Tanto desejou
Deu o último gole de café e repousou a xícara na pia àquela hora ainda vazia. Pegou o casaco marrom escuro que repousava no guidão da bicicleta ergométrica a qual, devido ao período de sedentarismo nunca antes visto naquele lar, mudara de função. Certificou-se de que não esquecera nada e foi em direção à porta da sala. Antes de finalmente ir embora, virou-se e fitou o cômodo principal da casa. Sentiria falta das tardes de domingo relaxando em frente à tv e teria saudades das cervejas apreciadas após um longo dia de trabalho. Livrou-se das memórias que agora vinham à tona em sua mente e fechou a porta. Logo, sua mulher acordaria e não ficaria feliz em ver que Rob deixara a casa sem trancá-la.
A neve caía lá fora, como vinha caindo desde os primeiro dias do ano. O jardim estava belo, todo tingido de branco, apesar de - Rob admitia - ter perdido um pouco da beleza com a retirada da ornamentação de natal. Alguns instantes depois, já estava a caminho do aeroporto de Winnipeg - de onde sairia o primeiro dos vários vôos que ainda enfrentaria até chegar a seu destino final: Angola. A estrada estava lisa e perigosa, mas nada que assustasse Robin Finster e seus 38 anos de experiência atrás do volante.
Ele estava pensativo. Aceitara a proposta de emprego oferecida por uma empresa chinesa. Iria para a África ajudar na reconstrução das estradas de ferro do país de colonização portuguesa que tanto já havia sofrido com guerras, conflitos e afins. Primeiramente, achara o convite muito pouco atrativo. Deixar a família e a segurança de Winnipeg para trás e se aventurar no continente negro parecia tarefa para engenheiros mais novos que ele. Entretanto, o tempo e seu chefe foram o convencendo do contrário. Um dia desses chegou em casa. Sua mulher havia saído há tempos com as amigas para gastar o dinheiro do casal (leia-se de Rob) em compras. O filho mais velho estava trancado no quarto, de onde apenas se ouvia o som abafado do baixo de alguma banda cujas letras não fazem sentido algum e cuja fama se restringe aos adolescentes. A mais nova monopolizava o telefone em mais uma conversa longa e superficial com algum cara com quem ela mantém mais um relacionamento longo e superficial. Não havia lugar para o patriarca ali. Robin sentiu-se deslocado em seu próprio lar. Aquela foi a gota d´água; ele estava decidido e iria, sim, para a África. O pior de tudo é que ninguém relutou contra a polêmica decisão. Rob, ao anunciar seus planos, já imaginava a choradeira e os pedidos desesperados para que ficasse. Nada. Megan e as “crianças” se limitaram a indagar se era aquilo mesmo que ele queria fazer. Diante da resposta positiva, desejaram boa sorte e voltaram a suas atividades corriqueiras.
Robin já estava na auto-estrada que levava ao aeroporto. A neve caía mais forte agora e a visibilidade havia reduzido consideravelmente. Firme da direção, Rob divagava em sua mente. Questionamentos existenciais vinham à tona e a certeza de se ter alcançado a famigerada “crise da meia-idade” estava presente. Enquanto jovem, sonhava com uma vida cheia de desafios e realizações profissionais. Possuía o mesmo emprego há quase trinta anos. O mesmo prédio, o mesmo ambiente, a mesma rotina. Nada parecido com suas fantasias de universitário. Agora, ironicamente, quando surge a possibilidade de partir para novos ares, a dúvida é enorme.
Com tanta coisa na cabeça, Rob nem viu o caminhão que vinha derrapando da outra pista de encontro a seu Ford Mondeo. Freou, mas ele também acabou vítima da traiçoeira camada de gelo da estrada. Mal pôde pensar no que iria acontecer adiante. De repente, o farol do veículo alheio apareceu entre os flocos de neve anunciando a iminente colisão. Minutos depois, a família Finster seria acordada com a notícia. Finalmente Robin teria a choradeira e os pedidos desesperados que tanto desejou.