da cidade, mas não descende da nobreza. Sua família pertence a uma casta de conselheiros de famílias nobres desde muitas gerações e possuem poucos bens territoriais e materiais. Ela não se importa com tais bens.

A jovem chega ao jardim e pega um regador. Existem cinco enormes canteiros de tulipas, dispostos circularmente em volta de um vaso que fica sobreposto num pequeno altar. Cada canteiro possui tulipas de cores variadas. Brancas, amarelas, róseas, vermelhas e roxas. No centro uma raríssima tulipa está no vaso, solitária, uma tulipa de pétalas negras, mas a base e as anteras da flor são brancas. A jovem rega todos os canteiros e por último se volta para a tulipa negra ao centro, cuidando muito bem dela, acariciando com enorme afeição a flor.

Numa janela próxima, no térreo do castelo, um jovem de cabelo castanho escuro, este que quase cobre seu rosto, lê um livro. Algumas vezes os olhos escuros do jovem fixam-se nela com certa curiosidade, ela percebe e olha para ele sem citar uma palavra, apenas dando-lhe um sorriso gentil. Ele a ignora e torna a ler, sempre sério. Sempre frio.

Sem que nenhum dos dois perceba uma mulher de longos cabelos ruivos e olhos castanho-avermelhados entra no jardim sem avisos. Com um longo vestido nobre de tom vinho e poucos detalhes brancos ela demonstra nobreza. Seus cabelos presos num coque e com algumas mechas frente ao rosto dão a ela um ar de beleza reprimida. Possui postura firme, ar ferino e olhar culto.

- Quero sua tulipa negra; a mulher ruiva fala friamente para a jovem. Suas palavras inexpressivas chamam a atenção do jovem leitor na janela. A jovem apenas balança a cabeça negativamente sem nada dizer.

- Por quê? Que queres em troca de tão rara flor?; a mulher insiste, mas novamente a jovem apenas balança a cabeça negativamente em resposta.

- Garotinha petulante, por que não responde normalmente? Não foi educada?

Nesse momento o jovem leitor fechou o livro, pulou pela janela e se aproximou rápido enquanto falava em voz alta: - Mulher ignorante! Não percebe que ela é muda? Seu nome é Laeria, desde pequena nunca proferiu uma única palavra, meu pai dizia que quando ela nasceu nem conseguia emitir choro.

A mulher ruiva se irrita com os maus modos do rapaz. Perfura-o com o olhar e levanta novamente sua voz irritante: - Ora, ora... Outra criança petulante e mimada! Quem é você criatura?

- Chamo-me Sirian Venov, sou irmão dela, e quem é você para chamar-nos de petulantes? Você que invadiu o jardim de minha irmã e lhe ordenou que desse sua mais preciosa flor sem ao menos se apresentar.

Ouvindo essas últimas palavras a mulher se irrita mais, depois se aproxima dos dois dizendo: - Se não me deres a flor por bem, a tomarei sem gentilezas!

Sirian coloca-se entre sua irmã e a mulher, mas ela o golpeia com um único tapa que o derruba no chão. A mulher é estranhamente forte, Sirian não sabe como, nem porque, mas ela é muito forte. Laeria fica sem reação, pasmada, não compreendendo nada daquela situação ameaçadora. Vê-se frente à mulher que parece enorme por conta de tamanha fúria e fica imóvel com a expressão de uma criança que acabara de sofrer a reprimenda de um adulto.

No chão Sirian se recupera do golpe e tenta erguer-se inutilmente. Então vê a mulher abrindo a mão para sua irmã, as unhas dela que já eram grandes pareceram tornar-se maiores, afiadas, pontiagudas, enormes. A pele das costas da mão dela parecia, repentinamente, um tanto escamosa, uma escama vermelha e brilhante como um rubi. A mulher desferiu o golpe contra a jovem.

Laeria foi ao chão com quatro cortes na lateral esquerda de seu pescoço subindo para o rosto, desmaiou de imediato. O sangue espirrou manchando as tulipas em tom avermelhado. Sririan viu aquilo e temeu pela vida de sua irmã. Correu em direção a mulher para tentar qualquer coisa. Agarrá-la, derrubá-la, matá-la, qualquer coisa. A mulher foi mais rápida, se virou para ele agarrando-o pelo pescoço e erguendo-o no ar.

- Daria sua vida pela de sua irmã?

Ele respondeu enquanto era sufocado, com uma expressão de ódio no rosto:

- To... todas as... vidas... que eu... pu-pudesse viver!

- Que assim seja.

A mulher recitou palavras incompreensíveis para Sirian, quase como uma música funebremente sussurrada, mas que ele fazia idéia do que poderia ser. Depois fez alguns gestos com a mão que estava livre e tocou a testa do jovem. Aos poucos sua pele começava a cobrir-se com pedra. A mulher o largou no chão e ele se tornou uma estátua, ajoelhada no jardim, a face cabisbaixa numa eterna expressão de raiva com lágrimas de ódio e os dentes cerrados. Ele fora alvo de uma poderosa magia.

Horas depois Laeria acordou numa cama, era madrugada, seu rosto e pescoço ardiam debaixo dos curativos, mas ela não se importava com aquilo, não naquele momento. Levantou-se da cama desesperada procurando pelo irmão, foi até o quarto dele. Não o encontrou. Foi até a biblioteca do castelo que ele sempre freqüentava. Não o encontrou. Percorreu incontáveis corredores e cômodos até pensar em averiguar seu jardim.

Chegando ao local ela encontrou a estátua de seu irmão com aquela eterna face de ódio. Horrorizou-se. Aproximou-se da estátua e começou a chorar abraçando o monumento sem vida. Chorou por toda a madrugada no ombro da estátua, tentando pensar se haveria um meio de trazer seu irmão de volta.

A tulipa negra tinha sido levada pela mulher ruiva. Laeria sentiu raiva. Seu irmão havia ficado mais de um ano fora para encontrar uma tulipa daquelas para ela. As tulipas negras estavam em extinção. Laeria entrou no castelo e voltou à biblioteca.

Meses se passaram com ela trancafiada naquele lugar entediante, procurando nos livros mais antigos uma solução e suas feridas já haviam se tornado cicatrizes. Não saia de lá nem para comer e as serventes do castelo tinham de lhe implorar para que ela colocasse algo na boca. Diziam que precisava de forças se queria encontrar a cura de seu irmão.

Laeria não tinha mais ninguém, nunca conheceu o pai e sua mãe morreu enquanto lhe dava a luz. O pouco que sabia sobre o pai seu irmão que lhe contara. Disse que ele fora um homem inteligente e de grande força de vontade, que batalhou muito para conseguir o título de conselheiro da família real Hadragan, e que desapareceu depois que teve de entregar uma mensagem diplomática a outro nobre. Sirian cuidou dela sozinho desde que ela tinha cinco anos, a ensinou tudo que ela sabe, até mesmo a ler. Sirian não era apenas seu irmão, era muito mais que isso, tudo que tinha de mais valioso em vida. Ela o amava acima de qualquer coisa e apesar da frieza do irmão, sabia que ele sentia o mesmo.

Durante quase dois anos na eterna esperança de encontrar uma cura para o único com quem ela realmente se importava o que conseguiu foi pouco, mas tinha uma pista. Descobrira um manuscrito sobre um antigo monge que havia sido banido de seu monastério depois de roubar pergaminhos que supostamente guardavam muitos segredos, como o da imortalidade. O monge ficou famoso por seu furto e virou um grande comerciante do mercado negro, um de seus compradores era a rica família para quem os Venovs serviam.

Quando um dos filhos da família Hadragan ficara severamente doente, o pai de Sirian e Laeria fora convocado para encontrar esse monge mercador em busca de uma cura. Ele teve sucesso e a partir desse dia, como gratidão, os Hadragans acolheram para sempre os Venovs enquanto esses, para não se sentirem aproveitadores de tamanha hospitalidade, prestavam os serviços que podiam à família de nobres.

Tudo isso constava num antigo registro da família que Laeria achou na biblioteca, incluindo um mapa com a localização da pequena “casa de comércio” do monge profano. Ela juntou todos os pertences e esperanças que pudera para seguir em busca de uma cura.

A viagem era mais longa e difícil do que imaginava. Sentiu no corpo e no espírito o que seu pai tivera de sentir para lhe presentear o conforto em que ela sempre vivera. Concluiu que o preço por salvar o filho da família Hadragan não era justo, mas que aquilo era pouco para trazer Sirian de volta.

Enfrentou calor e frio, florestas e pântanos perigosos ou proibidos, e por fim desfiladeiros e declives sinuosos onde quase perdera a vida, mas seu desejo em trazer de volta seu irmão conseguiu superar todos os desafios. Então no topo de uma colina abandonada pela civilização uma pequena cabana jazia. O local parecia muito bem conservado, porém não havia sinal de vida. Foi bater na porta, mas hesitou por alguns instantes parando a mão fechada frente a ela. Começou a se sentir leve, no fim de uma jornada. Estava cansada e já havia se passado quase dois anos desde o incidente da tulipa negra.

“Tudo valeu a pena, trarei meu irmão de volta a qualquer custo...”; pensou consigo determinada e em seu íntimo sorriu, pois sabia que conseguiria libertar seu irmão. Não entendia como poderia saber isso, mas se sentia feliz apenas por saber, não precisava compreender.

Interrompendo seus pensamentos a porta da cabana abriu convidativamente, a jovem se espantou a princípio e depois viu uma figura por trás de uma espécie de balcão bem ao fundo da sala de entrada.

- Quando tempo mais demorará a entrar? Senti sua tamanha determinação do lado de fora da cabana... Alguém precisa de sua ajuda?; suas palavras eram amigáveis, mas seu sorriso era medonho.

O velho monge não mostrava seu rosto, um capuz cobria parte de sua face e apenas sua boca podia ser vista. Laeria deu o primeiro passo adentro e notou que a cabana parecia ser bem maior por dentro, além disso incontáveis objetos estavam espalhados por todo lugar, dos mais comuns aos mais exóticos, cada um deles único a sua maneira. Pensou em como poderia um velho monge proteger tantas coisas a ponto de ninguém tê-lo roubado ainda, formou hipóteses e já cogitava a idéia da própria cabana ser uma espécie de artefato mágico. Não era tão inteligente quanto Sirian, mas ainda era uma Venov.

- Que queres em minha humilde cabana?; novamente ele interrompera seus pensamentos.

Laeria retirou de sua mochila um velho pergaminho, uma pena e tinta. Escreveu: “Quero uma cura.”, e mostrou ao monge.

- Para quê?; pareceu entender que ela não podia falar. - Provavelmente deve ser para algo quase irremediável a ponto de você vir até a cabana desse velho monge... – ele ainda sorria com malícia e ela começava a sentir escárnio daquele sorriso debochado.

Ela começou a escrever tudo o que ocorrera da forma mais resumida possível e como estava inconsciente quando seu irmão havia virado pedra não pode detalhar o que havia acontecido. De qualquer forma as poucas informações dadas foram o suficiente para que o monge pudesse decifrar aquele enigma

- Realmente, seu irmão está com sérios problemas. Ele foi vítima de uma magia de petrificação, mas não uma magia comum, pois a mulher que a conjurou pertence a uma rara raça que alguns pensam que foi extinta, os dragões. Dragões possuem um enorme potencial mágico natural. Meus perdões, mas não posso fazer nada.

Para ela pouco importava quem era a mulher ou o que ela havia usado contra seu irmão, ela apenas queria tê-lo de volta e se preocupou apenas com as últimas palavras do monge: “...não posso fazer nada.”.

Novamente Laeria pegou um pergaminho e escreveu com os olhos cheios de lágrimas as palavras que demonstravam sua determinação: “Por favor... quero meu irmão de volta a qualquer custo...”; ela o olhava seriamente e sentia como se, mesmo debaixo daquele capuz ele pudesse perceber toda sua tristeza.

- Existe um meio, um que nunca tentei. - ele se levantou e foi até uma das muitas estantes procurando por algo em meio a tantos artefatos enquanto ela o observava esperançoso. Depois ele voltou com um cordão fino e dourado que possuía um pingente com o símbolo de uma chama azul.

- Esse é o Amuleto da Alma, ele possui poderes místicos e dizem que aquele que o usar terá sua alma eternamente presa à de sua pessoa amada, também dizem que ele possui estranhos poderes de cura. Você deve colocá-lo em seu pescoço e pensar profundamente em seu irmão, assim... trocará de lugar com ele e seu desejo de libertá-lo se concretizará. Lendas dizem que a entidade patriarca dos deuses criou esse cordão.

Laeria não precisou pensar, apenas se levantou e com um olhar determinado, acompanhado de um sorriso de satisfação, acenou com a cabeça afirmativamente para o monge enquanto lhe estendia a mão para que ele lhe desse o cordão, o que ele fez também sem hesitar, quase o dando como um presente de um amigo fiel. “Você também precisa de algo que lembre seu irmão, algo que ligue intimamente vocês dois...”; disse ele enquanto Laeria colocava o cordão no pescoço.

Ela levou uma das mãos por dentro da gola de seu vestido e tirando de lá um grosso cordão de prata que possuía três “vês” cravados num pingente, o símbolo do primeiro Venov. O velho monge apenas sorriu sem questionar nada, compreendendo perfeitamente a importância do objeto, depois se afastou um pouco sentando numa cadeira e observado com atenção tudo que acontecia. Sabia que ela não poderia lhe pagar o suficiente por tão raro artefato, mas não se incomodava com isso, pois finalmente poderia vê-lo sendo utilizado. O preço dela seria ser sua cobaia.

Laeria não largou o cordão, que era para ela mais que uma herança de família. O objeto era passado pelos Venovs sempre de pai para filho, mas Sirian havia dado para ela com as seguintes palavras: “Quero que fique com você. Eu não terei filhos, não me casarei, não me apaixonarei, isso não é mais possível para mim...”; também lembrou-se que no momento em que ele lhe disse tais palavras Sirian não parecia triste apesar delas soarem como sinônimos da mais pura tristeza, na verdade ele sorria como se nada mais importasse.

Sem perceber, ela estava se tornando pedra. A lembrança daquele momento onde o amor entre ambos foi puramente demonstrado ativou o amuleto, Laeria continuou de olhos fechados enquanto seu corpo se petrificava dos pés a cabeça, continuou apenas pensando em seu irmão. Nos últimos instantes antes de tomar para si a maldição de Sirian, ela estava sorrindo e sussurrou, sem proferir nenhum som, o nome dele. O Amuleto da Alma havia desaparecido.

Depois da jovem muda ter se tornado pedra o velho monge manteve seu sorriso malicioso em face. Levou os dedos a boca e soltou um forte assovio, em seguida um falcão surgiu e pousou na janela. O velho voltou-se para a mesa onde estavam os pergaminhos, a pena e a tinta que a jovem havia usado, então escreveu:

“Lorde Mathews, tenho um presente para você.

Seu amigo monge.”

Foi até a janela e amarrou o pergaminho na perna do falcão, depois sussurrando-lhe como que em segredo: - Para a mansão dos mortos...

Muitos quilômetros longe da cabana do velho monge, no castelo da família Hadragan, mais especificamente no jardim de Laeria, Sirian havia voltado ao normal. Já era um outro outono e muitas folhas o rodeavam, folhas secas, folhas mortas... Continuou ajoelhado no chão e começou a chorar sentindo uma estranha dor e ausência inexplicável em seu peito.

Recompôs-se, levantou-se, mas antes de sair do jardim notou a ausência da tulipa negra. Fechou os olhos e serrou o punho. “Maldita mulher!”; pensou consigo, mas afastou os pensamentos logo em seguida: “Não tenho tempo para isso, preciso encontrar minha irmã.”

Parecia compreender sem muito esforço que Laeria havia saído para encontrar uma cura para ele, também sabia de alguma forma que havia se passado muito tempo depois do evento no jardim. Nada disso importava, tudo que queria agora era poder abraçar Laeria, nem que para isso tivesse que ir buscá-la no outro mundo.

Arrumou alguma comida e alguns equipamentos, preparou seu cavalo e sem se despedir de ninguém partiu com poucas pistas de onde estaria sua irmã. Sob uma tarde quente o último Venov saiu em sua última aventura. Anos se passariam enquanto Sirian salvava incontáveis donzelas que pudessem ser Laeria e mesmo depois que todas as suas esperanças se esvaíssem ele continuaria a procurar até o último dia de sua vida por que o amor que nutria por sua irmã era a única coisa que o mantinha vivo.

Nunca mais ninguém ouviria falar dos Venovs...