A VIÚVA INCONFORMADA - VII PARTE
A VIÚVA INCONFORMADA - VII PARTE
O sonho que A. Jorge redigiu, acompanha-o em pensamento no coração e em papel na carteira. Hoje mesmo, irá mostrá-lo a Felizbela quando no final do dia se encontrarem num bar onde vão lanchar a convite do namorado. A. Jorge conduz o idílio de surpresa em surpresa e Felizbela vai-se habituando, não sem que procure responder à letra. Esta “competição” está a tornar-se apetecida, desejada e o imaginário do cada um dos intervenientes capricha no sentido de ver o outro feliz. A cada convite, a namorada busca na sua fonte criativa algo para responder à esperada surpresa que irá receber. Assim, redigiria para recitar entre cervejas e sumos, as quadras a seguir:
I
Desfolhei um malmequer,
Num penedo do meu jardim,
De tanto bem te querer,
Até me esqueço de mim.
II
As pétalas caíam no chão,
No chão que tu e eu pisamos,
Foi então que me disse o coração,
Que nós muito nos amámos.
III
Já o malmequer estava desfolhado,
Pelas pétalas que lhe retirei,
Ao caírem, deixaram teu nome gravado,
Em letrinhas que soletrei.
Estas singelas quadras seriam passadas para postais para produzirem um impacto maior em Artur Jorge.
Ambos estão a viver uma intensa paixão, muito embora Felizbela não queira perder a razão. Quando dá consigo a reflectir no casamento que há-de vir, entende que o melhor será não o formalizar apressadamente e que este se deva materializar apenas por fases. Entende ser bom para os dois que a partir do momento que se ache oportuno cumpliciarem-se, o façam primeiramente por um namoro de intervenção, sendo que cada um permaneça na sua casa, junto das suas coisinhas, na absoluta independência e que a etapa seguinte se faça só depois desta se ter positivamente esgotado. A comunhão de tecto não a seduz particularmente, quiçá por defesa ou para não se sentir tão vinculada. Quer que o tempo lhe dê ocasião a decidir melhor e também teste o amor de A. Jorge.
Seja como for, o encontro aprazado aconteceria à hora marcada no Bar NET. Nunca o haviam frequentado por normalmente ser procurado por jovens casais. Tem uma decoração a propósito, desde os quadros expostos, onde não faltam posters de cantores particularmente apreciados por essa faixa etária, até à iluminação pirilâmpica nas mais variadas cores e com distribuição a preceito. O espaço está muito bem pensado e distribuído, sendo que tem uma ampla sala para convívio geral e cujo mobiliário é constituído por sofás apoiados por pequenas mesas de centro. Tem também boa distribuição de som através de colunas e um DJ na gestão das músicas que se enquadram nos gostos gerais da clientela. Num outro espaço, há uma zona reservada e separada entre si, por biombos. Estes lugares, até um máximo de quatro, têm computador portátil com acesso à net, MP3, iluminação regulável em intensidade e atendimento personalizado. Resta lembrar que o acesso a este espaço se faz apenas através de reserva de lugar. Artur Jorge, conhecedor disso, cuidou da reserva, num sinal de que uma vez mais pretenderia surpreender a namorada numa clara demonstração do seu amor. O seu comportamento indicia algumas mudanças em relação ao passado, visando melhorá-lo.
Seria neste cenário assaz íntimo que os namorados se encontrariam e que uma vez mais se entregariam à sua paixão. Cada acervo de palavras de carinho saído da boca de Artur Jorge tocava a sensibilidade de Felizbela. Esta, algumas das vezes perguntava-se no silêncio, como seriam se as mesmas saíssem da boca de Rodrigo? Acredita que nunca saberá, mas no imaginário elas existem formatadas e envolvidas em melaço, sedução, encantamento e carinho. Quer esquecer-se do amigo e sobrevalorizar a presença de A. Jorge no seu coração, contudo, a marca da presença de Rodrigo haveria de ser tatuada no seu coração. Lamenta-se a si mesma de não o conseguir apagar e o esforço da razão para o esquecimento, sairá furado. De tudo isso, resta-lhe ocultar do namorado essa presença continuada e que, quando só, goza o arbítrio de uma paixão proibida. Felizbela tem a consciência de que A. Jorge a deseja e ama. Algumas dúvidas que existiam, têm-se dissipado quais nuvens em céu arejado por sol de quente Verão. Essa é uma certeza adquirida e que não lhe oferece qualquer objecção. A si mesma, lamenta-se não ter para com o namorado o mesmo sentimento. Embora não o ame cegamente, acredita que a relação que tem para com ele é suficiente para uma vida afectiva que oferece tranquilidade, estabilidade e respeito. Nesta convicção, avança ao encontro do casamento aceitando a certeza da existência de uma fantasia instalada no fundo do seu coração e alma, por entender não ser prejudicial ao seu desempenho de mulher amante e amada.
Rodrigo auto afastar-se-ia com promessa de se falarem, já Felizbela casada. Em consciência sabe e reconhece que perturbaria a ordem das coisas e que tranquilidade é tudo quanto Felizbela carece para decidir sobre si e sobre o seu futuro. Com Constança o comportamento é um pouco diferente. Esta não tem na linha do horizonte nada em vista. Não tem namorado e também parece não o desejar proximamente.
A presença no Bar Net seria bem aproveitada pelos namorados e mais ainda porque além do convívio, seriam aflorados temas que igualmente interessariam aos dois. Nunca, como hoje, o tema do casamento havia sido tão falado. A conversa teria em Artur Jorge, o promotor do tema.
- Agora, que estamos com a nossa relação consolidada importa falarmos e esmiuçarmos o nosso futuro. Este cantinho, com esta iluminação romântica convida e parece querer ajudar-nos a pensar ponderadamente, que achas, Felizbela?
- Na verdade, aqui reúnem-se ingredientes bastantes para serenamente fazermos em profundidade a reflexão necessária às nossas realizações. Sei que nada adianta protelarmos o nosso futuro e este, passa sem dúvida pelo casamento.
- Isso mesmo. O nosso casamento já se começou a desenhar há muito e pela minha parte, diria que, ainda tu eras senhora casada, já eu te lançava olhares discretos de desejo e admiração. Não sei mesmo, se disso tens memória…
- Tenho ligeira lembrança mas, como compreendes, relevava. Meu feitio e carácter não admitia outro comportamento. Agora e por ironia do destino…
- Passemos ao concreto, que é isso que importa aqui trazer. O sonho que um dia te contei (lembras-te ainda?) está vivo, isto é: quer tornar-se realidade. As obras que em sonho me ocorreram, quero materializá-las e para isso preciso da tua presença e da tua opinião. Que achas da ideia?
- Eu só entendo uma relação a dois onde a confiança, respeito, partilha e verdade sejam cúmplices e se façam na plenitude. Quero com isso dizer que irás de seguida saber com toda a seriedade, o que penso dessa proposta.
- Tens novidades?
- Não são propriamente novidades mas, algo que julgo ser fundamental para consolidar no futuro a nossa relação.
- Sim, diz. Estou atento e receptivo.
- Continuando, direi então: já não somos propriamente novatos nem inexperientes. Os nossos casamentos diluíram-se por razões diferentes, o meu por uma morte prematura do marido e o teu…pelas razões que só tu saberás, se é que sabes… Quero pois, com isto dizer e deixar em aberto, digamos que um “debate” acerca do qual, na minha opinião, deva ser o nosso relacionamento futuro.
- Sim. Estou curioso e receptivo a ouvir-te atentamente.
- Então e para que fique tudo muito clarificado desde já, acho que a nossa relação se deverá fazer com grande autonomia de parte a parte, isto é: deveremos estreitar o nosso namoro, sem contudo investirmos no imediato no casamento tradicional. Tu viverias na tua casa, eu na minha e, se no final de um período experimental a ponderação nos disser que é melhor para os dois juntarmos os trapinhos, então avançaríamos e faríamos a nossa festinha de casamento, sem complexos.
Fácil adivinhar o que aconteceu na cabeça de A. Jorge. Por sombras havia alguma vez tido tal ideia de casamento. Um esgar soltou-se e deu para Felizbela perceber a sua não concordância pelo desfecho da conversa tida e exposta sem complexos, contudo, tentou o disfarce respondendo que certamente é uma ideia a ter em consideração. As razões estratégicas que a namorada delineou para a aproximação assentam em cuidada ponderação. Agora, só o tempo poderá dar-lhe ou retirar-lhe a razão. Seja como for, Felizbela não se vê segura para avançar para um casamento tradicional. Nas suas contas entraram na reflexão o filho, a separação de A. Jorge e remotamente o amigo Rodrigo, o protótipo do homem que conheceu e que gostaria de sentir e abraçar, qual falecido e recordado marido. A complexidade da mente humana a fazer-se sentir, positiva ou negativamente e da qual somos escravos até à morte e que a idade e as experiências vividas ainda mais estimulam à reflexão. Esta por sua vez, sempre difícil e de que raramente temos a certeza ser a melhor. Os caminhos são diversos e por vezes antagónicos, não nos isentando de erros cometidos ou a cometer. Estes “medos” ocorrem a Felizbela, constrangendo-a.
Após a exposição das linhas mestras, os namorados não se inibiriam de continuarem a partilhar bons e interessantes momentos de convívio. No intervalo da degustação de alguns acepipes A. Jorge surpreenderia a namorada com a leitura de quadras rabiscadas em folhas de papel A4. Este estilo e comportamento é novo nele e parece ser resultado de inflexão no seu passado afectivo.
Constança já há muito que não encontra Rodrigo no MSN, por decisão de afastamento deste. Este seu procedimento obedeceu a ponderação cuidada, embora aconteça muito contra sua vontade. Sabe-se que Constança entra amiudadas vezes com intenção de o encontrar e o desejo e esperança começam a dar sinal de saturação. Este vazio está a tornar-se demasiado longo e se Rodrigo não encara a presença no MSN com os mesmos contornos que Constança e com a mesma necessidade e por isso menos exigente, o mesmo não se dirá dela, que após o separação cairia num vazio de afectos e especialmente num vazio de companheirismo, de solidão, que neste momento, é o que mais a preocupa. A sua experiência de quinze anos de casamento, sendo os últimos dez mal sucedidos, continua a ser presença negativa na sua memória e mais sedimentada quando Rodrigo não aparece. Constança está a lutar com o início de uma depressão pós separação e a dar mostras de fragilidade. Neste quadro, ainda mais premente se torna a presença do amigo. Curiosamente, Constança que tanto lutou pela separação e que tão forte psiquicamente se mostrava, sente-se quebrar. Talvez se possa encontrar na solidão responsabilidades para esse novo estado de espírito, bem como recordações positivas de A. Jorge que lhe ocorrem em pensamento e que de imediato procura afastar, assumindo-se na sua decisão, para que não se sinta com sentimento de culpa, o pior dos sentimentos que alguém poderia experimentar. Episodicamente, ocorre-lhe este tipo de conflito, quiçá por reminiscências com raiz nos cinco anos bons do casamento. Chega-se a questionar se tivesse tido acção mais interventiva no casamento, se os seus dias de hoje não seriam diferentes, contudo, a resignação diz-lhe que isso é passado e o que não foi feito, é assunto arrumado.
Embora Constança tenha o número do telemóvel de Rodrigo, entende não o dever contactar. Não pretende influenciar a sua liberdade ou condicionar-lhe os movimentos, antes esperando que o sinal venha dele.
Essa expectativa acabaria por acontecer, e Rodrigo movido por um misto de saudade e curiosidade entraria no MSN para conversarem e porem a conversa em dia.