PROSA MITOLÓGICA - CONTO 03 - "QUÍRON, O CURADOR FERIDO"

QUÍRON, O CURADOR FERIDO

Quer o destino que assim seja. Apenas aguardo que Tânatos apareça e cumpra sua obrigação. Quando a foice decepar a minha vida terei, enfim, a paz e serenidade que há tanto tempo espero.

Destino, deus cruel e sanguinário, pouco se importa com os anseios e sentimentos dos seres que vivem neste mundo. Comigo ele foi particularmente severo. Ao mesmo tempo que me deu o Dom da cura, fez de mim um doente crônico, sem chances ou esperança. Por anos suportei a dor, tudo fiz para curar a mim mesmo. Esforço inútil, a ferida de minha coxa jamais se fecha. A grande ironia disso tudo é que meu ferimento foi causado, de forma involuntária, por um de meus antigos discípulos.

Hércules não teve culpa, tentou apenas me ajudar em um momento de dificuldades, pois diversos irmãos de minha raça estavam a cercar minha moradia na Tessália, por minhas cordiais relações com os humanos. No afã de me livrar dos agressores disparou suas flechas, muitos dos que me cercavam pereceram, mas uma de suas setas trespassou o ombro do atacante que estava mais próximo e me atingiu na coxa.

As flechas estavam embebidas no sangue da Hidra de Lerna, recentemente morta. Um veneno mortal do qual não se conhece cura. Como imortal que sou não posso morrer pela ação do veneno, mas a ferida aberta jamais cicatriza.

Desde então tenho seguido minha sina. Todos os dias centenas, milhares de pessoas fazem fila perante a entrada da caverna na qual resido. Procuram algum remédio para seus males. A todos eu atendo, e invariavelmente consigo salvá-los.

Curo todos menos a mim mesmo. Já perdi a conta das noites de sono que passei em claro tentando achar algum remédio para essa ferida.

Esses experimentos me levaram a descobrir diversas fórmulas que usei com sucesso, sanei muita dor e agonia. Todos ficaram gratos comigo.

A cada agradecimento uma nova pontada de dor, a cada pessoa que saiu de minha caverna com a saúde perfeita mais sofrimento.

Estranho isso, como posso salvar tantos se desconheço uma maneira de ao menos aliviar ao meu próprio desespero?

Meu Dom advém dos próprios deuses. Por sorte Apolo e Artemís se condoeram do centauro abandonado pela própria mãe, Filira, uma ninfa amada por Cronos. Minha geração se deu quando meu pai, se metamorfoseou em cavalo e nesta forma se uniu à minha mãe.

Ao ver o "monstro" que nasceu de seu ventre Filira me abandonou, teria tido uma morte menos sofrida não fossem os deuses irmãos que me acolheram.

Criado no Olimpo tive acesso a todo o conhecimento dos deuses, ficava horas e mais horas na biblioteca lendo sobre todos os assuntos: artes, música, poesia, filosofia, lógica, ciência, ética, artes marciais, artes divinatórias e profecias, incluindo Astrologia.

Influenciado por Apolo me dediquei de forma especial às ciências e medicina. Em pouco tempo me tornei um mestre na arte da cura, sabia o poder curativo de cada uma das plantas e raízes, com sabedoria misturava variedades diferentes e os resultados eram novas fórmulas, cada vez mais poderosas. Tornei-me o maior conhecedor da Naturotapia.

Minha fama como sábio se espalhou. Tornei-me mestre e educador para muitos filhos de deuses e mortais, iniciei terapeutas, músicos, magos e guerreiros, incluindo Orfeu, Asclépios, Hércules, Jasão, Aquiles. Preparava as pessoas para serem heróis, ensinando não apenas métodos de sobrevivência, mas valores culturais e éticos, o que os tornava aptos a servirem seus países ou de um todo maior do qual fizessem parte.

Até perdi a conta de quantos passaram pelas minhas mãos, ensinei a todos com igual fervor e dedicação. Os homens me louvavam, os deuses me admiravam.

Ainda me lembro do momento em que Zeus veio ter comigo, ele estava sério, mas o momento exigia isso. Com uma mão ele me deu a ambrosia, o alimento sagrado dos deuses. Ao ingerir esse verdadeiro néctar me tornei imortal. Seria daquele momento em diante um deus, se assim o quisesse o Destino.

Ah, as dores voltaram, estão mais fortes agora. Cadê Tânatos que não chega?

Após anos convivendo com essa maldita ferida desisti de tudo, das curas, das homenagens, da própria vida. Mas para quem carrega a imortalidade há um fardo. Só consegui me transformar em mortal graças a Prometeu.

Esse é outro amaldiçoado. Vive preso em uma rocha e todos os dias abutres voam até onde está seu cárcere e lhe devoram o fígado que cresce continuamente. Mas mesmo com esse sofrimento eterno ele concordou em trocar sua mortalidade pela minha imortalidade.

Os deuses me perguntaram se estava certo daquilo, minha única resposta foi mostrar a coxa ferida. Sem maiores argumentos os ritos foram feitos. O próprio Apolo, há muito meu protetor, se encarregou de me tirar a imortalidade.

Conforme meu desejo fui levado de volta à minha caverna e ali me preparei para o fim inevitável. O veneno da Hidra, que há anos circula pelo meu sangue não se fez esperar muito tempo.

Já estou totalmente imóvel, meus músculos já não me obedecem mais, ah, finalmente, o arauto de Hades chegou.

Tânatos implacável como sempre ergue sua afiada foice e com ela dá um fim aos sofrimentos e também à vida de Quíron, o centauro médico, o Curador Enfermo.

Como última homenagem ao ser, os deuses do Olimpo erguem seu corpo aos céus, formando assim a Constelação de Sagitário, representada por um centauro empunhando um arco e uma flecha.

A suprema ironia, o médico supremo empunhando uma arma que lembra a morte, tal qual sua vida.

Essa foi a vida do Médico Enfermo, o curador ferido que não consegue curar a si próprio.