Um belo vinho tinto
Observava o jardim pela janela. A rua, muito movimentada em dias úteis, estava agora sossegada. A tranqüilidade só era quebrada quando efusivos familiares batiam à porta de vizinhos, os quais – envoltos pelo espírito natalino – os recebiam com igual entusiasmo. Karen deixou uma lágrima correr em seu rosto. Ela não compartilhava da alegria geral e tampouco esperava ansiosa pelas visitas que mais tarde receberia.
Enxugou o sinal de sua tristeza e dirigiu-se à cozinha. Estava tudo certo: o peru já estava no forno, a mesa já estava posta e os biscoitos estavam apenas à espera do resto da família para serem deliciosamente devorados. Não havia mais o que fazer, o negócio era esperar. Retornou à sala, colocou um disco natalino para tocar, encheu sua taça de vinho e voltou à janela. Pôs-se a pensar.Não era certo aquilo, repudiar a idéia de receber sua própria família. Na realidade, não era bem repúdio... Ela só preferia como as coisas eram antes: cada um na sua casa, sem crianças correndo ou chorando, sem gritarias ou discussões. Não conseguia entender por que diabos Sarah quisera fingir que a deles era uma família unida e feliz.
Bebeu um grande gole como se assim a situação de resolvesse. O que deu errado? Como os Davenports – que outrora passavam domingos no clube e férias na praia, juntos – se distanciaram tanto? Ela não sabia responder. É evidente que a morte de seu marido desempenhara um importante papel nessa triste história. Foi assim, de repente. Num domingo qualquer, ele simplesmente não acordou. Após o episódio, os filhos foram aos poucos se afastando. Não por opção, a vida guiou-os para caminhos distintos. Karen agora percebe que ninguém se esforçou para evitar tal separação.
O badalar do relógio a fez voltar à realidade. Eram sete horas da noite e ainda faltava uma hora inteira até que a residência se enchesse. Movida pelo seu famigerado gosto por derivados do álcool etílico, Karen se permitiu mais uma taça de Merlot. Movida por um inédito saudosismo, foi à procura do grande álbum de família. Correu os dedos pela capa aveludada e em seguida o abriu. Karen momentaneamente se transportou para o passado: para um época em que as crianças – suas crianças – corriam e choravam e ela não se incomodava. Seu marido ainda estava presente: sim, ela fora feliz! Karen não sabe ao certo durante quanto tempo esteve nesse estado de espírito. Não, não era saudade. Afinal, ela tinha consciência de que não teria forças para passar por tudo aquilo outra vez. Talvez não teria forças nem para agüentar o que ainda estava por vir...
Decidida, acabou com o pouco de bebida que lhe restava. Antes de pensar na melhor maneira de fazê-lo, foi atrás de papel e caneta. Achou por bem deixar uma carta para seus familiares tentarem entender como ela estava se sentindo. Num olhar de despedida, fitou os objetos do quarto. Mirou uma fotografia do falecido esposo e silibou “Até já”.
Tão logo começou a escrever, ouviu a campainha tocar. Foi até a janela e verificou: era Sarah (sua irmã), o marido, filhos e netos. Maldita mania de chegar adiantada, pensou. Karen continuou a observá-los já que sua presença ainda não havia sido sentida. O barulho vindo da porta ficava cada vez mais alto; as crianças estavam agitadas. A campainha voltou a ser tocada. Karen saiu de trás da cortina. Fechou o álbum, amassou a folha e jogou a caneta em qualquer canto. Foi em direção à escada e começou a descê-la. Alguém precisa preparar as próximas ceias, pensou. E, afinal, há melhor companhia do que a de um belo vinho tinto?