PROSA MITOLÓGICA - CONTO 08 - MEDUSA

MEDUSA

Nem sei direito o que me leva a escrever, talvez seja a felicidade. Sim, felicidade. Ele esteve aqui ontem, lindo, maravilhoso, sua barba me faz estremecer. Tão imponente, majestoso. Aliás como convém a um deus. Espero que Anfitrite não descubra nosso romance. Será que devo dizer a ele que..., não, melhor deixar a natureza seguir seu caminho natural, faltam muitos meses ainda.

Ontem minhas irmãs Ênio, Pêfredo e Dino passaram por aqui. Por todos os deuses e deusas, como estão velhas. Bom, o que poderia esperar? Já nasceram velhas. São chamadas de Gréias, ainda hoje não me acostumei direito com essa mania que elas têm de ficar passando o olho e o dente umas para as outras. Difícil reconhecer algum parentesco entre nós, mesmo sabendo que todas nascemos do mesmo ventre. Estou com saudades de meus pais. Há muito tempo que eles não nos visitam, acho que a última vez foi há cem anos, ou será que já se passaram duzentos? Difícil saber quanto tempo se passa no mundo dos humanos por aqui. Essa região é distante de tudo e de todos, a única beleza que temos aqui é o jardim das Hespérides. O dragão que toma conta de lá é meu amigo, mas mesmo assim não me deixa pegar nenhuma maçã. Diz que pertencem a Hera. Bah, aquela perua, não larga do pé do Zeus. Bom, com um homem daqueles também tem que ficar em cima, marcação cerrada mesmo. Do jardim tenho uma visão bem bonita. Ao fundo podemos ver o Atlas segurando a abóbada celeste. Também quem mandou querer lutar contra o Zeus? Tá eu sei, ele obedeceu a mãe dele, Gaia que não queria ver os filhos presos depois da Titomaquia. Acho que é assim que os humanos chamam, a luta dos deuses contra os seus ancestrais Titãs.

Os gigantes desafiaram os deuses e também perderam, como castigo o Atlas fica ali, carregando aquele peso todo.

Hoje a coisa está feia aqui, as minhas outras irmãs Esteno e Euríale estão brigando, melhor nem me meter. Afinal elas nasceram imortais, tal qual as Gréias. Eu não. Nasci mortal. Estranho isso, meus pais são deuses legítimos. Não é como muitos que andam por aí dizendo que são isso e aquilo e na verdade cantam vantagem sem ser nada disso. Muitos heróis que andam por aí são de mães mortais, portanto são tão frágeis como eu.

Complicado esse negócio. Pai deus, mãe humana, filho ou filha mortal. Ah, deixa para lá, eu sou feliz do jeito que sou.

Meu maior prazer é mexer nas minhas estátuas. Acho que já são quatro ou cinco mil, sei lá, nunca me preocupei em contar. Outro dia Esterno veio reclamar que eu precisava organizar aquilo tudo , colocar uma ordem, tirar do nosso quintal que já não cabe mais nada. Naquele dia mesmo eu arrumei mais duas. Quando cheguei em casa com as ditas cujas, nossa, o mundo quase desaba na minha cabeça. Mas eu sempre dou um jeito, arrumo um canto que não atrapalha ninguém e coloco lá minhas criações.

Acho que vou conversar com o dragão para ver ser posso colocar as estátuas em volta do jardim, acho que iria ficar bonito. Não que o jardim já não seja bonito, muito pelo contrário, é lindo, e a macieira que dá maçãs de ouro é a árvore mais linda de todas. Mas nem posso chegar perto. Ordens da Hera diz o dragão. Essa Hera, qualquer dia desses saio daqui e vou tirar umas satisfações com ela. Onde já se viu, proibir eu e minhas irmãs de passearmos no jardim.

Esses dias estou tendo uns sonhos esquisitos, quando acordo não me recordo direito mas preciso ficar atenta, acho que Athena e Hermes estão tramando alguma coisa. Não sei de onde vêm essa impressão, mas eu sei que os deuses nunca gostaram muito nem de mim ou das minhas irmãs. Ah, deixa para lá, o negócio e cuidar das estátuas, estou pensando em organizá-las por tamanho, colocar as grandes ao fundo com um espaço entre elas de modo que consiga colocar as menores neste vão. Acredito que fica bonito assim. Ontem eu coloquei algumas em volta do jardim. Num cantinho afastado, assim se a Hera aparecer por aqui não fica histérica.

Hoje acordei um pouco enjoada, acho que são os bebês, ah, não contei? São dois, ainda não falei nada para o Posseidon, acho que ele vai ficar contente. Faz algumas semanas que ele não aparece. Mas deus e homem é tudo igual, depois que consegue aquilo que quer fica assim, meio distante. Não posso recriminar ninguém, sei que ele nunca vai largar sua mulher para morar comigo, o que vai ficar dessa relação são os filhos que carrego no ventre. Depois para morar com ele eu precisava ir para o mar, justo eu que fico enjoada só de ver o balanço das águas em um lago, imagine morando no palácio dele. Não, fico aqui mesmo, se ele não aparecer mais, paciência, ficam as lembranças.

Estou com aquela impressão de novo, alguma coisa vai acontecer hoje e não vai ser boa coisa. É algo indefinido, como uma premonição. Sei que o destino já marcou algum acontecimento, mas não sei precisar o que é.

Outro dia vieram me contar para tomar cuidado com um tal de Perseu. Me disseram que bebeu demais em um banquete que ofereciam ao rei Polidectes e como estava bêbado o tal aí prometeu para esse rei a minha cabeça. Ah, ele que venha, esses humanos são gozados. Bebem, não sabem o que falar e prometem besteiras. Acho que em breve terei mais uma estátua para minha coleção.

Ah, as estátuas, estão ficando bonitas com a nova organização que estou fazendo. Estou fazendo o inventário delas também, contar, classificar, cronologia. É, cronologia, eu lembro de cada uma delas individualmente. Algumas mais antigas possuem pequenas rachaduras, acho que vou precisar improvisar algo, não quero que nenhuma se quebre, deu trabalho fazer cada uma delas, e apesar dos protestos da minhas irmãs não pretendo me desfazer de nenhuma delas.

Estranho, quem é aquele homem que está vindo ali? De costas? Droga, as meninas estão dormindo vai sobrar para eu atender mesmo. Nossa as cabeças de serpente hoje estão agitadas, faz tempo que não ficavam neste estado. Será que têm alguma coisa a ver com o estranho? Ei, têm alguém com ele.

Nem acredito a danada da Athena está carregando um escudo de bronze, vem na frente do homem. Todo polido, bonito esse escudo. O estranho ainda anda de costas, paciência, cada um com sua mania, vou lá ver do que se trata. Quem sabe não consigo uma estátua nova em folha?

Por todos os deuses e deusas ele não se vira para me ver, está tão pertinho, o quê é aquilo nos pés dele? Sandálias aladas? Sinto o dedo do Hermes em tudo isso. Afinal está aqui, agora vai ter de se virar para me olhar, não têm jeito.

Ele ainda carrega uma foice, será que esse aí é o....

Com um golpe único Perseu decepa a cabeça da Medusa e a guarda no alforje, do sangue do monstro saem Pégaso o cavalo alado e Crisaor um gigante que brande um reluzente espada de ouro. O barulho acorda as irmãs da Górgona que tentam pegar Perseu, mas o herói escapa indo viver outras aventuras depois de livrar o mundo da única Górgona mortal. Tempos depois a cabeça do monstro é adicionado ao escudo de Athena