A Visagem
As planícies parecem inóspitas quando o sol do meio-dia está sobre elas. Os mandacarús e o terreno meio acidentado por erosões causadas em invernos passados parecem se completarem nesse quadro de caduquice invernal. Chuvas que talhavam na rocha pequenos rios onde se corria água e hoje se corre o calango. Não são árvores ali no horizonte, mas paus retorcidos de sede. Retorcidos pela quintura que prevalece nesses períodos áridos. O azul do céu limpo e lindo em contraste com a carniça que serve de baquete aos urubus. A arribação perto. A rês morta era mal agouro prá aquelas bandas de terra esquecida por Deus. A gente caminha e pisa na ossada de algum bicho. Bem era gente como a gente. O caminho, antes margeado por algumas plantinhas, hoje é mera parte de deserto. Um caminho imperceptível em todos os pontos. Um vaqueiro atravessa aquele mormaço. De gibão e sem medo, com seu aió a tiracolo e a espingarda carregada na mão, vai vagarosamente no lombo de um cavalo não muito nutrido. O cachorro vai ao lado do homem. A língua de fora denuncia sua secura. E sertão é desbravado por aquele homem só. Caça-se preás ou tejos. Sim, apesar de dizerem que tejos comem defeuntos, a fome se torna maior que qualquer medo do desconhecido. Antes enfrentar o cão de barriga cheia do que chegar ao céu o couro e os osso. O bucho é prioridade na seca abrupta dos nordestinos. O vaqueiro sabia disso. Mirava um preá e o tiro era certeiro; o cachorro ia pegá-lo e o desjejum estava garantido. Mas o pobre cavalo não come carne, então, para não vê-lo sofrer, o vende na primeira parada. Continua-se a pé. Cansaço. A lua surge e o frio parece amansar o calor do dia. Debaixo de um juazeiro sem espinhos, ao pé de uma cerca, o vaqueiro descansa. O amanhã se torna um incomodo inesperado.
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Ao passar por uma rocha em forma de ovo deitado, o vaqueiro viu uma mulher grávida aos gritos de dor. O vestido branco estava se avermelhando. A mulher paria no meio do nada. Os gritos ecoavam pela planície deserta e por um instante o homem não sabia o que fazer. Estático, imóvel, completamente volátil aos acontecimentos que testemunhava, o homem via mulher gritar cada vez mais... Ele corre para acudí-la. O sangue brotava feito água de cacimba boa entre as pernas da elementa; o vestido se encarnava mais ainda. O homem arregaçou as mangas da camisa azul celeste e levantou o vestido ensagüentado. A mulher soltava mais gritos que, de longe, lembrariam agouros de alguma alma desgraçada. Lamentações de morte, ironicamente, quando a vida se fazia surgir bem ali, na caatinga. O feto vinha bem aprumado. Não se via dificuldade em retirá-lo dali. O sol e o esforço causado no parto fazia o rosto da mulher escorrer biqueiras de suor, o homem também suava ao mesmo tempo que tremia por ser o único ser naquele instante capaz de ajudar aquele serzinho a vim ao mundo em segurança. O cachorro não latia: ficava deitado bem no topo da pedra em forma de ovo, olhava com serenidade a cena que se desenrolava ali, na seca, no sertão.
A criança nascera; a mãe, morreu.
A cova era bem rasa e ficava bem perto da pedra d'ovo. Ainda se via o sangue da pária que ocorrera ali instantes atrás. A criança - um menino pesadinho - se aquietara enquanto o homem cava a cova com as mãos e as pedras que tinha disposta para fazer de pá. Fez uma cruz com galhos retorcidos e secos. Rezou uma ave-maria e um padre-nosso e se foi. O sol estava se pondo e as primeiras estrelas começavam a surgir, o homem andava mais rápido, logo ali havia uma localidade onde ele poderia descansar. O cachorro o seguia fielmente e o menino dormia sem que nada o fizesse despertar. Nem os tropeços que o homem dava pelo terreno acidentado da caatinga.
A imagem da mulher o perseguira durante todo o caminho. Jurava que via o vulto da defunta atrás do filho que ele carregava enrolado numa toalha branca meio encardida. Ele apressou o passo: morria de medo de visagem, principalmente de mulher que chorava de noite. De certa forma, na seca, a morte apenas atiça o espírito sofredor dos pobres famintos do semi-árido. Nem a morte lhes traz paz.
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O lugarejo era pequeno. Não tinha mais do que vinte casinhas, a maioria era de taperas. Era um arraial de condenados. As casas faziam um círculo e localizado no meio havia uma bandeira de São Bento. O vaqueiro chegou com o cachorro e o bebê dormindo em seus braços. A noite era alumiada pela lua e pelas lamparinas postas nas janelas. Senhoras conversavam nas portas e o padre catequisava meninos nos umbrais da igrejinha que era a única construção pintada: era alvinha com alguns acúmulos de poeira nos rebocos salientes.O vaqueiro adentrou pelo nascente, onde a arei fina denunciava a existência de uma grotinha há muito seca. Ele andou até o meu da localidadezinha e logo avistou uma senhora, uma parteira na certa, pois esta segurava um bebê recém-nascido com as roupas sujas de sangue. Mais uma mulher pariu na seca. O vaqueiro foi ao seu encontro com o pequeno ser nas mãos, o cachorro vinha logo atrás. A mulher o viu se aproximar e olhou nos olhos, o vaqueiro, em um movimento, entregou o bebê nas mãos dela e saiu sem olhar para trás. Já estava longe quando a mulher o alcançou e perguntou onde estava a mãe e ele disse sobre o acontecido. A finada era a filha da parteira, embuchou de um caixeiro viajante e mãe a expulsara de casa. Foi dar no meio do mundo, errante. As últimas notícias dela eram trazidas lá das bandas do riba São Francisco, a mãe não sabia que a filha queria voltar. Coitada moça. Morrera sem o perdão da mãe. A parteira, em prantos, perguntou onde ela estava enterrada e o vaqueiro deu a localização da pedra d'ovo, há um tanto de léguas dali. A mulher beijou as mãos peludas do vaqueiro e saiu para a casinha humilde de taipa. Logo a frente um clamor toma os ouvidos do homem e o cachorro cameçara a latir freneticamente. Um menino morreu de sesão; o pequeno, ao que parecia, estava muito doente, já pra morrer mesmo. A mão chorava e se acabava em lágrimas, pois o menino não era batizado. O padre saiu da porta da igreja e foi acalmá-la. O vaqueiro se aproximou e viu o pequeno ser morto no chã de terra da casinha. Morreu de olhos abertos. Decidiu que não iria embora naquela noite: muita gente morta em sua memória poderiam reviver e persiguí-lo.
O padre o deixara dormir na igreja, perto da imagem de Nosso Senhor de olhos tristes. Era a síntese perfeita do que o sertão sofria naqueles períodos difíceis. Dormiu. Sonhou com a mulher e a criança, apesar não terem nada a ver, ambas figuras estavam juntas como mãe e filho. Párias da seca. O vaqueiro viu seu cachorro sendo comido pelo pessoal daquela localidadezinha e acordou de sopetão! Olhou em volta e não viu seu cachorro. Armou-se e foi até a saída da igreja. Notou que havia uma fogueira acesa pelas frestas da porta. Espiou pela fechadura, só via o fogo. Todos haviam entrado nas casas. Ele abriu a porta frontal da igreja bem devagar e viu o padre, sentado e abanando o fogo com um pedaço de carne nas mãos. O vaqueiro reconheceu o fucinho do cachorro ali na brasa... Apontou a arma para o padre e este exlamou que morreria, mas não era de fome. O vaqueiro recuou e encostou a espingarda na parede da igreja e se pôs a comer a carne do animalzinho que ele tanto prezava.
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O vaqueiro dormira fora da igreja e logo, na manhãzinha, sentiu os primeiros serenos do inverno. Ali, com a cara deitada na terra vermelha, ele e o padre notaram o gotejar vindo do céu. Não seria sonho. Depois de quase um ano de sequidão agora chuva não demorava a cair e logo engrossou e, ao invés de ficarem em casa, os moradores saiam correndo para o meio do terreiro onde se encontrava o poste de São Bento. Alguns tinham cabaças nas mãos, os machos tiravam a camisa e ficavam de boca aberta e cabeça virada para o céu. Algumas mulheres foram até a igreja agradecer a Nosso Senhor pela graça da chuva. Nem todo milagre é tardio. A chuva molhava as brasas onde, na noite anterior, o padre e o vaqueiro haviam comido o cachorro. Logo o homem se levantou, pediu a benção ao padre e saiu pelos fundo da igreja. A chuva não o incomodara nem um pouco e ele andou quase três léguas levando águas nos lombos. Nada de Deus é pra deixar doente, as primeiras chuvas eram sempre boas. E por onde ele passava via grotas correndo, rios, o orvalho, a terra ficando lamacenta. Passou perto de um açude e viu as gotinhas causarem um caos de pequenos círculos na superfície deste. Ao avançar o homem viu uma cova coletiva. Era gente que morria das doenças da seca e as eram deixadas pelo caminhos por onde trafegavam retirantes, pensou ele. A água da chuva poderia acalmar as almas que ali padeciam por misericórdia. O vaqueiro se benzera e conitnuou a andar sem olhar para trás. Mais adiante ele viu a parteira com o menino que ele entregara à ela, ela montava num jumento e seguia lenta pela estrada. Um homem a guiava e no colo dela, jazia o menino. O vaqueiro a olhou e ela mandou que o homem parasse, ela desceu, deu ao vaqueiro um terço muito bonito e o beijou a testa e continuou sua marcha rumo ao lugarejo. Só depois que o vaqueiro se deu conta: estava refazendo o caminho que o levara até aquela localidade. Na curva da estradinha ele viu a pedra d'ovo. A finada estaria ali enterrada, uma súbita curiosidade o tomou e o levou até a cova. A cruz ainda estava ali, os paus tortos. A terra foi remexida! Ele se aproximou mais e mais, viu que a cova estava vazia. Um calafrio lhe subiu a espinha e ele olhou para trás. A finada, ali, viva e nua... sem roupa alguma! O menino estava em seus braços. Mas como? Ele olhou de novo para a cova e viu as roupas da mulher, ensagüentadas. Havia ali uma toalha branca meio encardida. De súbito ele correu até a pedra d'ovo e lá ele viu seu cachorro dormindo bem no topo da pedra. O mundo pirou? Ele viu a mulher morrer e o filho está com a parteira! Então ele correu até o lugarejo... viu as casas, viu a igreja... Não viu ninguém! Estava vazio. Havia a brasa na frente da igreja e ainda quente. Viu o fucinho do seu cachorro. A cabeça dele! O vaqueiro correu, mas para onde ele fosse via a pedra d'ovo, a finada e o cachorro. O lugarejo... Ele correu para a igreja, não viu ninguém. O povo morto na estrada... Eram os antigos habitantes daquele lugar... Meu Deus! Isso é sonho...
De sobressalto, ele acordou com o barulho da chuva batendo no telhado. O cheiro de carne assando. Será o cachorro... Um menino começou a dar gargalhada e ele se levantou. Viu a mulher preparando carne de preá com o menino aos seus pés brincando com o cachorro.
- Te alue, homi! - disse ela.
O homem foi até a janelinha, espiou o tempo. A chuva que enfim marcava o término da seca que assolava o sertão... Foi sonho!
Quando ele fechou a janela viu pela fresta da janela um homem levando um jumento com uma senhora e um menino. A mulher o percebeu... O vaqueiro tremeu e se benzeu... E cerrou a janela.
A seca criava seus prórprios fantasmas.