A espera das Gárgulas

Gion estava em queda livre, o vento gelava seu rosto, os olhos lacrimejavam e o chão crescia à sua frente. Encarou o asfalto até o último segundo, então cerrou os dentes com força, quase sangrando seu lábio inferior. E o que parecia uma queda inevitável torna-se um vôo rasante a poucos metros do chão. Ele imprimiu velocidade e logo tomou altura por entre os prédios voando acima das ruas desertas, seus olhos viam o mundo em tons de sépia e as estrelas que outrora eram prateadas pareciam-lhe agora tochas flamejantes, como se cada alma que não habita mais esse mundo tivesse acendido uma vela para iluminar a sua liberdade. Logo começou a ouvir um murmúrio embora não visse ninguém, nem nas ruas e nem nos prédios, poderia ser o barulho do bater de suas asas, mas bater de asas não se parece com grunhidos. Ele planou até o chão e mesmo imóvel continuou ouvindo aquela fala grotesca sussurrada pelo vento no seu ouvido. Foi ai que ele viu Augustine, no topo mais alto, do prédio mais distante, caminhando em cima do parapeito em direção ao nada. Tudo era sépia, menos Augustine que parecia brilhar caminhando de pés descalços como um sonâmbulo na beira de um abismo sem se dar conta que esta estendendo sua mão à morte. Assim que ele a avistou, começou a entender os sussurros que pareciam agora uma oração: “A vida de um, é a eterna solidão de outro. O vôo de um, é a perda das asas para outro, até o dia do grande chamado, até o dia da redenção.”

As palavras se repetiam na sua mente como um mantra satânico. Gion batia suas asas com todas as forças na direção de Augustine, mas ele sentia o peso do mundo em suas costas enquanto ela seguia com passadas largas e lágrimas nos olhos. Ele ainda estava muito distante quando Augustine colocou o pé direito na beira do parapeito e o esquerdo pisou o nada. Ela caiu leve e sem desespero, entregou-se à queda que durou poucos segundos, suas costas encontraram o chão, Gion que pousou logo depois ao seu lado ainda pode escutar seu último suspiro. A pele de Augustine era tão branca quanto o seu vestido, ela encarava Gion com seus olhos mortificados deitada em um lençol de sangue que se alastrava rapidamente. Seu mundo sépia estava manchado agora com o vermelho púrpura que brotava dela.

O sol perseguia os últimos vestígios de noite que ainda resistiam àquela manhã quando Gion despertou de sobressalto, odiou-se por ter esse sonho há anos e ainda assim acordar assustado, aliás, ele nunca teve outro sonho senão esse. Suspirou com um tom de lamento e permaneceu imóvel. Afinal, é o que compete a uma Gárgula, permanecer imóvel, aguardando petrificado até o dia do grande chamado para reaver tudo o que foi perdido, para viver a sua redenção.

Fábio Monteiro
Enviado por Fábio Monteiro em 02/05/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1571009
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