O PRISIONEIRO

Já há muito tempo eu não via o Zé. Embora conhecesse bem o seu nome, era este o jeito que ele queria que eu o chamasse. A última vez que precisei de seus serviços já passava dos 10 anos. Eu havia mudado de cidade por algum tempo, onde exercia minha profissão e só recentemente eu voltara. Naquele dia, quando encontrei seu irmão, lembrei-me de perguntar por aquela figura que eu admirava.

Minha admiração por ele surgira em virtude do seu procedimento em relação aos amigos, família e seu comportamento perante seus semelhantes.

Ele era um sujeito que se poderia chamar de simplório, franzino e muito acanhado. Meio rude e praticamente analfabeto tivera, no entanto, uma educação rígida, que o transformara naquela figura honesta e respeitadora dos direitos dos outros. Nunca eu tivera notícia de qualquer ato que viesse a desabonar a conduta dele.

Embora sua instrução fosse apenas o essencial para escrever ou desenhar seu nome, ele tinha a sabedoria dos justos e dos santos.

Durante todo tempo que eu o conhecia, seu comportamento foi sempre o mesmo. Sensato e honesto era respeitado por todos. Ele era um exemplo a ser citado por pais que desejassem educar seus filhos.

Quando vi seu irmão, resolvi pará-lo para perguntar sobre o destino do Zé, que eu já não via há muito tempo.

Quando nos aproximamos, fui perguntando imediatamente. Era grande minha ansiedade por saber onde ele andava.

-E aí, Antonio, por onde anda e como está o Zé?

Meio sem graça e com certo receio, ele praticamente cochichou, como se ninguém pudesse ouvir:

- É doutor, o Zé está preso!

- Preso, ele?

- Sim, ele foi condenado por assassinato de um homem.

Quando o Antonio disse, preso por assassinato, minha lógica não ousava aceitar o fato. Aquele ser humano seria incapaz de qualquer ato delituoso. Eu não podia acreditar naquilo. Deveria haver alguma explicação e assim pensando perguntei:

- Como aconteceu e quando foi?

- Bem doutor, já faz mais de cinco anos.

Então o Antonio discorreu por alguns momentos fatos que eu desconhecia e que havia ocorrido durante aquele período que eu estivera morando fora. Conversamos mais alguns momentos sobre assuntos diversos e no final perguntei:

- Onde ele está cumprindo a pena?

Depois das explicações nos despedimos e saí cabisbaixo, analisando cada palavra que ouvira e ao mesmo tempo eu não conseguia aceitar aquilo como real. Deveria haver outra razão por traz de tudo. Teria que haver uma explicação plausível, que explicasse tudo.

Naquela noite não dormi, só em pensar no pobre Zé preso, talvez vítima de alguma trama diabólica. Não podia acreditar que aquele cidadão que eu conhecia desde menino pudesse cometer algum delito. Só em pensar ele preso, podia até sentir seu sofrimento, diante do quadro horrendo que se tem dos presídios.

Logo bem cedo liguei para o escritório e mandei desmarcar qualquer compromisso pelos dois dias seguintes. Disse que teria uma audiência na capital e só voltaria ao escritório na próxima semana. Era um dia de sexta feira. Eu iria aproveitar o fim de semana para fazer uma visitar ao pobre e procurar me inteirar dos fatos. O que o irmão me contara ainda parecia confuso e inaceitável.

Eu havia resolvido visitar o Zé e tirar aquela história a limpo. Logo após o almoço eu já me encontrava na porta do presídio, onde ele estava preso. Como profissional do direito, não foi difícil conseguir uma hora para conversar com meu amigo.

Sentado na sala de reunião eu aguardava um prisioneiro cabisbaixo, choroso e até mesmo acabado. Este era o prisioneiro que eu imaginava. Estava tão aborto em meus pensamentos que não vi que um sujeito se aproximou de mim e foi dizendo:

- Doutor que prazer em vê-lo, há quanto tempo!

Levantei a cabeça e vi-me de frente a uma pessoa diferente daquele que imaginava encontrar. Ele que sempre fora franzino e acanhado, estava forte, corado e mostrava-se bastante desinibido. Levantei-me e estendi a mão para cumprimentá-lo e mesmo que fui falando:

- Eu mesmo e vim aqui para saber os detalhes desta sua prisão, quero que me conte toda a verdade. Quero que me conte tudo e na omita um só detalhe.

Ele sentou-se na cadeira que se encontrava em minha frente e então começou sua história:

"Há cerca de dez anos havia-se se casado, com uma morena de fechar o comércio e desde esta época tudo havia mudado em sua vida. Quando solteiro, vivia uma vida simples, mas nunca tivera passado por nenhuma espécie de aperto financeiro. Com o casamento todas suas reservas haviam acabado com a compra de móveis e os utensílios domésticos. O barraco onde morava era alugado, o que ganhava não dava para comprar casa própria. Estivera na Caixa diversas vezes, mas nunca conseguira comprar um imóvel para sua moradia.Seu salário era incompatível com o tipo de imóvel que a esposa queria.

Com o passar do tempo a relação foi azedando, com reclamações da mulher sempre insatisfeita, por não ter casa própria para viver. Deveria haver outros motivos, mas que ela transferia para a falta da casa. Algumas amigas tinham casa própria, móveis e até tinham veículo, e isto também servia de motivos para reclamações”

Quando ele interrompeu o relato, lembrei-me de centenas de casos que já vira durante minha atuação na área de família. Casos onde as mulheres vivem única e exclusivamente para transformar os maridos em escravos que apenas servem para satisfazer desejos sempre insatisfeitos.

Algumas apenas cobram, exigem e nada fazem para melhorar a vida do casal e quando se separam querem tirar tudo do parceiro, que naquele momento deixou de ser o grande amor da sua vida para ser apenas um bobo que deverá sustentá-la.

O Zé tomou fôlego e com um sorriso largo voltou à sua narrativa:

"Depois de algum tempo conseguira comprar uma moto usada em 12 prestações, que lhe ajudava a chegar ao serviço mais cedo, evitando os atrasos. Depois de haver pago cinco prestações lhe roubaram a moto e mesmo assim ele continuara a pagar as prestações para manter o nome limpo e quiçá num futuro comprar outra moto. Recorrera à polícia e depois de algum tempo desistiu da moto e voltou a ir trabalhar de ônibus”.

O que ganhava mal dava para pagar, o aluguel, água, luz e a alimentação dele e da mulher, que na altura do campeonato só reclamava. Pensara em se separar, mas alguém lhe dissera que ele seria obrigado a sustentar a mulher. Depois de ponderar sobre tudo resolvera continuar agüentando o casamento que naquela época já se tornara um sacrifício. Depois de algum tempo a mulher o abandonou, levando quase tudo que ele havia adquirido com dificuldades. Depois disso ele havia ficado mais tranqüilo, mas um dia quando retornou para casa, encontrou a porta aberta. Haviam levado a televisão que comprara recentemente. Algum tempo depois entraram novamente na casa e roubaram o aparelho de som e todas suas roupas. Todas às vezes ele tentara através da polícia descobrir os ladrões e como sempre acontecia nada era solucionado. A polícia alegava falta de estrutura, combustível e pouco pessoal para tanto serviço. Depois de certo tempo desistiu da polícia.”

Quando ele interrompeu a narrativa, eu viajava por diversos lugares onde encontrava fatos parecidos com o que estava escutando naquele momento.

Ele bebeu um copo de água e retornou à sua narrativa:

"Um dia por não estar passando bem, ficara em casa e foi neste dia que aconteceu o que ninguém previa. Um ladrão entrou em sua casa e quando ele viu aquele individuo levando seus pertences, numa luta corporal conseguira com um pouco de sorte acertar a cabeça do meliante com uma barra de ferro,o que viera a lhe ocasionar a morte.Depois do acontecido fora acusado da morte do meliante.A promotoria alegava que ele havia arrumado um pretexto, pois o indivíduo vitimado por ele era o homem que estava morando com sua ex- mulher.O bandido passara a ser vítima de um marido ciumento e descontrolado. E tudo transcorrera de acordo com a lei, que sempre pune os infratores. E ali estava ele, cumprindo a pena que a lei impusera por defender sua casa”

Quando ele interrompeu o relato sorriu e falou com certa satisfação:

- E foi assim doutor que depois desta época passei a viver de verdade.

- O que ?. -Você está dizendo que depois de sua prisão sua vida melhorou?

- Isso mesmo, se não acredita preste atenção:

- Quando eu estava livre, ganhava dois salários mínimos, tinha que pagar aluguel, água, luz, ônibus, alimentação lavagem de roupa e uma infinidade de necessidades. Quase não comia carne e mesmo assim não conseguia guardar dinheiro. E mesmo depois que aquela malvada me abandonou, eu fui roubado várias vezes. Até acredito que os outros roubos foram efetuados por minha vítima.

- Quando estava doente, ficava por horas na fila do INSS para conseguir uma consulta e atestado o que nem sempre conseguia no primeiro dia. Muitas vezes fiquei na fila com o estômago doendo de fome sem poder comprar um lanche para não deixar de cumprir minhas obrigações. Eu queria ser um bom cidadão. Tinha que me manter dentro da sociedade como exemplo de honestidade. Eu não passava de um escravo que tinha que cumprir todas as regras e apenas sobrevivia com a merreca que eu ganhava.

- Todo o dia acordava às seis da manhã e depois de todos os atropelos só conseguia voltar para casa à noite. O salário era apenas o suficiente para não passar fome. Não conseguia viver em paz, os furtos em meu barraco me mantinha sempre assustado e inseguro, pois não tinha paz.

- Mas você era livre, retruquei.

- Livre, fora das grades, mas tinha que viver como prisioneiro, sofrendo e preocupado. Aqui na cadeia as coisas são diferentes, pois já não preciso me preocupar com certas coisas.

Parou, respirou fundo e depois continuou:

- Quando estava solto, tinha várias obrigações a cumprir, a luta pela sobrevivência era árdua. Aqui eu vivo melhor. Fico quase o dia todo livre sem fazer nada. O almoço é sempre servido na hora certa.

- Sabe doutor, dizem que a comida daqui é balanceada.

Sorri, com o modo dele falar e do jeito como expunha seus argumentos.

- Aqui eu acordo mais tarde, tomo meu banho de sol pela manhã, meu café é sempre servido na hora certa, o almoço é bem melhor do que aquela marmita que eu era obrigado a levar e esquentar para comer. Além disso, vejo televisão, jogo futebol, baralho e até leio revistas e livros.

- Entendeu doutor, porque aqui é melhor? Apenas tenho que seguir as regras. Não sou assaltado, não passo fome e quando preciso de médico ou dentista, sou atendido e não preciso ficar na fila. Aqui eu me sinto mais seguro do que lá fora.

Por alguns momentos fiquei calado pensando e analisando aqueles argumentos e então o incentivei a continuar.

- Estou seguindo seu raciocínio continue, falei:

Ele sentia-se bem a vontade e novamente voltou ao seu raciocínio:

- Sempre que precisamos de algo novo, fazemos revoltas, tocamos fogo em colchões, cobertores e conseguimos o que queremos. Depois que estou aqui, já troquei meu colchão quatro vezes. Quando estava lá fora, o meu tinha mais de dez anos e eu não podia comprar outro.

E assim ele continuou a enumerar as vantagens que existiam em estar preso.

Eu não conseguia ver sobre aquele prisma, mas notei que o Zé que eu conhecera há muito tempo havia morrido e aquele que agora falava comigo era mais feliz. Ele me disse que havia arranjado uma namorada e quando ela vinha "tirava o atraso",durante as visitas íntimas.

Quando lhe perguntei se queria que eu fizesse alguma coisa por ele, respondeu que não e nem mesmo se preocupava em sair dali. Aquele era o lugar que lhe dava segurança e nem mesmo tinha que se preocupar com nada.

Enquanto ele falava, eu ia tentava acompanhar seu raciocínio e procurava entender e reconhecer aquele cidadão que eu pensava que conhecia.

Quando a visita terminou, me despedi prometendo voltar breve. Ele levantou-se me abraçou e, depois de agradecer-me pela visita disse:

- Doutor, não precisa se preocupar comigo. Aqui estou bem melhor do que poderia imaginar. Estou bem melhor do que estava quando vivia no seu mundo.

Embora não concordasse com os argumentos dele, não deixei de pensar que havia certos aspectos que deveriam ser analisados dentro da ótica de quem experimentava os dois lados da vida em dois mundos diferentes.

Quando sai pelos portões, novamente o medo me tomou de assalto. Uma viatura da polícia passou velozmente perseguindo algum marginal que deveria ter roubado um carro. Naquele momento, pensei estar ouvindo as palavras do amigo Zé. “Aqui é mais seguro”

Ao chegar a casa, enquanto me preparava para o banho, liguei a tv. para ver o cotidiano da violência de todos os dias e do medo que enfrentamos fora das grades.

Ouvindo as notícias, ficava imaginando as incoerências da vida moderna, onde o homem livre se torna prisioneiro de normas, regras e convenções que visam manter alguns no ápice da pirâmide social, enquanto a maioria não passa de massa de manobra de políticos e religiosos e outros que prometem tudo e nada fazem.

Peguei as correspondências que o porteiro me havia entregue e vi que entre elas estava a conta de água, luz, telefone, despesas com cartão de crédito, aviso de vencimento da prestação do apartamento, do carro, condomínio, seguro e outras obrigações a que eu estava obrigado por ser um homem livre.

Hoje o homem livre fica cada vez mais prisioneiro do sistema onde vive.

Olhei todas as contas e senti certa tristeza, enquanto me lembrava da lógica do Zé.

Respirei fundo e um sorriso passou por meus lábios, enquanto tentava afastar meu pensamento do que havia passado naquele dia.

Eu não podia admitir que um prisioneiro pudesse viver melhor do que eu e se sentisse mais seguro atrás das grades.

Mas era verdade.

14/02/06

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 25/02/2008
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