A herdeira
Chovia forte e ventava. As gotas da forte chuva respingavam na pequena janela com o vidro trincado daquele cubículo deveras chamado sala de trabalho, mais um temporal estava caindo na cidade. Sophia estava sentada em seu escritório, pensava em suas dívidas e preocupava-se em como iria pagá-las a tempo de não perder tudo o que seu pai havia construído com muito sacrifício durante sua vida, o velho escritório de contabilidade. Não sabia ainda como havia entrado nesse ramo, acabara sendo obrigada a seguir os passos do pai, o antigo contador da pequena cidade, que falecera há alguns anos e lhe deixara o negócio. Teve de abandonar sua profissão, sua carreira no direito, a qual não andava nada bem na verdade.
Olhou novamente pela janela...
- Não agüento mais essa cidade, chove o tempo todo! – Comentou para si mesma.
Resolveu que o melhor seria ir para casa e descansar um pouco, afinal não poderia resolver os problemas financeiros em tão pouco tempo, a única solução seria vender o negócio para um amigo de seu pai que havia oferecido um valor considerável. Vestiu a capa preta, pegou o guarda-chuva, as chaves, e a pasta, com os documentos importantes. Saiu do minúsculo escritório e trancou a porta. Desceu os degraus da entrada, seu carro estava ali em frente ao velho prédio. Nesse momento a chuva aumentou e o vento ficou mais forte, destruindo o guarda-chuva. Sophia acabou se molhando por completo até entrar no carro. Ela praguejou, mas já estava encharcada! Dirigiu uns 20 minutos até chegar à velha casa. Mais um imóvel que herdara do pai. Havia deixado seu pequeno, porém confortável, apartamento na cidade grande. A única coisa que trouxera consigo fora seu gato preto, Salem.
Sophia buscava respostas em sua vida e acabou encontrando algo inesperado quando recebeu, naquela mesma noite, uma ligação. Uma tia distante, a qual ela nem tinha conhecimento da existência havia morrido e lhe deixado uma herança, a herança de sua tia Helena veio para modificar sua vida da maneira mais impensada possível. A tia falecida havia lhe deixado uma casa antiga, numa cidade um pouco distante de sua residência atual. Então ela percebeu que realmente havia chegado a hora de se desfazer do escritório que não lhe dava nada além de dívidas e preocupações. Fez o negócio com o amigo de seu pai no dia seguinte, o qual ficou responsável pela casa onde ela morava, caso a mudança não desse certo. Pelo menos o imóvel não ficaria abandonado. Tudo foi muito rápido e a mudança foi feita realmente às pressas, pois a garota não agüentava mais aquela vida sem nenhum acontecimento e o testamente dizia que havia um prazo a ser cumprido.
Sophia ficou encantada com o antigo casarão, era muito mais do que ela havia conseguido imaginar, era uma mistura de estilo gótico com o barroco, algo inenarrável e indescritível realmente, de arquitetura perfeita.
Augusto e Celeste, os empregados da casa foram recebê-la à porta, juntamente com o advogado. Pesadas cortinas de veludo vermelho pendiam do alto das enormes janelas que recebiam toda a luz possível do dia e do luar da noite. Os empregados iam à frente carregando as malas, enquanto Gustavo, o advogado, lhe contava a história da casa e também sobre sua tia Helena. Estavam passando pela biblioteca, e algo chamou a atenção de Sophia e ela resolveu entrar no cômodo. Além das enormes estantes com milhares de livros, encontrava-se lá o quadro antigo de um homem, um retrato... Ela sentiu um arrepio percorrer seu corpo inteiro. Uma alma imortalizada na pintura de um antigo quadro. O retrato parecia ter vida, seus olhos possuíam um brilho inexplicável. Parecia que ele acompanhava cada passo e movimento com o olhar penetrante. Ela sentiu sua presença, parecia conhecê-lo de muito tempo. Gustavo a chamou tirando-a de seus pensamentos. Os empregados se entreolharam, sabiam que deveriam ter evitado a vinda de Sophia para a casa. Não poderiam deixá-la saber da verdade, não poderiam deixá-la descobrir sobre Leonard. Teriam de convencê-la a vender a casa. Mas mal sabiam eles que isso seria impossível de acontecer, devido a uma cláusula do testamento deixado por Helena, a qual queria que a sobrinha tivesse conhecimento sobre aquele personagem, o principal de sua história.
Sophia passou a primeira noite não muito tranqüila no casarão, sonhou com o quadro e decidiu que precisava saber mais sobre a história do lugar, sobre sua nova casa. Os dias passaram, mas ela não conseguiu descobrir nada sobre a história do quadro, apenas descobriu o nome do personagem que o habita, Leonard, que com muita insistência foi revelado por Celeste. A empregada contou algo além do nome, disse que há muitos anos, senão séculos, ele havia sido o proprietário do casarão, era um homem muito importante na região. Acabou morrendo de tristeza após a morte de sua esposa e de seu filho durante o parto. Não conseguiu nenhuma informação mais aprofundada. Sentia que nenhum dos empregados parecia contente com sua presença na casa, tentavam impedi-la de entrar na biblioteca. Mas a cada noite ela sonhava com Leonard, e ele começa a lhe contar sua história, e todos os dias ela visitava o cômodo proibido para ver aquele sorriso.
Ela precisava descobrir o porquê da pintura parecer tão real e cheia de vida, afinal era o retrato de uma pessoa falecida, não deveria dar tanta importância. Leonard continuava a persegui-la com seu olhar, a guiava em seus próprios sonhos, queria lhe contar sua verdadeira história, mas para isso Sophia precisava entrar no mundo dos mortos. E todos sabem que o mundo dos vivos pode ser governado pelo mundo dos mortos, se assim lhes for permitido, é o que dizem pelo menos. Ela precisava descobrir, não apenas por curiosidade, mas também para tirar essa dúvida da cabeça. Teria ela sido a esposa de Leonard como ele lhe mostrava durante seu sono?
E durante um de seus sonhos o personagem do quadro a conduz para o mundo dos mortos, um lugar reservado somente para os imortais. Sophia está no jardim, teve a impressão de ouvir uma melodia que parecia vir de longe, uma dança com a morte ela pensou num rompante de segundo. Chega a um salão de bailes, e então ela encontra o seu imortal... O cavalheiro está à sua espera, ele lhe faz uma reverência, ela se aproxima. Os dois dançam pelo enorme salão, como duas almas únicas e pertencentes um ao outro. Era ele, seu imortal, seu Leonard e finalmente eles estavam juntos por um breve momento...
Sophia acorda assustada, olha em volta, está em seu quarto, levanta rápido da cama e corre até a biblioteca. Lá está Leonard, com seu olhar penetrante, porém aparentando uma leve tristeza. Celeste e Augusto tentaram esconder em vão sobre um passado distante, sobre o outro mundo, o mundo das almas imortalizadas, onde os que morrem por amor ficam presos até reencontrarem sua alma perdida. Agora aquele quadro era apenas um retrato na parede, criado com alma por algum artista desconhecido. O imortal repousa no mundo dos mortos enquanto seu amor precisa continuar sua jornada no mundo dos vivos até que eles possam novamente estar juntos para todo o sempre.