PROSA MITOLÓGICA - CONTO 04 - OS PÁSSAROS DO ESTÍNGALO

OS PÁSSAROS DO ESTÍNGALO

Estíngalo, Estige, Styx, qual o nome verdadeiro? Isso pouco importa, ou melhor, nada significa. É apenas um nome. Uma denominação atribuída a um rio poderoso e caudaloso que os membros de minha raça chamam simplesmente de lar.

Suas águas matam nossa sede, nas florestas que o rodeiam achamos nossas presas, as árvores que o circundam se transformam em abrigo seguro para os ninhos, os ramos servem como local de descanso.

Os sábios de nossa raça nos contam que há eras imemoriais moramos aqui. Sabemos que outrora não possuíamos um local para chamar de lar. Naquele tempo Gaia era jovem e muito do que hoje existe ainda não havia sido criado. Então nossos antepassados voaram das regiões geladas dos extremos da terra, passamos por florestas, também conhecemos os desertos da África e da Ásia, outros foram ainda além do grande reino de Tétis e Oceano. Alguns dizem que há indícios de que outras terras existem além do oceano sem fim.

Mas há muitas eras nossos antepassados chegaram nesta região, com pouco tempo perceberam sua beleza, a segurança que podia proporcionar a nossa raça. Nesta época os ancestrais pararam de perambular pelo mundo, fazendo desta região o nosso lar. E desde então vivemos aqui, felizes, contentes. Livres da fome e da sede, com segurança para os pequenos que nascem dos ovos colocados por nossas fêmeas. Enfim, um verdadeiro paraíso, só nosso.

Nossos problemas começaram quando Prometeu criou aquela raça estranha. Não eram macacos pois estes possuem pêlos bem desenvolvidos, não eram carnívoros pois vimos que comiam frutas e frutos das árvores, se bem que também sabiam caçar.

Nossos primeiros contatos com essa nova raça criada pelos deuses foram amistosos, eles não representavam perigo para nós, por isso também os deixamos em paz, nossos interesses eram diferentes.

Acho que foi no tempo dos meus avós, ou dos pais deles. O homem, é assim que se denominavam aquelas criaturas, foram premiados com o conhecimento do fogo, uma dádiva dos deuses.

Eles aprenderam a domesticar outros animais, Ceres lhes ensinou a cultivar a generosa terra, eles cresciam em número e logo se espalhavam pelo mundo, tal qual uma plaga. Com o aumento de seu número novas terras eram por eles conquistadas.

Era sempre igual, chegavam em uma região e cortavam as árvores, logo erguiam seus próprios ninhos, caçavam os animais que viviam ao redor até acabar com todos. E por último desviavam os cursos dos rios e lagos para poderem cultivar as terras tomadas à natureza.

Nossa raça tornou-se apreensiva, acompanhávamos o desenvolvimento deles, pois temíamos que um dia eles tentariam conquistar nossa terra, e isso não permitiríamos.

Não demorou muito para que eles cercassem nossas terras. Em todas as direções montavam suas moradas. Então aconteceu, eles começaram a derrubar as árvores de nossa morada. Muitas fêmeas e filhotes pereceram nestes dias.

Irritados com essa invasão convocamos o Grande Conselho dos Sábios. Os anciãos estavam temerosos, parecia que nada poderia se opor àquela espécie criada pelos deuses.

Nós sabíamos que eles nos temiam, afinal nossos bicos e asas são duros feito ferro, podemos jogar as nossas penas igual eles jogam sua lanças. Alguns mais sábios dentre nós entendiam algumas das palavras deles. Eles pretendiam se instalar no centro de nossas terras.

Na reunião, longa e tensa, alguns sugeriram que deveríamos procurar outra morada, temiam que no confronto que parecia se aproximar fôssemos abatidos. Mas os jovens reclamaram e fizeram oposição a esse plano. Aquelas terras eram nossas há milhares de gerações, eles é que nos invadiam. Que fosse declarada a guerra entre nossas espécies. Relutantes o Conselho iniciou as deliberações e por pequena margem foi vencedora a corrente que defendia a guerra.

Bradavam os mais novos que os homens nos chamavam de pássaros malditos, afinal nossa espécie se alimentava de carne, alguns dos nossos chegavam a dar caça aos estranhos. Mas não era nosso direito de sobrevivência? Eles também não caçavam ou criavam animais apenas para matá-los mais tarde e comer suas carnes, aproveitar suas peles e couros? Nossa espécie jamais derrubou uma única árvore, ou chegou a ponto de envenenar a água do rio que nos abrigava. Mas aqueles ditos homens não tinham o menor rancor em derrubar aquilo que Gaia gerara com tanto amor e carinho.

Enfim, a guerra foi declarada, os nossos faziam incursões cada vez mais ferozes nos abrigos dos homens. Todos que se mostravam fracos e doentes caíam perante nossos bicos e garras. Matamos muitos deles. Diversas de suas crias foram levadas para nossos ninhos, seja como troféus de guerra, seja como alimento para nossa prole.

Por algum tempo eles recuaram, parecia que a vitória pendia para nosso lado.

Triunfantes cantávamos nossa vitória para os céus e para os ventos. Claro que tivemos perdas, mas matamos mais deles do que eles aos nossos.

Quisera que tudo tivesse ficado daquele jeito.

O tempo passou e então ele chegou. Era um homem alto, forte, robusto. Vestia uma estranha pele de leão, portava uma clava pesada e sua aljava estava cheia de flechas. Ele chegou e ficou apenas a observar os nossos no momento de descanso. Todos estavam pousados nos galhos das árvores, as fêmeas tratavam dos pequenos recém saídos dos ovos. Os anciões conversavam entre si.

Os olhos do estranho eram azuis profundos, em sua face uma determinação que jamais vimos igual.

Algumas das sentinelas se aproximaram do estranho. Não chegaram a atacar, ficaram apenas observando-o. Mas ele atacou. Brandiu sua clava como se esta fosse uma continuação de seu próprio braço. Três sentinelas foram mortas.

Como, perguntaram todos, um simples humano ousa chegar em nossas terras e sem ser atacado matar três dos nossos iguais? O ódio fez o sangue de muitos ferver. Em breve grande quantidade dos nossos levantou vôo das árvores e se lançou em ataque direto contra aquele ser. Mas para surpresa de todos nossos bicos e penas batiam na pele que ele usava, sem causar nenhum tipo de dano.

Ele soltou uma gargalhada perante nosso ataque, sorriu e se afastou, parecendo não ser sentir incomodado diante de nossa reação.

No dia seguinte ele voltou, trazia em suas mãos um estranho artefato que se abria em sua mão, estando cada parte apoiada em um de seus dedos. Com fúria ele começou a movimentar aquele objeto estranho e todos perceberam o horrível som que saía dali. Algo tão horrível que ao chegar em nossos ouvidos nos fazia querer sair daquele local. Os nossos começaram a voar em círculos ao redor dos ninhos, o som produzido pelo estranho parecia não atormentá-lo. Enfim todos os nossos, menos os pequenos mais novos que ainda não haviam desenvolvido penas e não sabiam voar, estavam nos céus.

Com calma ele pegou seu arco disparando suas flechas, com maestria ele colocou o barulhento artefato em seus pés continuando com aquele som horroroso e sua mãos disparavam sem cessar, a cada seta um dos nossos caía morto. Com fúria tentamos um último ataque, o homem largou seu arco, pegou uma maça e sua clava e abateu tantos quantos o atacaram.

A tarde virou noite, esta se transformou em um novo dia. Quando os raios de sol iluminaram as bordas do rio vi que nossa derrota tinha sido total. O estranho ainda fazia seu barulho ensurdecedor, mas somente eu sobrei de todos os da minha raça.

Mesmo sabendo o destino que me aguardava, fiz uma prece rápida e mergulhei contra o estranho.

====================================================

Heracles (Hércules) matou o último dos pássaros malditos do Estingalo (segundo outras versões Estinge, Estige ou mesmo Styx), pegou todos os corpos acomodando-os em dois gigantescos cestos que mandara fazer apenas para esse fim. Colocou cada qual apoiado em um de seus fortes braços e com calma e segurança dirigiu-se de volta ao palácio de Euristeu, seu irmão. Levando a prova de ter concluído mais um dos 12 trabalhos que foi obrigado a executar para se redimir do assassinato de seus filhos, provocado por um ataque de loucura enviado por Hera.